Ruy Fausto respondeu às críticas e, como resultado, temos um excelente debate público entre duas posições políticas radicalmente antagônicas do panorama político brasileiro. Mais importante, trata-se de uma contraposição entre duas posições ideológicas sérias. Um fenômeno, é preciso ressaltar, pouco comum na
mídia brasileira oligopolizada. Como resultado temos, de um lado, uma direita que recusa o racismo e o autoritarismo constitutivo do conservadorismo brasileiro e, de outro, uma esquerda abertamente crítica a certas tendências "bolchevistas" da própria esquerda.
Ao afirmar isso - é importante deixar claro -
eu não estou querendo equiparar os dois males como se fossem equívocos similares, nem mesmo sugerir que o verdadeiro debate de idéias precisa pressupor um "meio-termo" ideológico qualquer. Ressalto apenas que, no caso do debate Pessôa-Fausto, não podemos encerrá-lo simplesmente deslegitimando as posições morais (ou imorais) do adversário. Um post de facebook e algumas tiradas retóricas não são o suficiente para decidir a questão. Será preciso, ao contrário, analisar a qualidade intrínseca dos argumentos oferecidos. E, posso adiantar, a réplica de Fausto é primorosa do ponto de vista argumentativo.
Contudo, antes de passarmos a réplica de Fausto, gostaria de acrescentar um ponto mais geral sobre debates políticos na esfera pública brasileira. É importante notar uma diferença entre o que chamei acima de "pensamento político" e "ideologia" de um lado, e teorias políticas ou econômicas propriamente ditas, de outro. De fato, Fausto e Pessôa possuem uma carreira acadêmica em suas respectivas áreas de investigação, respectivamente a filosofia política e a economia e, seguramente, suas pesquisas informam e fundamentam boa parte de seus argumentos políticos. No entanto, no debate travado nas páginas da revista Piauí, temos uma troca de argumentos com um propósito prático imediato, a saber, orientar a ação e organizar um projeto coletivo de sociedade. E essa finalidade não é a mesma da teoria política (ou econômica) acadêmica.
Teorias certamente possuem uma finalidade prática importante. O ponto é que, nesse último caso, o propósito prático não é o único critério de validade relevante operante. Tampouco o elemento prático de teorias chega a ser tão imediato quanto o das ideologias. Seria ridículo imaginar que a ontologia social marxista, ou a teoria do equilíbrio geral na economia, ou ainda o contratualismo rawlsiano possam oferecer respostas políticas determinadas e indubitáveis sobre a condução prática nosso dia à dia político. Não apenas porque teorias também são objeto de interpretações e disputas permanentes na academia (isto é, teorias não são "auto-interpretadas") mas também porque a ação política imediata exige contexto concreto.
Para nos orientarmos melhor nessas distinções, tomo aqui a definição de ideologia proposta por
Michael Freeden: ideologia, ou pensamento político prático, pode ser entendida como uma espécie de "mapa" conceitual composto por valores, princípios e interpretações de fatos e eventos históricos que tem por finalidade auxiliar as nossas decisões políticas imediatas. Ideologias, assim, fazem
uso de teorias políticas e econômicas, mas não podem ser confundidas com elas. (Existe ainda uma outra diferença importante entre
pensar politicamente e
estudar as ideologias políticas, ver o
excelente verbete de Freeden sobre esse ponto). Isso não significa, por outro lado, que ideologias sejam menos importantes do que a tarefa teórica. Em uma sociedade democrática (bons) debates ideológicas são imprescindíveis.
