Por Renato Francisquini
Trata-se
de uma estratégia consagrada: para recobrir de legitimidade o nosso argumento,
o remetemos ao signo da objetividade. Essa retórica não é, de maneira alguma,
inédita, nem tampouco podemos dizer que se sustente em bases idênticas. A
objetividade, via de regra, aparece calcada no método supostamente neutro
através da qual uma interpretação (que teme assumir-se como tal) foi produzida.
Ela surge como um olhar imparcial sobre as questões em tela, como o compromisso
ético com a informação (no caso do horizonte utópico do jornalismo), como uma
leitura precisa da letra da lei (em julgamentos institucionais nas cortes
judiciais), ou mesmo como uma verdade incontestável (nas respostas que
reivindicam o monopólio da razão em assuntos essencialmente contestados, que
vão desde a interpretação da Constituição até os veredictos relativos à ciência
econômica).
Não
desconhecendo decerto a longevidade do expediente, Joel Pinheiro da Fonseca,
que no seu currículo (economista, com mestrado em filosofia e membro
da equipe de comunicação do Partido Novo) mostra experiência em diversas das
áreas mencionadas acima, lançou mão desse subterfúgio para se opor à visão de Jessé de Souza sobre o atual
processo político que, entre outras coisas, concorre para o impedimento da
presidente Dilma Rousseff. Souza não precisa que alguém se interponha no debate
para redarguir à oposição de Fonseca à sua interpretação - ele tem razões
suficientes e particulares para rebater o que lhe fora contestado -, por isso
não é este o meu objetivo aqui. Vou me dedicar, no que se segue, a discutir as questões levantadas por Fonseca que me
parecem transbordar os limites do que se dirige à visão esposada por Souza no
artigo para a Ilustríssima, lançando luz notadamente sobre a aspiração
auto-proclamada de revestir-se do véu da objetividade.
Fonseca
inicia sua análise fazendo um mea-culpa sobre um julgamento que ele mesmo
apresentara em outras ocasiões à Folha de São Paulo. Naquele momento, lhe
parecia indesejável - ainda que legítimo - recorrer ao impedimento da
presidente, uma vez que "o governo se emendaria, seguiria contrito e bem
ou mal faria o ajuste necessário; o governo estaria bastante desgastado, e o
projeto fracassado do PT seria rechaçado nas urnas em 2018". Tendo em
vista o desgaste político do governo, a fragilidade da coalizão legislativa e a
evidência da realidade, Dilma não arriscaria outras inovações no plano da
economia, fazendo o que era uma exigência mais do que óbvia, para Fonseca.
Ademais, em 2018, os eleitores reconheceriam - finalmente! -, após três pleitos
em que se equivocaram (ou foram enganados, quem sabe?), o fracasso do projeto
petista.
Percebe-se
desde logo que não se trata de uma opinião sujeita ao contraditório: Fonseca
sabe que, objetivamente, o projeto fracassou e os ajustes que ele deseja
emergem como verdades indisputáveis, embora se exima de afirmar precisamente
por quê. Uma pista se encontra no parágrafo seguinte, quando ele nos apresenta
parte das razões que justificam a sua mudança de posição quanto ao recurso ao
impedimento. Nos diz o autor que (1) "[t]emos um governo a serviço do
partido, que já abandonou qualquer projeto de ajuste e que se mostra incapaz de
governar"; e que (2) "a economia não dá sinais de melhora, e o
desemprego já passa dos 10%".
O
primeiro motivo é claramente um julgamento de valor, o que o autor pretendia
evitar. Mesmo os que concordam com essa posição haverão de considerar,
entretanto, que ela carece de mínima avaliação empírica. Trata-se de uma
variação da boa e velha acusação de que a política, particularmente aquela
levada a cabo pelos partidos de esquerda (estou considerando aqui que o PT é um
partido que se localiza à esquerda do espectro ideológico, em que pese tudo o
que poderia ser dito contra essa definição), deve ser abandonada ou, quando
muito, subordinada à consideração técnico-científica consagrada nas ortodoxias
vigentes. Este é o argumento mais sofisticado que, bem ou mal, está por trás
dos pedidos de cassação do registro partidário do PT e até mesmo da reação
violenta de alguns setores, que eclodiu já em junho de 2013, contra as
bandeiras partidárias e tudo o que representa a política ideológica. Haveria,
de acordo com essa visão, uma razão que está acima das meras disputas entre
perspectivas concorrentes sobre a boa sociedade, que assegura que os
"ajustes" são cientificamente necessários.
