Nesta semana Francis Fukuyama esteve na FGV em São Paulo onde apresentou seu artigo "What is Governance?" . Recentemente foi traduzido para o português o primeiro volume do seu mais recente (e talvez mais ambicioso) livro: "As Origens da Ordem Política". Por conta de sua visita, o cientista político deu uma entrevista para as páginas amarelas da revista Veja.
O teórico americano diz que para a vitória definitiva da democracia só falta consertar os Estados falidos
O americano Francis Fukuyama é autor da teoria do fim da história, da qual todo mundo ouviu falar, mas poucos entenderam. Primeiro num artigo publicado quinze anos atrás e depois em livro, ele sustentou que a evolução política da humanidade foi concluída com a morte do comunismo e a vitória da democracia liberal como modelo de governo. Como não há paz nem estabilidade no mundo atual, os críticos concluem que Fukuyama errou. Sua resposta é que o fim da história não é automático, mas um processo que só estará completo com o aprimoramento dos regimes ao redor do globo. Seu último livro,Construção de Estados – Governo e Ordem Mundial no Século XXI, lançado neste ano nos Estados Unidos, trata da importância de criar instituições fortes em nações falidas. Professor de economia política na Universidade Johns Hopkins e membro do conselho que assessora o presidente dos EUA em questões de bioética, Fukuyama, 52 anos, é casado e tem três filhos. De seu escritório em Washington, ele concedeu a seguinte entrevista a VEJA.
Veja – O senhor é autor de uma das teses mais mal interpretadas, a do fim da história. Sua teoria ainda é válida, quinze anos depois?
Fukuyama – A idéia de que existe um "fim da história" era compartilhada pelos marxistas, que acreditavam, como eu, em evolução a longo prazo da sociedade humana. A diferença é que eles achavam que o fim da história seria a vitória da utopia comunista. Depois da queda do Muro de Berlim quase ninguém ainda acredita nisso. Minha tese é que, diferentemente do que pensavam os marxistas, o ponto final da história é a democracia liberal. Não considero plausível imaginar que estávamos no rumo de uma forma mais elevada de civilização. Podemos retroceder ao fascismo, à monarquia ou ao caos puro e simples. Nunca vamos ter, contudo, um modelo de sociedade melhor do que a democracia orientada pela economia de mercado. Essa é a idéia básica de O Fim da História. Nada do que ocorreu desde então, nem mesmo os atentados de 11 de setembro de 2001, mudou isso.
Veja – O embate entre o fundamentalismo islâmico e a cultura ocidental não pode ser considerado uma nova forma de disputa ideológica?
Fukuyama – Poucas pessoas acreditam que a teocracia islâmica seja o caminho para o futuro ou uma alternativa real de governo para os Estados Unidos, o Brasil, a França ou para qualquer outra sociedade moderna. Qualquer um que viveu no Afeganistão, no Irã ou na Arábia Saudita sabe que o regime baseado na ideologia islâmica não é muito atraente.
Veja – Apesar disso, os islâmicos moderados não parecem se esforçar muito em promover mudanças nos países muçulmanos. Por quê?
Fukuyama – Muitos se sentem intimidados e acabam ficando sem disposição para se levantar contra o fanatismo. O mundo muçulmano tem o hábito de culpar os outros por seus problemas, em lugar de assumir responsabilidades. Os muçulmanos moderados não escapam desse vício. Mas é uma questão de tempo. Duvido que a versão mais intolerante do Islã vá triunfar sobre a moderada. No final, tenho certeza, não vamos todos viver sob uma teocracia islâmica. O mais provável é que as teocracias atuais acabem por se transformar em democracias.
Veja – O senhor acredita que um dia todos os países serão democracias?
Fukuyama – Sim, em um futuro distante. O mundo tende a seguir esse caminho. Desde a década de 70 houve grande expansão da democracia liberal. Acredito que existe algo que podemos chamar de progresso histórico, muito lento e que às vezes retrocede. Neste momento estamos vivendo um período bastante perigoso da história. Há instabilidade, desordem e violência. Com certeza mais do que existia dez anos atrás. No curto prazo, teremos de enfrentar perigos sérios. No longo prazo, os conflitos armados vão diminuir à medida que houver mais democracias.
Veja – O mundo hoje é mais complicado para a política externa americana do que foi na Guerra Fria?