Fausto organiza a sua resposta a partir de duas confusões conceituais assumidas por Pessôa - confusões essas extremamente comuns nos argumentos conservadores brasileiros. Em primeiro lugar, existe uma confusão entre, de um lado o
fenômeno da globalização e, de outro, as
políticas neoliberais que, segundo os seus defensores, teriam por objetivo promovê-la. O principal problema da esquerda nacional, segundo Pessôa, seria a sua dificuldade em reconhecer as duas grandes realizações do que Pessôa chama de "a era neoliberal" (dos anos 80 até hoje). A saber, a redução da pobreza global e a diminuição da desigualdade
entre os países. Fausto mostra como as duas afirmações "carro-chefe" de defensores de políticas agressivas de liberdade de capitais, liberalização do comércio e disciplina fiscal, repousam, na verdade, em uma confusão entre as políticas neoliberais, tal como desenhadas e implementadas por governos conservadores, e o fenômeno histórico da integração dos mercados globais - para ficarmos apenas com dimensão econômica do fenômeno.
Sem negar os benefícios da inclusão em massa de pessoas até então marginalizadas pelos mercados globais (como veremos abaixo, Fausto não é um crítico de mecanismos de mercado
em si), o filósofo aponta, a meu ver com razão, para certa "violência teórica" ao imaginar que foram as políticas neoliberais as grandes responsáveis pela diminuição da pobreza em escala global. Como qualquer estudioso da
pobreza global reconhece, o grande salto na diminuição da pobreza
absoluta (deixando de lado a importância dos critérios de pobreza relativa) aconteceu na Ásia, especialmente na China, países que, justamente, recusaram em maior ou menor grau a cartilha do FMI. Isso não significa, evidentemente, que o modelo asiático-autoritário seja "melhor" do que o exigido pelo FMI. Mas serve para mostrar a necessidade de respaldar afirmações exageradas como essa por meio de um retrato empírico mais rigoroso da economia mundial (isso para não falar nos casos nos quais a cartilha do FMI destrui, mais do que fortaleceu, as políticas de combate a pobreza, tal como na Grécia e, tudo indica, o Brasil nos próximos anos).
Em relação à segunda afirmação - "o neoliberalismo diminuiu a desigualdade entre países" - Fausto mostra como, novamente, precisamos levar em consideração o que ocorreu em países que não têm seguido às políticas neoliberais, ainda que não recusem, por outro lado, a globalização. O podemos afirmar
com certeza é que as políticas neoliberais aumentaram (e muito) a desigualdade
no interior das economias nacionais. É interessante notar, algo que Fausto não o faz, que a compreensão dos equívocos econômicos e políticos da agenda neoliberal tem se cristalizado não apenas em seus críticos de longa data, mas também nos próprios organismos internacionais responsáveis por gesta-los, tal como
o FMI defendido por Pessôa.
Contra essa primeira confusão conceitual, diz Fausto, precisamos trabalhar com um conceito de globalização empiricamente mais sólido. Como afirma o autor, "só se pode obter um quadro objetivo da situação atual, e assim avaliar com lucidez e justiça o que está ocorrendo no mundo, quando se faz a distinção correta desses três termos [globalização, neoliberalismo e capitalismo burocrático], estudando as relações complexas entre eles". (Para uma retrato bem mais austero das consequências econômicas da globalização do que aquelas apresentadas por Pessôa, ver o artigo do ex-economista chefe do Banco Mundial
Branko Milanovic). Podemos nos perguntar se, na verdade, não é a direta brasileira quem desistiu de entrar no debate econômico mundial de alta qualidade.
Como afirma Fausto:
"[t]emos aí uma boa ilustração de como um discurso recoberto de dados numéricos pode ser, no fim das contas, um discurso pouco rigoroso. Se os conceitos que organizam os dados não servem, não são apropriados, o discurso não tem rigor, o que não significa que possamos desprezar os dados. Eles são condições necessárias, mas não suficientes – e, em certos casos, são mesmo muito insuficientes – para que se chegue a uma análise objetiva dos processos político-econômicos que se desenrolam no mundo atual.
Por trás da argumentação de Pessôa e de seus pares há sempre a ideia de uma dualidade: ou se aceitam as recomendações do FMI e do Consenso de Washington ou, então, adotamos o modelo da Coreia do Norte ou de alguma ditadura totalitária equivalente – quem sabe, no melhor dos casos, o da Venezuela de Chávez. Monta-se uma armadilha dualista: ou aceitamos as leis do sistema – e aí entra de tudo, da taxa “natural” de desemprego aos inúmeros ingredientes tóxicos de um receituário laissez-faire – ou então optamos por um regime comunista de liquidação da economia de mercado. Ora, existe um tertius, e este não tem nada a ver com a chamada “terceira via” de Tony Blair, que de terceira não tem nada. Economia de mercado não é a mesma coisa que capitalismo, e menos ainda se identifica com um capitalismo 'financeirista'".
