segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Os ricos merecem sua fortuna?

A desigualdade de renda no Brasil é alta e, infelizmente, tem se mostrado mais estável na última década do que costumávamos imaginar (ver aqui e aqui para um debate sobre a trajetória da desigualdade nos últimos 20 anos). Não que muita coisa não tenha mudado em termos de inclusão e mobilidade social. O problema é que, por mais que tenhamos incluindo e redistribuído, o quanto o topo da distribuição controla da renda nacional permaneceu estável nos últimos dez anos. Estima-se que o 1% mais rico da população adulta brasileira (um grupo composto por 200 mil pessoas) se aproprie hoje de cerca de 25% da renda nacional anual enquanto o 5% mais rico controla praticamente metade da renda nacional. Se preferirmos olhar para a base, ao invés do topo da pirâmide vemos que a metade mais pobre dos cidadãos e cidadãs brasileiras acumula apenas 10% da renda nacional.

Em termos comparados, a desigualdade brasileira é chocante mesmo quando comparada com a desigualdade crescente em outro países, tal como os EUA, o país mais desigual entre os países ricos. Em apenas duas décadas, o 1% mias rico nos EUA passou de uma taxa de apropriação de 12% para 20%, a ponto de economistas da desigualdade como Joseph Stiglitz identificarem um processo de "brasificação" da sociedade norte-americana. No entanto, a magnitude da desigualdade social brasileira é ímpar perdendo apenas para não-democracias como a China ou para países de apartheid oficial como a África do Sul.

Contudo, defensores da desigualdade econômica tendem a objetar o que entendem por um lamento igualitário. Um dos argumentos mais frequentemente usados contra a evidência dos dados da desigualdade, como os apresentado acima, é oferecendo um contra-argumento de natureza moral. De fato - segue o argumento - a desigualdade é alta. Contudo, deveríamos ter em mente que os mais ricos "trabalharam duro" para chegar aonde chegaram no sistema de posição social. O rendimento elevado que encontramos nos estratos superiores reflete a produtividade individual desses indivíduos que, em comparação ao restante da sociedade, investiu mais em formação educacional (anos de estudo, melhores universidades, etc.) e dedicação ao trabalho (cargos de alta responsabilidade). Isso significa que não apenas o "trabalho duro" os elevou ao topo da distribuição, como é essa dedicação pessoal constante à produtividade que os impede de "descer" na estrutura social. Segundo esse argumento, portanto, maiores rendimentos seria uma espécie de prêmio social pela maior dedicação individual à produção de riqueza coletiva. 

O argumento é a primeira vista plausível para o caso brasileiro, dado o nível educacional baixo da nossa força de trabalho. Estima-se, por exemplo, que metade da força de trabalho adulta no país não possui educação secundária completa e que apenas 1/6 tenha diploma de nível superior. Além disso, anos de estudo funciona como um ótimo indicador de renda pessoal: quanto melhor a qualificação, especialmente um diploma de ensino superior, melhor a renda individual. Isso parece corroborar o argumento de que a riqueza seria um reflexo do investimento em capital humano feito ao longo de uma vida (vamos deixar de lado, por ora, o problema do ponto de vista moral das vantagens advindas do investimento familiar, e portanto não merecidasnas expectativas de vida de cada). Além disso, o resultado dessa dessa compreensão da desigualdade nos levaria a crer que a melhor forma de lidar com a desigualdade, seja do ponto de vista da meritocracia seja do ponto de vista da eficiência, seria por meio de políticas educacionais e não necessariamente por meio da distribuição da riqueza.

Um artigo recém publicado na DADOS por Marcelo Medeiros (UNB) e Juliana Galvão (UNB) nos permite avaliar a consistência de argumentos fundados no mérito como esse que procurei reconstruir. O objetivo do artigo foi estabelecer qual o papel da educação formal na composição da renda do 1% mais rico da sociedade brasileira. Posto de outro modo: a educação formal explica a riqueza pessoal? O resultado da pesquisa é que ela não explica. De modo geral, uma formação educacional de ensino superior altera pouco as chances de alguém pertencer ao 1% e, pior, quando descontamos a formação educacional, boa parte das pessoas que compõem o 1% mais rico não sofre mobilidade descendente, ou seja, não deixa de ser rico. Como conclui os autores:

A educação de elite seguramente diferencia algumas pessoas e provavelmente é um determinante importante da riqueza de alguns trabalhadores no 1% mais rico, mas uma grande parte dessas pessoas seria rica mesmo sem a contribuição líquida da educação para seus rendimentos. Portanto, não se deve assumir que os ricos são ricos, predominantemente, porque são mais educados, mesmo quando consideramos indicadores importantes como o tipo de formação de nível superior.