O
segundo motivo elencado acima, por sua vez, ao menos se reveste de uma aparente
objetividade, pois Fonseca se vale de números e de uma percepção amplamente
difundida na sociedade brasileira, a saber, de que a política econômica petista
levou o país à decadência, combinando baixo crescimento (chegando à retração em
2015), inflação e desemprego. De fato, havemos de concordar com o autor que a
economia brasileira passa por um momento de enorme dificuldade, pois as taxas
de desocupação crescem de forma exponencial desde 2014, assim como houve uma
piora aguda nos números do PIB e um repique de inflação acima da meta em 2015
(que deve se repetir, em menor escala porém, em 2016). Não me parece contudo,
que estes números, por eles mesmos, justifiquem a afirmação peremptória de que
o projeto do PT fracassou.
Há
quem sugira que o PT sequer chegou a ter um projeto abrangente de país. O certo
é que, desde 2003, as coalizões comandadas pelo partido implementaram medidas
de valorização do salário mínimo, de transferências de renda para eliminar a
miséria e a fome, de redução do desemprego, além de uma política econômica
voltada para o fortalecimento do mercado interno e das empresas nacionais, e
uma política externa orientada para o robustecimento da aliança regional e uma
valorização das relações com os países do sul global. Concordemos ou não, os
governos Lula e Dilma orientaram-se objetivamente nesse sentido e foram
relativamente bem-sucedidos, mais em algumas áreas do que em outras. Qualquer
análise objetiva deve começar por aqui. Se discordamos das escolhas feitas, é
necessário demonstrar por quê e em que medida as decisões tomadas levaram aos
problemas que ora observamos no mundo. E esta análise deve assumir, de saída,
que recorre a um julgamento de valor. Da forma como vejo, incorremos em um erro
idêntico ao desconsiderarmos a contribuição dos governos do PSDB (1995-2002)
para a estabilidade econômica e o início da modernização das políticas sociais,
de um lado, e a importância fundamental dos governos do PT (2003-) para a
continuidade desse projeto e a redução das desigualdades, de outro.
Para
refutar o "julgamento objetivo" de Fonseca sobre a derrocada do
projeto do PT, basta lembrar que o período FHC teve taxa de crescimento média
de 2,32%, enquanto o desemprego subiu de 8,3% para 12,3% entre 1994 e 2002. Ao
passo que entre 2003 e 2013 o crescimento médio foi de 3,32% e o desemprego
caiu de 12,3% para algo em torno de 5% em 2014. É claro que desde as últimas
eleições houve forte retração da atividade econômica, assim como o desemprego
chegou aos dois dígitos em um curto espaço de tempo. No entanto, é preciso
lembrar que a taxa de desemprego ainda é menor do que em 2002, assim como a
inflação, que subiu fortemente em 2015, dá sinais de voltar à meta estabelecida
pelo Banco Central, além de ser, na média, inferior ao período do governo FHC.
Desconsiderei acima, propositalmente, os anos mais recentes, mas não para
ludibriar o leitor. Penso apenas que os erros deste período não podem ser usados
para apagar os acertos do passado.
Tais
fatos, notadamente os inúmeros problemas que se nos apresentam atualmente,
devem nos levar a uma avaliação crítica das escolhas que contribuíram para a
piora dos indicadores econômicos. Contudo, não me parece em absoluto que
justifiquem o veredicto do fracasso do projeto petista. Ademais, a menos que
nos fiemos em uma visão estreita e elitista sobre a racionalidade dos
eleitores, que justifica, entre outras coisas, a sugestão de que os
beneficiários de programas de transferência de renda deveriam ter os seus
direitos políticos temporariamente suspensos, é preciso aceitar que houve
motivos razoáveis para que a maioria dos brasileiros optasse por eleger e
reeleger Lula (2006) e Dilma (2010 e 2014). Caso não façamos esse exercício,
trata-se, como Fonseca acusa Souza, de uma interpretação "amplamente
guarnecida de adjetivos e juízos de valor, mas desprovida de fatos", que
"faz acusações sem prova e rebaixa a discussão, tudo para proteger um
projeto de poder particularmente criminoso, cuja incompetência tem destruído
[ou pode levar à destruição] o sonho de milhões de brasileiros" que
melhoraram as suas condições de vida nos últimos 20 anos. Sim, desde 1994!