Esse ponto nos leva à segunda confusão conceitual apontada por Fausto. Economistas conservadores tendem a caracterizar seus oponentes de um modo excessivamente fantasioso. É como se criticar o neoliberalismo equivalesse a rejeição irracional da própria ciência econômica, ou nos casos mais graves de fervor ideológico, fosse o mesmo que recusar os próprios mecanismos de mercado. Em sua dimensão alocativa, mercados são importantes como um meio eficiente de produção e circulação de bens e produtos (inclusive do trabalho). Isso não significa, por outro lado, que precisemos aceitar necessariamente sua dimensão
distributiva. O livre-mercado não é a única forma de distribuir os benefícios e os ônus da cooperação social e, tendo em vista outros valores importantes a além da prosperidade econômica, tal como a justiça e liberdade individual, certamente não deveria ser. O que , ao contrário, a esquerda rejeita (ou pelo menos a esquerda à qual Fausto se filia) é que a eficiência de mercado tal como a conhecemos seja o sistema predominante (ou mesmo o único) de
distribuição de benefícios sociais.
Uma das seções mais importantes da resposta de Fausto lida diretamente com a dificuldade conceitual da esquerda em criticar à economia de mercado. Quanto a esse assunto, os argumentos de Fausto são direcionados tanto aos conservadores, como Pessôa, como também para parte da esquerda brasileira que simplesmente não encontrou ainda um caminho coerente em sua relação de amor e ódio com a economia (uma esquerda que busca por vezes encontrar abrigo em receituários econômicos ultra-ortodoxos). Fausto identifica no princípio de
neutralização do capital o principal objetivo de uma esquerda anti-neoliberal para as próximas décadas. E com isso entramos na dimensão propriamente ideológica do artigo, isto é, no sentido específico de orientação para ação política imediata.
É por meio de políticas e estratégias de neutralização do capital que devemos encontrar a principal contribuição econômica da esquerda para as democracias contemporâneas. Não precisamos ser utópicos ou utópicas para constatar que existe um problemas graves na acumulação descomunal de riqueza e poder de investimento em uma elite econômica que, atualmente, não encontra barreiras institucionais ao exercício de seu poder econômico e político. Por outro lado, a esquerda precisa reconhecer que os antigos mecanismos de neutralização da desigualdade social, fundados na redistribuição e centrado, sobretudo, na remuneração do trabalho não parecem estar à altura dessa nova tarefa.
Temos aqui pelo menos três grandes tendências que, se comprovadas, colocam em xeque as antigas estratégias socialistas e social-democratas (no sentido preciso do termo). Em primeiro lugar, a globalização alterou radicalmente os mercados de trabalho nacionais, introduzindo uma competição destrutiva (
race to the bottom) por trabalho precarizado, tornando, por sua vez, a estratégia político-eleitoral de encarecimento da força de trabalho uma rota suicida para partidos de esquerda. Como bem mostra Fausto, é direita ultra-nacionalista de Trump e de Le Pen quem tem atualmente tomado o caminho de fechamento das fronteiras e do discurso antiglobalização. Em segundo lugar, temos evidências para especular que a automação da produção industrial e, mais recentemente, do setor de serviços, diminuirá consideravelmente a empregabilidade de trabalhadores e trabalhadoras não-especializados. Isso nos leva à terceira razão para o ceticismo em relação as estratégias focadas apenas no trabalho. Tal como demostra
Thomas Piketty, as economias capitalistas estão se tornando cada vez mais "intensivas" em relação ao capital, aumentando estruturalmente a desigualdade funcional entre as remunerações agregadas do capital
vis-à-vis as remunerações do trabalho (fato que vale menos para economias em desenvolvimento)
Tudo indica, portanto, que o desenvolvimento econômico das próximas décadas será fundado no trabalho (não-especializado) barato e na concentração dos rendimentos do capital. A resposta econômica da direita é simples: minimizar os danos frente ao inevitável. É preciso aumentar a competitividade do trabalho local e disciplinar governos gastadores (e aqui cabe nos perguntar como um economista da qualidade de Pessôa pode, de fato, acreditar que congelar os gastos com saúde e educação melhorará a
produtividade do trabalhador e trabalhadora brasileira?). A proposta progressista de Fausto, ao contrário, é neutralizar os efeitos econômicos e políticos da concentração da
propriedade ou
do rendimento do capital, e não advogar a sua destruição. Se a concentração
do capital em relação ao trabalho parece ser inevitável, a
distribuição de sua propriedade e rendimentos não o é. Elas dependem de instituições políticas.
