terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

A politica do desfranqueamento

Por Lucas Petroni

Na primeira sessão legislativa do ano, a câmara municipal de Jundiaí, município no interior de São Paulo, debateu e votou em plenário uma matéria aparentemente banal: a "desnaturalização" do ex-deputado federal José Genuíno do Partido dos Trabalhadores. O projeto, de autoria do vereador Paulo Sérgio Martins (PPS), representante local da bancada da bala, tinha por objetivo cassar o título de cidadão jundiaiense de José Genuíno, um título que lhe havia sido concedido em 2003 pela própria câmara municipal da cidade. O principal argumento de Martins, e do grupo que o apoiou, era o de que não era possível "admitir" que os "cidadãos de bem" de Jundiaí tivessem um "corrupto" como concidadão e que, portanto, caberia aos vereadores protegerem a imagem da cidade. (Lembremos que em 2012 Genuíno foi condenado a quatro anos de prisão pelo envolvimento no Mensalão, dos quais cumpriu apenas dois). 

Os partidos que apoiaram o projeto de desnaturatalização foram aqueles que compõem a coligação partidária da nova direita brasileira: PR, PPS, PTB, PV e PSDB (a lista detalhada dos vereadores e vereadoras que votaram a favor do projeto pode ser encontrada no portal Voto Consciente). Para a grande consternação de Paulo Sérgio Martins, a matéria legislativa foi rejeitada por apertados dois votos (10 votos a 8). Para o bem ou para o mal, Genuíno continua sendo um bom cidadão de Jundiaí. 

Duas são as razões pelas quais relato esse episódio aparentemente banal. O primeiro, e menos importante, é um motivo de ordem pessoal. Jundiaí é a cidade na qual nasci, estudei e cresci. Cidade na qual vivem (e gostam de viver) pessoas que amo e admiro. Contudo, nos últimos três anos a cidade tem passado por surtos de intolerância e violência política sem precedentes - isto é, sem precedentes mesmo para o temperamento religioso e conservador da cidade. Durante as manifestações de direita de 2015, por exemplo, o diretório municipal do PT foi incendiado. Nesse mesmo período, tornou-se pratica comum na cidade um macabro ritual de linchamento e enforcamento público da então primeira presidente mulher do Brasil, Dilma Rousseff, e do ex-presidente da república Luiz Inácio Lula da Silva. Após serem linchadas (um ato de significado racial evidente) as efígies de Dilma e Lula costumavam ser enforcadas na ponte mais importante da cidade. Normalmente, selfies de homens e mulheres embrulhadas na bandeira nacional se seguiam ao ritual. 

A escalda de intolerância na cidade fez com que muitos amigos e amigas, que também deixaram a cidade, tenham evitado frequenta-la. A tentativa de cassar a cidadania de oponentes políticos, portanto, é apenas mais um capítulo dessa triste história de ódio político que, acredito, está longe de ser um caso isolado. Para ser sincero, não me sinto mais totalmente seguro em expressar as minhas opiniões, ou mesmo as conclusões de meus trabalhos, em solo jundiaiense. Acredito que, infelizmente, essa experiência de afastamento esteja se tornando cada vez mais comum. 



Sessão da Câmara de Vereadores de Jundiaí na qual o projeto de desnaturalização do ex-deputado José Genuíno foi votado


O segundo, e mais importante, motivo pelo qual resolvi apresentar a aventura fracassada de Martins é de natureza teórica. Notemos que o caso todo é, a primeira vista, duplamente cômico: tanto a dimensão da matéria (a retirada da cidadania municipal de Genuíno), como o seu desfecho fracassado, nos convidam a não levar a sério o ocorrido. Essa foi, justamente, a reação mais comum das pessoas com quem compartilhei a história. Na verdade, poderíamos até mesmo especular se, de fato, Genuíno gostaria de ser cidadão de um município conservador do interior de São Paulo...

Gostaria de mostrar, contudo, por que não acho o ocorrido banal. De um ponto de vista moral, não há nada de trivial ou cômico em programas de desnaturalização. Se por um lado, de fato, as circunstâncias particulares do episódio beiram o anedótico, de outro, o tipo de raciocínio por trás de desnaturalizações é algo extremamente preocupante. Acredito que a natureza pitoresca do servia mesmo como uma espécie de vantagem "metodológica": ele nos ajuda a entender o rationale da segregação moral justamente porque é anedótico. Podemos analisar sua natureza e suas consequências sem termos que, de saída, entrarmos nos meandros sinuosos da atual selvageria política brasileira. No final deste post prometo apresentar um outro caso, muito mais preocupante, dessa mesma lógica. 