Embora, a partir do meu próprio julgamento de valor, que não considero um
defeito em qualquer argumento, desde que devidamente justificado, entenda ter
havido um importante turning point em 2003, quando as
políticas mencionadas acima tornaram-se prioridade do governo.
Quem
apoia o impedimento?
Para
refutar uma opinião, difundida entre setores da esquerda, segundo a qual a
rejeição aos governos do PT seriam decorrência exclusivamente de um ódio de
classe, que emerge com a ampliação do acesso de uma parcela da população a
serviços antes monopolizados pela população de renda mais elevada, Fonseca
recorda o apoio, suponho que mais tácito do que explícito, de grandes empresas
aglutinadas na Fiesp (a "av. Paulista" do autor) e do mercado
financeiro aos projetos do governo. Essa afirmação soa, para dizer o mínimo,
inexata. Em primeiro lugar, não me lembro de ter lido ou ouvido desses atores
uma declaração sequer de suporte ou mesmo de elogio envergonhado às medidas
implementadas pelo governo. Exceto talvez em um passado longínquo, quando Lula
vivia ainda uma lua-de-mel com a sociedade. Ademais, se o projeto era objetivamente
um fracasso desde o início, o que teria levado empresários e banqueiros a,
primeiro, apoiar, e, agora, a cerrar fileiras e a ensaiar a tentativa de
liderar o processo de destituição? Sem explicar mais apropriadamente o que
houve, as palavras de Fonseca parecem mais um exercício de retórica vazia com
reclamos de autoridade.
Ainda
que seja um exagero eleger o ódio de classes como principal responsável pela
reação que ora assistimos, nos aplausos aos meios de comunicação e nas panelas
que deixam a cozinha para chegar à varanda, não podemos nos frutar de perceber
que, em alguns casos, há, sim, um incômodo fomentado pelas políticas que vêm
garantindo oportunidades mais generosas para uma enorme quantidade de pessoas,
não apenas no acesso ao consumo, mas, para ficar em um exemplo que me parece
mais eloquente, ao ensino universitário público. As políticas de cotas sociais
e raciais, se mantidas no futuro, vão mudar de forma intensa a paisagem das
universidades federais, que antes eram o quintal de casa das famílias mais
abastadas. Políticas como essa seguem causando reações também exageradas em uma
parte da sociedade. Assim como ainda ressoam na sociedade informações que dão
conta de um processo de transformação do Brasil em um país comunista por causa de
políticas de transferência de renda, do Mais Médicos e até da regulamentação da
profissão de empregados domésticos. Já quando o ambiente econômico parecia
relativamente estável, quando tratava-se do acesso de uma parcela maior da
população aos shoppings e aeroportos, não havia um movimento consolidado pelo
impeachment, surgiram resistências da parte mais aquinhoada da população, como
provam o "movimento" Cansei, do pré-candidato à Prefeitura de São
Paulo, João Dória, e o sucesso de figuras como o músico neo-direitista Lobão.
Nesse aspecto, a polaridade de que tanto reclama Fonseca foi fomentada por
publicações como a Revista Veja e pela Rádio Jovem Pan, que aproveitou a
ascensão de pontos de vista mais conservadores como estratégia de mercado
(sobre isso ver matéria da Revista Piauí).
