segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Democracia e (des)confiança: o caso Datafolha

Por Renato Francisquini

A ascensão das novas mídias, das redes sociais e das formas inovadoras de acesso à informação têm sido considerados os principais desafios dos veículos tradicionais, que ao redor do mundo vêm tentando se adaptar a este contexto. Proliferaram recentemente um sem número de blogs e colunistas, que não dependem mais do suporte físico da imprensa nem estão submetidos ao crivo de editores com a prerrogativa de adequar o conteúdo ao perfil das empresas de comunicação. Muitos chegaram a se questionar sobre a viabilidade das mídias tradicionais em um mundo de interação comunicativa cada vez mais fragmentada e especializada em nichos crescentemente restritos e pouco abertos a conhecer, de fato, as perspectivas alheias.

Entretanto, se por um lado as novas mídias põem em xeque o monopólio dos meios de comunicação como difusores de informações e opiniões, por outro possuem limites que as impedem de realizar em sua totalidade o papel destes meios. Pensando apenas na imprensa escrita, sobretudo nos jornais de circulação nacional, há pelo menos dois elementos que justificam a sua importância, mesmo num ambiente marcado pela comunicação digital: o primeiro é justamente a qualidade e a confiabilidade das narrativas que ocupam as suas páginas, que, ao menos idealmente, passam por critérios mais exigentes de checagem; o segundo, relacionado a este, é a plausibilidade de apresentar uma visão mais abrangente e imparcial sobre os eventos apresentados, tendo em vista a exigência comercial que os impede, mais uma vez idealmente, de adotar vigorosamente uma posição político-partidária. Nesse aspecto, enquanto as notícias veiculadas nas redes sociais surgem de fontes obscuras e são enquadradas por jornalistas com uma posição política bem definida - são enviesadas, portanto -, a imprensa comercial seria relativamente neutra e, por isso também, mais preocupada com a credibilidade do conteúdo transmitido, sobretudo no espaço reservado à reportagem. Ademais, enquanto os blogs independentes falam a um público específico, que de modo geral já tem uma visão ideológica mais próxima à dos seus colunistas, a imprensa tradicional tem um perfil mais catch all.

Em contextos de forte polarização política, o esforço no sentido de apresentar uma visão razoavelmente imparcial torna-se mais importante e, ao mesmo tempo, mais demandante. Mais importante porque, tendo em vista que contamos com as informações e interpretações transmitidas pelos meios para a formação das nossas opiniões, alguma imparcialidade nos permite, sobretudo aos que não têm uma posição política bem consolidada, formar uma percepção de tolerância com os que pensam diferente de nós. Mais demandante porque é natural que o acirramento dos ânimos seja acompanhado de um crescimento da desconfiança do público em relação ao que lhe é apresentado por esses veículos.






Inúmeros episódios recentes deixam suspeitar que os meios de comunicação brasileiros têm sido no mínimo pouco efetivos nessa empreitada. Ganhou destaque há alguns dias a divulgação da pesquisa Datafolha pelo jornal ao qual pertence o instituto. A capa da Folha de São Paulo de 17 de julho, um domingo, estampava infográfico que afirmava que 50% da população brasileira entendia que a permanência do presidente interino era "o melhor para o Brasil", ao passo que somente 3% diziam preferir novas eleições. A matéria omitia, porém, que esta última opção não foi incluída pelo instituto entre as alternativas oferecidas aos entrevistados, mas, ainda assim, foi mencionada espontaneamente por parte deles. O resultado divulgado pelo jornal surpreendeu parte do leitorado, o que motivou alguns jornalistas a buscar uma explicação plausível.

A história é conhecida e está bem relatada no The Intercept. O que é importante notar aqui é o fenômeno mais amplo, do qual episódios como este aparecem como um exemplo eloquente: ao cometer graves equívocos editoriais, sobretudo quando justificados da forma como o fez o editor da Folha (Sérgio Dávila sugeriu não existir interesse jornalístico na informação de que a maioria dos eleitores [60%], segundo outra parte da pesquisa realizada - e omitida pelo jornal -, preferia a realização de novas eleições), os veículos se arriscam a perder a já pouca confiança de que dispõem. Se essa desconfiança prejudica comercialmente os jornais, ela pode ser ainda mais perniciosa para a democracia brasileira. Em primeiro lugar, porque cria dificuldades para a formação de preferências bem fundamentadas sobre os temas de interesse público. Mas principalmente porque abre espaço para o fortalecimento de perspectivas cada vez mais polarizadas, representadas pelos inúmeros blogs e sites de origem e gosto duvidosos, afastando a possibilidade do surgimento de consensos mínimos, necessários à compreensão da sociedade como um empreendimento cooperativo, ainda que marcado pelo pluralismo de valores e identidades. O resultado do fenômeno soa sobremaneira mais grave quando pensamos na estrutura de propriedade dos meios de comunicação no país, marcada pelos oligopólios familiares e pela presença de lideranças políticas locais entre os donos de concessões de canais de rádio e televisão (como atesta o relatório da ONG Repórteres Sem Fronteiras), o que limita também a plausibilidade de encontrarmos visões concorrentes sobre os eventos.

Conforme afirma Hannah Arendt, em Verdade e Política, fatos e eventos são entidades frágeis, pois "ocorrem no campo das ocupações dos homens, em sempiterna mudança, em cujo fluxo não há nada mais permanente do que a permanência, reconhecidamente relativa, da estrutura da mente humana". Embora a disputa de narrativas interpretativas sobre o que a filósofa alemã denomina de "verdade factual" seja natural e saudável em uma sociedade democrática, que valoriza a liberdade de expressão, a corrupção da informação em prol de preferências políticas, como não poderia deixar de sugerir a postura da Folha no caso mencionado, contribui para a emergência de uma situação danosa. Com isso, até mesmo a distinção entre realidade e ficção fica, por vezes, comprometida, confundindo-se em um jogo de linguagens e intervenções políticas camufladas como narrativas imparciais. A carência de elementos confiáveis, que nos permitissem elaborar mentalmente um contexto factível, trabalham no sentido de intensificar as disputas para a definição de uma opinião que pudesse contar com um assentimento mínimo.


Post cruzado com Carta Maior.