Chamarei atitudes individuais, ou programas coletivos, de desnaturalização como a política do desfranqueamento. O nome é ruim, admito. Ele remete ao processo de disenfranchisement político, no qual grupos sociais procuram dificultar o acesso ou mesmo cassar os direitos de participação política de minorias ou grupos rivais. Mas a designação é útil, na medida em que evita a ideia de pertencimento "natural" associado à noção de desnaturalização. Quando cassamos os direitos e prerrogativas legais de alguém estamos retirando do seu alcance algo de importante o qual, supomos, as pessoas não deveriam ter que abrir mão. Contudo, o valor daquilo que lhe é tirado ou tirada não é valioso necessariamente por que se trata de algo "natural". Essa distinção fica mais evidente quando pensamos no caso da desnaturalização nacional: existe, realmente, algo de "natural" em ter nascido em um dado país, ou trata-se apenas de um golpe da fortuna? O neologismo desfranquear retém, por outro lado, aquilo que importa na desnaturalização: seu o elemento necessário ou mandatório (ainda que não "natural").

Em todo caso, o desfranqueamento é a tentativa de retirar de alguém direitos ou prerrogativas legais previamente existentes. A política de desfranqueamento, por sua vez, é a prática de retirada de direitos com uma finalidade específica: abolir os deveres e obrigações que a sociedade possui em relação a alguém por meio do banimento legal (ou moral) dessa pessoa. Expulsa-se da comunidade política quem não merece fazer parte do "nós" coletivo. A política do desfranqueamento, portanto, é a alienação legal com o objetivo de tornar alguém, ou um grupo de pessoas, um outro.

De um ponto de vista puramente estratégico, é relativamente fácil entender por que as pessoas lutam para retirar direitos umas das outras. Direitos individuais são um recurso social importante (imprescindível?) para uma vida digna, segura e produtiva. Tentativas de desfranqueamento legal, nesse sentido, representam uma resposta à própria função dos direitos individuais. Mas qual é, exatamente, essa função?

Existem muitas razões pelas quais direitos são importantes. Na filosofia do direito, duas teorias principais disputam qual seria precisamente essa função.

Um delas sustenta que a função dos direitos é promover os interesses (efetivos ou potenciais) básicos de agentes morais. Essa é a chamada "teoria dos interesses". Interesses básicos são objetivos. Eles são derivados de nossa própria condição de indivíduos biológicos e sociais. Em certo sentido, portanto, eles independem daquilo que os próprios indivíduos acreditam ser importante. Por exemplo, o direito a um processo legal imparcial é de interesse de todas as pessoas que por ventura venham a precisar desse processo uma vez, embora a maioria nunca tenha, de fato, que passar por isso. Eles também são independentes do próprio exercício consciente do direito: um bebe recém-nascido teria o interesse em ter sua integridade física e psicológica respeitada mesmo que ele ainda não seja capaz de valorizar esses interesses. A principal vantagem da teoria do interesse é encontrado em sua amplitude de escopo. Uma defesa clássica dessa teoria pode ser encontrada nos trabalhos do filósofo utilitarista inglês Jeremy Bentham. Já uma defesa contemporânea, dentre outras, foi apresentada pelo filósofo de Cambridge Matthew Kramer

De outro lado, encontramos uma teoria que afirma que a principal função dos direitos individuais seria a de proteger a autonomia dos indivíduos que os possuem. Essa é a chamada "teoria das vontades".

Direitos funcionariam como pequenas jurisdições individuais dentro das quais a vontade individual precisa ser tomada como soberana. Em uma sociedade regida pelo direito, de acordo com a teoria das vontades, seriamos todos "pequenos soberanos" em certas esferas de conduta. Um exemplo típico do valor associado ao controle autônomo de nossas vidas, seria a soberania individual no exercício privado de nossa sexualidade, ou da capacidade de estabelecer contratos legítimos. A função do direito, nesse caso, deveria ser entendida como o controle individual sobre os tipos de obrigações que os outros possuem, ou não possuem, em relação a nossas ações. (Notemos que nesse caso, apenas uma pessoa autônoma poderia "abdicar" de um direito, uma vez que sua existência tem como justificativa proteger nossa esfera de decisão individual). Um defensor famoso dessa concepção foi Immanuel Kant. Uma versão contemporânea pode ser encontrada na obra de Hillel Steinerfilósofo canadense teórico do libertarianismo de esquerda.