Comecemos por partes. Obviamente a formação superior é uma característica comum entre o 1% mais rico, especialmente quando comparada com o restante da população. O ponto é que possuir essa educação não é suficiente para explicar como alguém entra para o seleto clube da riqueza. Em primeiro lugar porque o tipo de formação é muito mais relevante do que apenas o "esforço" individual: carreiras universitárias de elite, como direito, engenharia e, principalmente no caso brasileiro, medicina, são muito mais importantes para explicar o pertencimento ao 1% do que a educação em si. 

Dada a composição da estrutura de rendimentos no Brasil, um trabalhador com apenas o ensino secundário completo teria quatro vezes mais chance de pertencer ao grupo dos ricos do que um trabalhador sem o ensino secundário. Essa razão de chance de pertencimento sobe para 40 vezes mais em relação ao diploma universitário. Isso comprova o fator educacional na composição da riqueza. Entretanto, uma vez que os dados do ensino superior são desagregados, o retrato é bem diferente. Trabalhadores com formação em educação possuem praticamente as mesmas chances de pertencimento auferidas pela conclusão do ensino médio. O quadro não é muito diferente para as humanidades e artes em geral (ver a tabela abaixo). 


Quando passamos para as carreiras de elite, as razões de chance em relação às demais carreiras disparam: engenharia: 9 vezes, direito: 13 vezes e, finalmente, medicina: 51 vezes. Isso significa, portanto, que é um tipo de educação que importa muito mais do que o investimento em educação em si. (De fato, o argumento meritocrático poderia ser parcialmente salvo apelando para um suposto esforço intrinsicamente superior de um advogado ou medico em comparação com um doutor em física quântica ou um professor de chinês algo que parece, no mínimo, ridículo). 

Contudo, mesmo a educação de elite não é suficiente para explicar a renda do 1%. Os pesquisadores simularam como seria a distribuição de renda do 1% caso (i) todos tivessem um diploma em carreiras que não sejam de elite (como administração e economia) e (ii) caso o teto da educação fosse ensino secundário (isto é, ninguém seria formado no ensino superior). O resultado é que a renda do 1% cairia 17% no cenário (i) e 39% no cenário (ii). 

O resultado pode parecer relevante em relação à composição do rendimento dos ricos. Mas não é. Dada a magnitude da desigualdade de renda, ao eliminarmos as carreiras de elite reduziríamos a classe dos ricos em apenas 0,3% e, ao eliminarmos o curso superior (a única explicação para rendimentos superiores do ponto de vista do argumento do mérito) a classe dos ricos no Brasil diminuiria de 1% para 0,4%. Ou seja, 40% das pessoas mais ricas do país continuariam ricas mesmo sem nunca ter pisado em uma universidade (esses dados encontram-se na tabela 3 do artigo). Na verdade, não há possibilidade de mobilidade descendente em se tratando de esforço pessoal para esse grupo. 

Se os estudos de Medeiros estão corretos, então podemos concluir que a desigualdade existente entre o 1% mais rico e o restante da sociedade não pode ser reduzida apenas por políticas educacionais, mesmo se fossem focadas (como não são) nos cursos de elite. Fatores como herança e capital social equivalem a quase metade da composição da rendo da classe dos ricos. Lembremos que o artigo não considera desigualdades de riqueza, ou seja, rendimentos de capital, o que nos levaria para outra galáxia da desigualdade. O ponto é que mesmo se ficarmos apenas com o rendimento do trabalho, a educação não explica como o 1% mais rico obtém seu rendimento. 

Essa conclusão parece particularmente importante no momento em que precisamos decidir coletivamente quem deve pagar pela consolidação da dívida pública brasileira. Os cidadãos e cidadãs responsáveis pelos seus próprios rendimentos, isto é, que dependem das oportunidades de educação e saúde disponíveis na sociedade, ou quem se beneficia (preguiçosamente?) de uma estrutura social extremamente desigual? Caso queiramos defender o mérito, precisaremos ser contra o fosso social do 1%.



- Medeiros & Galvão: Educação e Rendimento dos Ricos no Brasil (DADOS)

Educação e Rendimentos dos Ricos no Brasil O artigo examina em que medida a educação pode ser considerada um dos principais determinantes da riqueza no Brasil. Utilizando os dados de forma- ção universitária específica da Amostra do Censo 2010, o foco restringe-se ao 1% mais rico da distribuição de rendimentos do trabalho. A principal conclusão é que a educação pode ser importante para explicar a desigualdade total, mas não há evidências de que a educação de massa seja um dos fatores mais relevantes para explicar as diferenças entre os ricos e o resto da população brasileira. Nem mesmo a educação de elite pode ser tomada como um dos principais determinantes dos níveis atuais de riqueza. Há, portanto, uma parte importante da desigualdade total que não será reduzida por políticas educacionais.