Fukuyama – Sim. É mais difícil avaliar com precisão o nível de ameaça enfrentado pelos Estados Unidos. Também é mais complicado saber como lidar politicamente com os problemas atuais. Isso fez surgir um sentimento de nostalgia pela Guerra Fria. A tentação é acreditar que naquela época as coisas eram mais óbvias e, em conseqüência, de administração mais fácil. O que não é totalmente verdade.
Veja – O presidente George W. Bush acredita que democracia e liberdade são valores universais. O senhor concorda?
Fukuyama – São valores potencialmente universais. O que não significa que seja possível aplicá-los em qualquer país, em qualquer época. Isso requer o desenvolvimento de hábitos e instituições básicas. É preciso desenvolver uma nova arte: a de construir Estados e nações. Essa é a chave para o desenvolvimento econômico de regiões pobres e para a manutenção da ordem mundial.
Veja – O que é exatamente a construção de Estados?
Fukuyama – É a criação das instituições que compõem um Estado e que tornam possível governar de maneira transparente e limpa. É a montagem dos elementos que façam valer as leis e as decisões tomadas pela comunidade política. A construção de um Estado geralmente começa pela coerção, ou seja, com o controle de um território usando forças militares e policiais e com a aplicação de leis. Essa é a definição clássica do que é um Estado. Nas sociedades menos desenvolvidas, o Estado não é capaz sequer de cumprir essas funções básicas. Por esse motivo, a construção de estruturas governamentais fortes é uma questão-chave na política mundial de hoje.
Veja – Governos fracos ou fracassados são a causa dos principais problemas do mundo hoje?
Fukuyama – Sim. A maior fonte de problemas são os Estados falidos. Os exemplos são o Afeganistão, a Somália e o Haiti. Esses países não têm, ou não tinham até pouco tempo atrás, algo que se possa chamar com convicção de governo. A falta de um governo que exerça as funções básicas abre espaço para doenças, como a aids, refugiados, abusos de direitos humanos. Depois do 11 de Setembro ficou claro que um Estado falido também pode alimentar o terrorismo. No século passado, todos os nossos problemas estavam relacionados ao fato de que havia Estados fortes demais – a Alemanha nazista, que provocou a II Guerra, ou a União Soviética, que levou à Guerra Fria. O problema hoje é o oposto. Há um número grande demais de Estados caóticos, incapazes de manter a ordem no próprio território. Esses são os países mais problemáticos do século XXI.
Veja – E os Estados fracos?
Fukuyama – Essa é uma categoria mais ampla de países, incluindo algumas economias de porte médio, que têm governos estáveis. Não podem ser chamados de Estados falidos, mas apresentam problemas sérios em suas estruturas e em suas instituições. Eles têm dificuldade em aplicar as leis e exibem alto nível de corrupção política. Esse conjunto de fraquezas atrapalha o desenvolvimento econômico e o esforço para diminuir a pobreza. O Brasil e os outros países da América Latina fazem parte desse grupo.
Veja – Qual é a saída para o desenvolvimento desses países?
Fukuyama – Dez anos atrás, os economistas diziam que era preciso abrir os mercados e reduzir o papel do Estado. Hoje sabemos que a verdadeira fonte de subdesenvolvimento são instituições políticas que não funcionam com eficiência. Todos os grandes países latino-americanos têm dificuldade para aplicar as leis. No México, o presidente Vicente Fox está tentando sanar as deficiências do sistema legal, incluindo nessa reforma tanto o aparelho judiciário como o conjunto de leis existentes. Um dos obstáculos para a atração de investimentos estrangeiros são as leis malfeitas que regem o direito de propriedade no México. Um tema que me interessa bastante é federalismo e descentralização na América Latina. A solução de problemas como o déficit fiscal na Argentina e no Brasil passa por maior descentralização do poder.
Veja – O partido do presidente Lula acha que o Estado precisa ter presença marcante na economia. O governo anterior, de Fernando Henrique Cardoso, defendia um Estado mais regulador que intervencionista. Qual visão é a mais correta em sua opinião?
Fukuyama – Meu instinto manda preferir a fórmula do ex-presidente Fernando Henrique. Compreendo que o que move Lula e o PT são as enormes desigualdades sociais existentes no Brasil, um dos países economicamente mais injustos do mundo. Na busca por soluções para esse problema, surge a tentação de voltar a um modelo antigo de Estado de bem-estar social, a um Estado que possa controlar todas as decisões macroeconômicas.
