quinta-feira, 2 de maio de 2013

Limongi: "Em defesa do Congresso"

O cientista político da Universidade de São Paulo (DCP/USP) Fernando Limongi publicou artigo no Valor Econômico sobre os recentes conflitos de prerrogativas ente o poder legislativo e judiciário no Brasil. Segundo Limongi, as últimas decisões do STF a respeito do sistema eleitoral-partidário seriam carentes de coerência e, paradoxalmente, fontes de instabilidade institucional. 


por Fernando Limongi

A confusão está armada. Supremo e Congresso entraram em rota de colisão. Gilmar Mendes, em curta declaração, apontou o culpado: o Poder Executivo. O Supremo se exime de culpa e responsabiliza os demais Poderes. Suas repetidas intervenções teriam um único motivo: pôr ordem no coreto. A omissão do Congresso, sua incapacidade de promover reformas institucionais teria forçado as repetidas investidas do Judiciário na seara alheia. 

Rápida revisão das decisões recentes permite concluir o contrário. Da imposição da verticalização das coligações à intervenção do ministro Gilmar Mendes na semana passada, o Supremo tem contribuído mais para confundir do que para esclarecer, para lembrar o refrão do saudoso Chacrinha. As decisões emanadas do Poder Judiciário têm sido tão ou mais "casuísticas" do que as do Congresso Nacional; todas, sem exceção, prenhes de efeitos imediatos para a disputa político- partidária. Não há isenção possível neste tipo de questão. Tampouco é possível argumentar em nome do fortalecimento da democracia ou coisa do gênero. Qualquer decisão tomada favorecerá alguns partidos e prejudicará outros. 


Segundo o noticiário da imprensa, o ministro Gilmar Mendes teria identificado vícios formais na tramitação da proposta apresentada pelo deputado Edinho Araújo (PMDB-SP). O Congresso teria agido de forma rápida demais. Não deixa de ser irônico. O Congresso é sempre atacado por sua omissão ou morosidade. Quando é ágil, levanta suspeição. Tamanha celeridade só se justificaria por razões escusas. 

O fato é que o Congresso pode agir rapidamente e o faz com frequência. O ritmo da tramitação das matérias é ditado pela maioria, respeitada as normas regimentais. A intervenção do ministro se justificaria se estas normas e ritos tivessem sido violados. Foram? Se sim, quais? A opinião pública não foi informada dos vícios formais identificados pelo ministro Gilmar Mendes. Pelo que se depreende do que publicado na imprensa, a celeridade em si foi questionada. A suspeição motivou a intervenção. 

Muitos analistas comungam da desconfiança que motivou a medida cautelar. O Congresso só se moveria com esta presteza para defender interesses particulares e imediatos. Por isto, mesmo, a medida foi comparada ao Pacote de Abril. O governo estaria alterando a legislação em causa própria. No entanto, é preciso ter claro que o Congresso estava apenas restaurando o status quo vigente antes da surpreendente intervenção do Supremo, concedendo tempo de TV ao partido criado por Kassab. Note-se: a emenda mais polêmica foi proposta pelo DEM e não por um partido da coalizão que apoia a presidente Dilma. 

O tempo no Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HPGE) conferido a cada partido é proporcional à sua bancada na Câmara dos Deputados. Partidos ganhavam tempo na TV na medida em que conseguiam aumentar suas bancadas. O Congresso Nacional, tempos atrás, barrou esse incentivo à migração partidária, impondo como referência a bancada eleita, isto é, a vontade do eleitor expressa nas urnas nas últimas eleições. Com esta decisão, um dos principais estímulos à migração partidária foi neutralizado. Foi esta decisão do Congresso Nacional - e não a imposição da fidelidade partidária pelo STF - a maior responsável pela diminuição das dança das cadeiras. Aliciar parlamentares para ganhar tempo na TV deixou de figurar entre as estratégias dos pré-candidatos à Presidência. 

O STF, ao decidir que o PSD tinha direito a tempo na TV proporcional à sua bancada, reintroduziu, pela porta dos fundos, a motivação para a migração partidária. A estratégia teve que ser devidamente adaptada. Em lugar de atrair deputados, cria-se um novo partido. As restrições impostas pelo CN podem, agora, ser contornadas. A oportunidade foi prontamente percebida e alguns partidos, não necessariamente os mais fisiológicos, logo viram como tirar proveito das novas oportunidades. 

Repentinamente, após anos de convivência, PPS e PMN descobriram suas afinidades ideológicas. Note-se o que está em jogo. Não se trata apenas de somar os tempos de TV que PPS e PMN têm direito em função da bancada que elegeram em 2010. Se fosse isto, a fusão teria o mesmo efeito que uma coligação. A fusão soma tempo de TV desde que seja capaz de atrair novos parlamentares, por exemplo, do DEM e do PMDB. Estes, ao se juntarem ao novo partido, carregam consigo seu tempo de TV. E é assim por força da decisão tomada pelo Supremo quando da criação do PSD. 

A contradição entre esta decisão do Supremo e a que impôs a fidelidade partidária é patente. Afinal, a quem pertence o mandato parlamentar? Na realidade, ao assegurar tempo na TV ao PSD, o Supremo contradisse decisão tomada pouco antes, quando a bancada do PSD teve negada sua participação na distribuição de cargos no interior do Poder Legislativo. Depois desta decisão, ninguém mais, nem mesmo o PSD e seus aliados esperavam que o partido ganhasse tempo na TV. 
Nestes termos, a proposta do deputado Edinho Araújo (PMDB-SP) e a emenda do DEM são reações a um "casuísmo". O Supremo alterou as regras do jogo. Difícil sustentar que a intervenção do Judiciário tenha contribuído para fortalecer os partidos e aperfeiçoar a democracia. Basicamente, a proposta, que o ministro Gilmar barrou antes que sua tramitação chegasse a termo, simplesmente restaurava o status quo. 

As intervenções do Supremo no terreno da legislação eleitoral e partidária - é tempo de afirmá-lo com todas as letras - carecem de coerência. O Supremo, por paradoxal que possa parecer, tem sido fonte de instabilidade. Ao pretender legislar no campo eleitoral, não tem como evitar atrelar suas decisões à disputa político-partidária. Perde assim a isenção para reclamar a capacidade de arbitrar uma luta em que se envolve. 



Fernando Limongi é professor-titular de ciência política da Universidade de São Paulo (USP)