Mas
a falácia da objetividade de Fonseca torna-se mais patente quando observamos os
dados aferidos nas pesquisas de opinião que analisaram o apoio ao impedimento e
o perfil socioeconômico dos que foram às ruas contra o governo Dilma. Segundo o Datafolha, 61% dos brasileiros defendem a
destituição da presidente, o que torna óbvio que não é apenas a porção mais
abastada a dar suporte ao processo. No entanto, isso tampouco nos permite
sugerir, acriticamente, que tenha sido o apoio dos mais pobres o ponto central
para que o impedimento tenha ganhado força nos últimos meses - o apoio,
inclusive, caiu desde março, quando 68% disseram estar de acordo com o
impeachment ao mesmo Datafolha. Ora, ao contrário do que sugere o senso comum,
para quem há uma ampla e incontestável maioria a favor da destituição, 33%
(ainda de acordo com a mesma pesquisa) continuam discordando do prosseguimento
do processo; número, aliás, próximo aos cerca de 40% dos votos obtidos por
Dilma nas eleições de 2014 (votos totais, não votos válidos). Se é incorreto
dizer que apenas a parcela mais rica da população defende a saída de Dilma -
embora o perfil dos manifestantes que foram à Av. Paulista nos protestos contra
o governo sugira tratar-se de parcela de renda bem mais alta do que a média dos
brasileiros -, parece mais absurdo ainda sugerir, como Fonseca, que apenas a
"nossa elite cultural engajada" considera inadequado remover a
presidente. Engrossam o coro contra a defenestração, suponho, uma parcela da
população que sentiu na pele as melhorias decorrentes das políticas
implementadas por Lula e Dilma (que, provavelmente, votaram no PT nas últimas
eleições), além de outros que, mesmo se opondo ao governo, entendem tratar-se
de medida desprovida de legitimidade e contrária à estabilidade da democracia.
Neste
ponto, Fonseca finalmente menciona aquele que parece ser o núcleo do movimento
de desconstrução que vem se constituindo desde o início do governo Lula, a
saber, a corrupção, que seria o "fruto de um projeto de captura do Estado
que viola as regras mais elementares de nosso sistema". Segundo o autor,
seria equivocado associar os desvios de conduta e a apropriação privada de
recursos públicos ao sistema econômico capitalista, pois "países muito
mais capitalistas que o Brasil não têm a mesma corrupção que nós". Essa
ideia incorpora concomitantemente duas concepções distintas: primeiro, uma que
aponta que do fato de haver corrupção no capitalismo não decorre
necessariamente que todo país que adota o sistema capitalista terá elevada
corrupção, com o que estou de acordo; e, segundo, outra que sugere que o
problema do governo petista foi ter violado as regras do nosso sistema, com o
que o autor opõe um mercado virtuoso, sobretudo quando livre de qualquer
interferência, ao Estado e à política ideológica como responsáveis pela
tragédia de nossa situação, do que discordo.
A
parte complementar do argumento levantado por Fonseca deixa de lado um fato
fundamental: a ausência do Estado não leva a uma ausência completa de regras,
mas à regulação por agentes privados que não têm qualquer obrigação de serem
responsivos aos interesses dos cidadãos - este argumento subjacente pode nos
levar a suspeitar novamente da desconfiança de Fonseca em relação à capacidade
dos eleitores de tomar decisões autônomas. Da ausência do Estado na organização
e na correção da operação do mercado decorre a permissão, de acordo com a
linguagem popular, para que as raposas sejam responsáveis pela proteção do
galinheiro. O autor parece não se dar conta de que boa parte das violações
descobertas decorrem da simbiose entre interesses políticos, o principal deles
de se eleger, e os interesses econômicos das empresas e de seus acionistas na
prosperidade e no lucro dos seus negócios. Por mais que haja um esforço,
facilitado pela nossa cultura política, de lançar luz apenas sobre a parte que
cabe ao Estado e aos políticos nos esquemas de corrupção, essa narrativa conta
apenas metade da história. E o que é mais curioso, ela obscurece justamente o
lado que nos permite entender mais adequadamente as violações de ambas as
partes, isto é, o modus operandi do sistema de intermediação
que organiza as relações entre o Estado e o mercado.