Veja – Na última década houve a grande onda da globalização e enorme pressão para diminuir o espaço que o Estado ocupa na economia. Isso prejudicou a solidez do governo de países em desenvolvimento?
Fukuyama – Sim, isso realmente ocorreu em muitos lugares. Os grandes conflitos do século XX foram todos relacionados ao tamanho do Estado. O comunismo e os Estados de bem-estar social queriam um Estado com funções amplas. A tendência atual é o oposto: reduzir o tamanho do Estado por meio de privatizações. Por outro lado, a pressão por ajustes fiscais no fim dos anos 80 e início dos 90 acabou em muitos países por enfraquecer os setores errados dos governos. Isso aconteceu principalmente na África. As exigências do FMI e do Banco Mundial para reduzir os setores que o Estado controlava se tornaram uma desculpa para que o governo fosse omisso em questões cruciais.
Veja – Até que ponto o aspecto cultural influencia no desenvolvimento de economias fortes e democracias?
Fukuyama – A bagagem cultural é fundamental. Nela reside a explicação para o Extremo Oriente ter se dado melhor em termos econômicos do que a América Latina. Muitos países asiáticos têm longa tradição de instituições de Estado relativamente fortes, coisa que falta aos latino-americanos. Durante mais de 3 000 anos só entrava para o serviço público chinês quem fosse aprovado em exames de seleção. O Japão, a Coréia do Sul e Taiwan também se beneficiaram desse tipo de herança cultural.
Veja – É possível criar democracias em países como o Afeganistão ou o Iraque, que nunca foram democracias?
Fukuyama – É bem difícil. O Afeganistão acabou de realizar com sucesso as primeiras eleições livres de sua história. Ainda assim, nunca será um modelo de democracia. Também não sou otimista com relação ao que pode ocorrer no Iraque. É comum a comparação desses dois países com a Alemanha e o Japão, que depois da II Guerra se transformaram em nações de sucesso. São situações incomparáveis. Tanto a Alemanha como o Japão tinham Estados burocráticos fortes muito antes de ser derrotados. Não é o caso do Afeganistão nem do Iraque.
Veja – Há alguma saída para esses países?
Fukuyama – A questão é saber se nesses países vai surgir uma demanda por instituições fortes. O sucesso depende de pessoas que realmente queiram reformas e mudanças. Não é possível criar uma nação apenas com ocupação militar ou empréstimos estrangeiros.
Veja – É possível transferir instituições democráticas fortes para países em desenvolvimento?
Fukuyama – Bons modelos de bancos centrais podem ser transplantados tranqüilamente de um país para outro. Na América Latina existem bancos centrais competentes, inspirados em modelos trazidos do exterior. Outros tipos de instituição precisam ser desenvolvidos por conta própria em cada país, como os sistemas de leis, de educação e de saúde.
Veja – Um valor defendido pelo governo americano é o livre-comércio internacional. Mas os Estados Unidos são muito protecionistas. Como se explica essa contradição?
Fukuyama – É hipocrisia, especialmente no que se refere à agricultura. Os lobbies agrários são muito fortes, não só nos Estados Unidos como também na Europa e no Japão. Todos os países desenvolvidos têm esse problema. É pior no caso americano porque somos nós quem pressiona o mundo por um comércio mais aberto. Não somos coerentes com nossa própria retórica.
Veja – Se fosse possível resolver o conflito entre palestinos e israelenses, o resto do Oriente Médio também seria pacificado?
Fukuyama – Não, há muitas outras fontes de insatisfação no Oriente Médio. A Palestina tornou-se uma desculpa para os países vizinhos adiarem reformas políticas e econômicas.
Veja – O presidente Bush se opõe às pesquisas com células-tronco. Em um país como os Estados Unidos, que sempre estiveram à frente de descobertas científicas, isso não significa um retrocesso?
Fukuyama – Na verdade, Bush permitiu algumas pesquisas com células-tronco, que eram proibidas durante o governo Bill Clinton. A crítica que se faz se refere a ele ser contra o financiamento federal para as pesquisas. Não concordo com isso. O estudo das células-tronco pode resultar em descobertas médicas importantes. Não acho que um embrião tenha o status moral de uma pessoa doente, que talvez pudesse ser salva por um remédio originado das pesquisas com células-tronco embrionárias. Espero que Bush mude de posição.