Enfatizar essa diferença não é nem incoerente nem utópico. Neutralizar os efeitos da concentração do capital na política ou na própria economia parecem ser, na verdade, as melhores apostas para qualquer agenda democrática. De um ponto de vista econômico, podemos imaginar uma sociedade na qual a distribuição de recursos não seja apenas
ex post, tal como nos Estados de Bem-Estar Social reais, mas também
ex ante. Isso pode ser feito, por exemplo, por meio da dotação sistemática de recursos econômicos no início da vida econômica das pessoas, seja na forma de
uma herança social, tal como teorizada por economistas como James Meade, seja por meio de um
rendimento permanente e incondicional (
i. e., não atrelado ao mercado de trabalho) tal como defendido por marxistas analíticos como
Van Parijs e
Hillel Steiner. Propostas como essas se sobrepõe também a chamada política da
predistribuição - tal como a ideia tem sido defendida recentemente por teóricos trabalhistas e social-democratas como
Martin O'Neill,
Stuart White e
Alan Thomas.
De um ponto de vista político, neutralizar o capital significa controlar a sua influência desmedida nas decisões de investimento, criação de emprego, taxa de juros. Uma forma de fazer isso é fortalecer o papel do eleitorado na composição de governos e combatendo o uso de
paraísos fiscais para a fuga de capital. Como bem demonstrado por
Piketty, a ideia de um imposto global sobre o capital não repousa apenas nos eventuais ganhos fiscais trazido pelo imposto, mas é também uma forma de tornar a riqueza privada (e não apenas a renda pessoal) mais responsiva à democracia.
Ou seja, a caixa de ferramenta do pensamento igualitário contemporâneo é muito mais sofisticada no plano teórico e diversificada no plano da implementação do que o senso comum conservador costuma representar. O próprio Fausto não apresenta essas propostas específicas em seu texto. Mas acredito que elas ilustram bem o que ele tem em mente ao propor uma luta pela neutralização do capital.
Existem muitas objeções que poderiam ser levantadas acerca da exequibilidade política desses mecanismos. É difícil evitar o pessimismo: regressamos 50 anos em 1 em 2016. Podemos, além disso, recusar a política de neutralização do capital a partir de argumentos fundados em valores. De fato, essa é a principal argumentação no discurso conservador convencional, normalmente fundado em um suposto "aspecto moralizante" (e não apenas eficiente) dos mercados para o desenvolvimento pessoal (algo completamente alheio aos fundamentos neoclássicos originais). Alguns economistas chegam, de fato, a se autocompreender como heróis da austeridade em uma missão disciplinadora do Estado. Nesses casos, argumentos politico-econômicos não surtiram efeito. O caminho, talvez, seja a filosofia moral.
Mas é preciso reconhecer, como conclui Fausto, que não há nada de economicamente idiota em propostas como essas. Ao contrário. Como mostra Fausto, a direita parece muito mais perdida economicamente em seu deserto de ideias do que a esquerda.
Lucas Petroni é filósofo e cientista político. Atualmente é doutorando em teoria política no Departamento de Ciência Política da USP.