As disputas entre as duas teorias é longa e esta longe de acabar. A despeito de suas diferenças, no entanto, podemos assumir que a existência de direitos individuais se justifica de um ponto de vista moral na medida em que existem certos atributos, ou classe de atributos da nossa vida individual (interesses, decisões, etc.) que são valiosos e, portanto, necessitam de uma proteção especial. Instituições legais seriam os mecanismos sociais que obrigam a todos nos, membros de uma mesma comunidade legal (ou moral, no caso dos direitos humanos) a levar a sério esses atributos valiosos. Gostemos ou não, temos obrigações a respeito de portadores e portadoras de direitos (mais uma vez, obrigações legais ou morais).

É fácil entender, portanto, por que a retirada de direitos é assunto tão importante. Sem eles, estamos muito mais vulneráveis a ações que escapam a nossa esfera de controle. Retirar o direito de alguém equivale a retirar uma forma de poder individual. É nessa chave que o desfranqueamento é entendido na ciência política e no direito. Eles representariam um tipo de instrumento ("trunfos") a nosso dispor que podemos usar, de preferencia estrategicamente, contra instanciais mais poderosas do que nós - como o Estado ou maiorias políticas. 

Chamemos isso de desfranqueamento legal do outro. Por si só, o desfranqueamento legal é matéria de de interesse (e certamente de preocupação) de qualquer pessoa que acredite na importância de direitos individuais. Quero chamar a atenção, contudo, para um outro sentido de desfranqueamento, menos notado, mas igualmente preocupante, que histórica e conceitualmente acompanham programas de desnaturalização (ou desfranqueamento legal). Trata-se da tentativa desfranqueamento moral do outro.

Para entender esse sentido, precisamos voltar à natureza dos direitos individuais. Havíamos notado que, por definição, direitos geram obrigações. O que isso significa?

Obrigações são diferentes de simples atos de caridade. Quando afirmamos que alguém possui um direito, como o direito de expressar as suas ideias e opiniões políticas livremente, ou um direito a ter direitos, como no caso da cidadania, estamos nos comprometendo com certa incondicionalidade desse benefício. Ações benevolentes podem ser objeto do nosso apreço moral ("que caridoso que fulana é com os necessitados!") e, enquanto tal, são boas. Contudo, uma ação com base em direitos é algo que pode ser exigido de alguém: se alguém possui o direito de expressar livremente suas opiniões, temos a obrigação de respeitá-lo, se alguém tem o direito de não ser um cidadão ou cidadã de segunda ordem, então temos a obrigação de tratá-lo(a) como um(a) igual.

Existe uma diferença importante entre, de um lado, um grupo de amigos que "permitem" por sua boa vontade que um conhecido manifeste suas opiniões em um jantar, com a condição de que elas não ofendam a sensibilidade dos anfitriões e, de outro, uma cidadã com o direito (incondicional) de manifestar suas crenças religiosas e políticas, custe o que custar. Ainda que tais crenças sejam ofensivas aos bons costumes da comunidade, e o direito seja válido em seu natureza e execução, nos encontramos em uma relação de obrigação de não-interferência (novamente: custe o que custar).

Um outro modo de entender a natureza normativa das obrigações é por meio de sua falha. Quando alguém falha em respeitar direitos, essa pessoa encontra-se, automaticamente, sujeita à responsabilização moral, algo que pode variar da sanção legal até a reprovação coletiva. Quando falhamos em cordialidade ou benevolência, ao contrário, podemos ser ser taxados de chatos ou avarentos - mas não há nada precisemos nos responsabilizar enquanto sujeitos morais. Direitos possuem um  elemento de incondicionalidade que dádivas ou favores não possuem. É por isso que falamos em direitos como algo a ser conquistado, em oposição a sua mera concessão graciosa. 