Temos,
de um lado, inúmeros partidos e lideranças políticas ávidos por recursos que
lhes tornem competitivos na arena eleitoral, uma vez que a literatura e a
prática mostram a forte correlação entre a quantidade de recursos investidos
nas campanhas e o sucesso nas urnas. Fazer campanha no Brasil, em um sistema
eleitoral no qual os candidatos ao legislativo são estimulados a adotar uma
estratégia individualista, em um contexto de enorme competição e pouco espaço
para a apresentação de suas ideias, é extremamente custoso. De outro lado,
temos poucas empresas, com interesses nos gordos contratos com o poder público,
e recursos abundantes (tendo em vista que o teto para doações é proporcional e
não nominal) para investir, literalmente, na busca por influência política,
seja no âmbito mais geral da política econômica, seja, como aparece mais
claramente agora, na conquista de espaços nas empresas estatais - para não
falar na possibilidade sempre presente de conluio entre as grandes doadoras,
notadamente do setor da construção civil, para manipular licitações. Ora, não
fica difícil entender como o círculo se fecha.
E
a simbiose não é privilégio apenas dos partidos da atual coalizão governista.
Matéria do jornal Valor Econômico do dia 22 de abril deste ano aponta que o
senador José Agripino Maia (DEM-RN), "é alvo de um inquérito que apura se
o parlamentar negociou o pagamento de propina da empreiteira OAS durante a
construção da Arena das Dunas, estádio em Natal usado na Copa do Mundo de
2014". O DEM (ex-PFL) e Agripino estão na oposição ao governo há pelo
menos 14 anos. Como explicar que ele possa ter negociado um empréstimo do BNDES
para a OAS para construção da Arena das Dunas, em 2010, que teve como
contrapartida a doação da empreiteira para a sua campanha? Suspeitas como essa
derivam menos de uma violação do sistema do que da própria forma como o sistema
funciona.
Tal
é a regra, construída institucionalmente e jogada pelos atores políticos e do
mercado, não a exceção. Os famigerados "operadores", em sua maioria
funcionários de carreira das empresas públicas, alocados em posições
estratégicas por indicações políticas, não têm filiação partidária nem
preferência ideológica. Ou, se o tem, sabem perfeitamente separá-las dos
negócios. Estas nefastas figuras da engrenagem estatal-mercadológica atuam de
forma pluripartidária e multiempresarial.
Apesar
de sugerir que não se trata de uma "luta maniqueísta entre espíritos
generosos, de um lado e aves de rapina, do outro", que seriam
identificados com o governo e a oposição, respectivamente, na visão de Souza,
Fonseca aplica essa mesma dicotomia ao seu argumento, desta feita identificando
as aves de rapina com os atores políticos e os espíritos generosos com os
agentes privados. O que se desdobra na afirmação de que o "real embate de
nossa política é entre a busca do desenvolvimento em algum atalho facilmente
trilhado pela canetada política e pelo gasto irresponsável – os crentes no
poder mágico do Estado –, e a crença de que o importante é ter um sistema
funcional e sustentável para promover o desenvolvimento de longo prazo" -
ao que poderíamos acrescentar, não sem alguma ironia, "os crentes no poder
mágico do mercado".
A
autoevidência da verdade
Eis,
portanto, a fórmula autoevidente e autossuficiente a guiar a sociedade rumo à
bonança. Mas para onde vamos? Qual o nosso objetivo enquanto sociedade? Se
fosse simples como parece supor Fonseca, seria difícil entender o que nos levou
a errar por caminhos os mais diversos, desde uma "ditadura estatizante,
burocrática e autoritária" até uma década perdida em que permanecemos
"supostamente preocupados com o desenvolvimento". Como também não soa
razoável que, após o governo FHC, "que, contrapondo-se à demagogia
populista de curto prazo, conseguiu o equilíbrio fiscal e a estabilidade
monetária que permitiram ao país crescer", tenhamos, como sociedade,
rejeitado tantas vezes este virtuoso projeto em prol do fracassado
"projeto de poder do Partido dos Trabalhadores". É curioso ainda que
o primeiro, bem-sucedido, tenha logrado taxa de crescimento menor, inflação
mais acentuada e um nível mais alto de desemprego, do que o último, que nos trouxe
novamente às trevas.
Dentre
as explicações comuns para esse aparente paradoxo, Fonseca recorre àquela que
é, dentre todas, a mais simplória e, por isso também, a menos sujeita à
contestação: "o Brasil surfou a onda internacional favorável, quando
nossas exportações valiam muito". Não resta dúvida de que o boom das
commodities teve um papel relevante em nosso crescimento ao longo da primeira
década de 2000. Todavia, rechaçar os méritos pelas escolhas acerca dos
investimentos, bem como pela maneira com que se abordou a crise de 2008, que
permitiu resguardar conquistas importantes dos anos anteriores, parece um grave
equívoco.
