Ainda que a noção de "poder" esteja presente em praticamente qualquer trabalho de teoria política, poucos são aqueles que procuraram definir o conceito de modo responsável. Nesse sentido o sociólogo inglês Steven Lukes (NYU) é uma brilhante exceção: em seu Power: A Radical View (publicado originalmente em 1976) Lukes argumenta em favor do que denomina uma visão "tridimensional" do conceito de poder. Em uma informativa entrevista para o Philbites Lukes reapresenta o núcleo de sua abordagem sobre o poder e a circunscreve no debate na ciência política norte-americana dos anos 60 e 70.
Um definição preliminar de poder, segundo Lukes, deveria ser algo como uma relação na qual A exerce poder sobre B na medida em que A afeta o resultado da ação de B a partir dos interesses de A (A "faz acontecer" um resultado favorável aos seus próprios interesses independentemente do que B queira ou não queira). Para Lukes, no entanto, abordagens empíricas ou pluralistas de relações de poder, tal como na famosa definição de poder de Robert Dahl, tendem a enfatizar excessivamente a dimensão intencional e unilateral do poder sobre o comportamento de outros. Relações de poder nesse sentido são intencionais e empiricamente verificáveis na medida em que para todo resultado decisório poderíamos identificar interesses "vencedores" ("As") e "perdedores" ("Bs"). De fato, trata-se de um modelo importante que possui a vantagem - nenhum pouco desprezível - de permitir a mensuração empírica em processos decisórios efetivos.
Lukes também leva em consideração a principal crítica ao modelo pluralista, a chamada "face oculta" do poder (aqui o trabalho paradigmático é Bachrach & Baratz). Segundo esse modelo, "não-ações" são tão intencionais e - portanto - tão importantes para entendermos a modificação de comportamentos alheios como as ações diretas. Por exemplo, quando um grupo consegue excluir do conjunto de possibilidades efetivas algum resultado desagradável aos seus interesses (quando o lobby da industria e do agronegócio tiram da pauta a regulação ambiental, por exemplo) claramente estamos diante de um grupo "poderoso", isto é, um grupo que conseguem afetar a ação das pessoas de acordo com seus interesses, mas que não age diretamente sobre o comportamento dos outros: a simples manutenção do status quo é suficiente para isso.
Entretanto, a despeito da importância dessas duas dimensões, Lukes adiciona uma terceira que, diferentemente das duas anteriores, não possui necessariamente um componente intencional, isto é, não pode ser imputado ao comportamento de um agente específico. Lukes tem em mente aqui processos de formação de crenças e preferências nos quais aqueles sujeitos ao poder não se submetem aos detentores do poder porque não conseguem resistir mas, ao contrário, na medida em que identificam seus próprios interesses com o dos dominadores. A faz com que o resultado desejável ocorra porque faz com que B queira que ele ocorra, mesmo que o resultado seja incompatível com sua estrutura de suas preferências.
Um exemplo pode ilustrar a terceira dimensão de Lukes. Hoje no Brasil discute-se a redução da maioridade penal como uma resposta prima facie legítima à violência social no país. A maioridade da população é a favor da medida mesmo que, de um ponto de vista sociológico, as classes mais pobres sejam as principais prejudicadas com a mudança da lei. Uma vez dentro do sistema criminal-penitenciário mesmo que por delitos de baixa gravidade - como é o caso da maioria absoluta das ocorrências - os jovens brasileiros terão poucas chances se conseguir se integrarem à sociedade pelo resto de suas vidas. Já as classes ricas, principais interessadas na causa, conseguirão manter o status quo econômico injusto do país sem ter de redistribuir riqueza, mas apenas aumentando a coerção policial.
Como explicar isso? Segundo a concepção de poder de Lukes estaríamos diante de um processo de "desenho de preferências". O mecanismo nesse caso é simples: comentaristas jornalísticos, apresentadores sensacionalistas e "experts" utilizam uma preferência amplamente disseminada e moralmente legítima (a sensação de impotência ou injustiça diante de uma crime violento) para inferir conclusões patentemente injustas (controle social por meio da coerção policial) e que satisfazem o interesse de uma parcela muito reduzida da sociedade brasileira (encarceramento da juventude negra periférica do país). Em nenhum aspecto podemos afirmar que se trata necessariamente de uma relação "intencional" de poder no qual uma agente exerce poder sobre outro (ainda que esse possa ser o caso de um Datena ou de um Alexandre Garcia) mas, nem por isso estaríamos livres de relações de poder quando assistimos aos telejornais todas as noites.
Talvez a parte mais interessante da entrevista de Lukes seja a tentativa do sociólogo de aproximar sua concepção tridimensional de poder da concepção, aparentemente distinta, de Michel Foucault em obras como Vigiar e Punir e A História da Sexualidade. A comparação faz muito sentido. Para ambos os autores exercer o poder sobre alguém não implica nem violência nem restrição, duas imagens clássicas relacionadas ao poder. Ao contrário, formas mais sutis de controle podem até mesmo "criar" novas formas de comportamento sem por isso deixarem de ser coercitivas sobre os interesses daqueles sujeitos a essas relações. Prova de que podemos ter um conceito de poder rico de uma perspectiva crítica sem termos abrir mão da clareza conceitual e do rigor analítico no processo - como é o caso, infelizmente, de alguns herdeiros do projeto de Foucault.
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