É sobre esse elemento de incondicionalidade próprio do direito que trata a política do desfranqueamento. A simples existência de direitos legítimos acarreta, ainda que indiretamente, uma forma de responsabilidade pessoal por seus portadores. Quando o direito de alguém é violado, todos somos penalizados. Cada pessoa da comunidade é tão importante na cadeia de responsabilização moral quanto todas as demais. Ao partilharmos um mesmo estatuto normativo, isto é, enquanto sujeitos de direito, partilhamos, consequentemente, de uma mesma responsabilidade: a responsabilização mútua por nossas ações.

Trata-se de uma responsabilidade indesejadas e muitas vezes difícil de ser adequadamente cumprida. Tão difícil em alguns casos que procuramos expulsar desse sistema de responsabilização mútua quem discorda de nós, ou do nosso modo de vida. O problema é que não faz sentido, de um ponto de vista moral, banir alguém da comunidade de direitos. Sua força é derivada de sua incondicionalidade. Como afirmou certa vez Gregory Vlastos acerca desse ponto, "a comunidade moral não é um clube do qual as pessoas podem ser expulsas por má-comportamento" (Equality and Justice). Existem coisas que devemos uns aos outros derivados do simples fato de que partilharmos um mesmo status (legal ou moral). Obviamente, devemos punir ou restringir a ação de transgressores de direitos individuais. Mas esse é, justamente, o ponto de Vlastos: a transgressão da lei não coloca alguém para além da moralidade, mas ao contrário, nos responsabiliza enquanto agentes morais. Caso direitos individuais dependem-se do mérito individual e no do pertencimento normativo à uma comunidade (moral ou legal), então eles não seriam direitos propriamente, mas favores ou graças concedidas às pessoas.

Chegamos assim ao caráter moralmente problemático da política do desfranqueamento. Ao condicionar o pertencimento de alguém ao conteúdo de suas expressões, ao mérito de seus atos, ao às respectivas filiações partidárias, estamos, na verdade, recusando que os sujeitos desses direitos mereçam possuí-los. Notemos - e esse ponto é importante - que em última medida não importa de que modo as pessoas façam uso desses direitos. Seu valor reside na possibilidade das pessoas poderem usá-los "errado". Normalmente, tentativas de desfranqueamento moral são justificadas com base na (suposta) inferioridade do outro. Os tipos específicos de inferioridade variam: intelectual, moral, "racial", etc. Mas o objetivo em todos os casos é sempre o mesmo: a cassação de direitos o outro justifica-se na medida em que precisamos proteger quem, de fato, merece ser um portador ou portadora de direitos. Logo, o infame slogan "direitos (apenas) para pessoas direitas".

Formulado de outro jeito: se o desfranqueamento legal é cassação dos direitos de alguém, o desfranqueamento moral é a cassação do outro enquanto um sujeito de direitos.

Evidentemente, existe um abismo entre negar a existência de direitos humanos, de um lado, e negar uma cidadania municipal, de outro. Como afirmei anteriormente, o exemplo é de natureza estritamente argumentativa. Mas percebamos, por outro lado, que a lógica do argumento é terrivelmente similar. Por um lado, o desfranqueamento legal de Genuíno pode ser algo banal. Mas certamente é a tentativa de desfranqueamento moral que motivou o vereador, e o seu grupo expressivo de apoiadores e apoiadoras, a mobilizarem politicamente a cidade e a primeira sessão legislativa do ano.

O condicionamento do outro à sua concordância bem-comportada frente aos nossos valores caracteriza uma definição possível da intolerânciaNesse sentido mais geral, a política do desfranqueamento pode ser entendida como a atitude de intolerância pessoal elevada à política de Estado. Como mostram o principais autores e autoras anti-autoritários do século XX, e. g., Hannah Arendt, Claude Lefort, Judith Shklar, etc., a retirada de direitos políticos e legais de minorais por mais fracos e sem efetividade que tais direitos sejam, é a condição de possibilidade para a utilização do terror como política de Estado. Segundo esse modo de conceber regimes autoritários, o desfranqueamento legal é a condição de possibilidade para a plena realização do desfranqueamento moral. A "limpeza moral" da sociedade começa na medida em que apenas as pessoas com os valores corretos encontram-se protegidos pela força da lei. 

Havia prometido no início deste texto oferecer outro exemplo recente da política do desfranqueamento. Encontramos fortes indícios dessa política nas posições no atual ministro da justiça, e provável ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre Moraes. Essa me parece ser no  momento sua incarnação nacional mais grave.