Estou
plenamente de acordo que perdemos oportunidades históricas de fazer reformas
que poderiam contribuir ainda mais para a dinamização do Estado e da sociedade
brasileira, bem como para reduzir as desigualdades e criar um regime mais justo
e democrático. Nosso sistema tributário é sobremaneira complexo e fortemente
regressivo, o sistema eleitoral cria incentivos para a transformação de poder
econômico em poder político e promove relações espúrias entre mercado e governo
(o veto a doações empresariais não tende a resolver esse problema),
desperdiçamos a chance de ampliar o acesso e a qualidade dos serviços públicos
de educação, saúde, transporte e segurança, entre outras medidas que poderiam
levar a uma reforma mais significativa do país. O lulismo, como nos
diz André Singer, foi um projeto de reformismo fraco, embora tenha
promovido mudanças de alta monta em relação ao que havia sido feito desde a
redemocratização. É no mínimo improvável que, houvesse José Serra vencido o
pleito em 2002, teríamos avanços tão significativos como os que logramos sob o
"fracassado projeto petista". Qualquer afirmação nesse sentido não
passa de mera especulação.
Polarização
Claramente
insatisfeito e pessimista com os caminhos trilhados pelo país desde 2002,
Fonseca lamenta que, justamente agora, "quando o Brasil precisa encontrar
saídas, ficamos presos à polarização crescente", cujo principal culpado
seria o "terrorismo eleitoral governista", que "impediu qualquer
debate nos anos decisivos de 2010 e 2014". Segundo o autor, o
"retumbante fracasso teórico e prático do projeto governista" teria
levado as aves de rapina (ou a elite cultural engajada, fica até difícil
escolher um rótulo entre tantos) a demonizar propostas alternativas,
empobrecendo o debate público e entronizando "um discurso altamente
moralista que, como sempre acontece, serve para justificar práticas corruptas".
O
discurso pretensamente objetivo de Fonseca, no final do texto, torna-se uma
caricatura de si mesmo. As suas palavras poderiam ser facilmente dirigidas a
seu próprio julgamento sobre a visão a que se contrapõe. Todo o artigo tem como
objetivo descartar qualquer argumento do qual ele mesmo discorde, porquanto
falso, inútil, ultrapassado, parcial, moralista e assim por diante. O governo,
por sua vez, teria sido cooptado pelo partido e seria, por isso, corrupto e
fracassado, o que torna a sua defenestração a única saída viável das trevas em
que nos encontramos.
Quanto
a isso não há contestação possível nem tampouco convite para o diálogo. O autor
deixa claro, desde o título do artigo, que não se trata de uma opinião, mas da
expressão de uma verdade científica, objetiva, acima de qualquer suspeita de
contaminação ideológica. Não há o que se discutir. Essa pureza, continua o
autor, é a antítese do que desejam "os que, em nome de algum ideal, gastam
o que não têm e criam entraves ao trabalho e ao lucro".
Felizmente,
para Fonseca, evoluímos ao ponto de termos desacreditado por completo esse
discurso fundado em ideais, pelos menos aqueles dos quais ele discorda. Levando
essa constatação até as suas últimas consequências, o próprio texto assinado
por ele não seria mais do que um exercício intelectual sem utilidade prática,
ou apenas o epitáfio de uma agenda insepulta. Contra a política democrática,
por meio da qual concordamos em acatar os desacordos morais e os valores
incomensuráveis, fica então decretada a vitória da objetividade de Fonseca -
que não deixa de ser, ela mesma, um ideal utópico, sobretudo em se tratando de
questões para as quais dificilmente poderemos chegar a uma resposta definitiva.
Que a sete palmos seja enterrado o sectarismo, mas apenas o sectarismo dos que
não concordam comigo.
Renato Francisquini, Doutor em Ciência Política -
USP. Professor substituto do Departamento de Sociologia e Ciência Política -
UFSC