Moraes foi explícito em seu discurso ao sustentar que "nenhum direito é absoluto". Inicialmente, pensávamos (eu pelo menos pensava) que Moraes estava se referindo apenas aos direitos sociais que o seu governo havia tão entusiasticamente se comprometido em revogar após o golpe parlamentar de 2016. A promessa se manteve: após destituir ilegitimamente o direito político de milhões de brasileiros e brasileiras de se autogovernarem, seu governo desmantelou as bases do Estado de bem-estar no Brasil. Isso por si só já seria uma forma brutal de retirada de direitos: ao congelar o gasto social por duas décadas, Temer e Moraes estão pondo em questão a efetividade de todos os direitos sociais garantidos pela Constituição. 



Alexandre Moraes: a expressão mais violenta da atual política do desfranqueamento


Entretanto, após o escrutínio público sobre a sua carreira disparado por sua a nomeação, descobrimos (eu pelo menos descobri) que a política de desfraqueamento de Moraes é ainda mais abrangente e radical do que se pensava. Hoje percebo que devemos tomar Moraes em sua literalidade: nenhum direito é incondicional

Ao longo de sua polêmica carreira como político e professor de direito, Moraes notabilizou-se por lutar pela restrição dos direitos dos seus adversários políticos e de todos que discordem de seus valores. Um caso particularmente sintomático de suas convicções morais foi apresenta aos alunos e alunas do curso de direito da USP na forma de uma defesa velada da tortura como instrumento de segurança nacional.

Em uma aula no curso de direito da USP, Moraes utilizou o famoso "cenário da bomba-relógio" (frequentemente utilizado por juristas conservadores norte-americanos na justificativa da "guerra contra o terror"). O cenário é mais ou menos o seguinte: uma bomba está prestes a explodir e um suspeito (para quem?) teria a informação sobre qual seria o local exato da explosão. A pergunta supostamente "filosófica" por trás do exemplo seria a de saber se, nesse caso específico, seria admissível obter informação por meio da tortura do inimigo. Podemos recusar a dignidade humana de quem não a merece para salvar os membros inocentes da nossa comunidade? 

O raciocínio pressuposto por Moraes representa perfeitamente a lógica do desfranqueamento: procura-se encontrar brechas nos modos de responsabilização sobre o destino do outro. Por que não reconheço seus valores, então não temos responsabilidade mútua. Dessa forma, o acesso aos direitos básicos garantidos pela Constitução (e pelo direito internacional)  encontra-se sempre em regime condicional. Sua vigência pode ser revogada a qualquer momento.

Mais uma vez: não estou sugerindo que devemos proteger incondicionalmente pessoas que atentam contra a vida alheia. Caso suas ações criminosas sejam comprovadas - algo que, diga-se de passagem, deveria passar pelo devido procedimento legal e não pelas aspirações benevolentes de um interrogador - então o criminoso deveria ser responsabilizado. Mas, novamente, os seus atos não o retiram do reino dos direitos, a ponto da comunidade moral ganhar discricionariedade absoluta sobre seu copo e seu sofrimento. Em outras palavras. O que estou negando é que seja moralmente aceitável retirar a humanidade de alguém enquanto política de Estado. 

Não nos é dito qual foi a resposta de Moraes ao cenário da bomba-relógio - o provável ministro não comenta seu passado conturbado como teórico do direito. Mas isso não é o mais importante. Sabemos qual é a atitude geral de Moraes enquanto político e ministro da justiça. Tal como explicitamente reiterado em seu discurso de posse, a existência e a efetividade de direitos encontram-se condicionadas ao "bom funcionamento do país". No seu entender, direitos individuais não devem ser considerados nem conquistas históricas, nem partilham da incondicionalidade referida acima. O direito do outro seria, no melhor dos casos, um insumo técnico na produção da prosperidade do novo regime.  

A política do desfranqueamento é um caso extremo de recusa de responsabilidade sobre o outro. Ela exige que dissidentes ou discordantes não sejam entendidos enquanto pessoas, sujeitos de interesses e autonomia. Mas sim como uma espécie de problema social a ser gerido por aqueles que, tanto no caso de Moraes como no do zeloso edil jundiaiense, acreditam ter a verdadeira compreensão dos valores da sociedade em que vivem.


Lucas Petroni, é cientista político e filósofo. Atualmente, é doutorando em teoria política no Departamento de Ciência Política da USP.