O filósofo inglês Martin O'Neill (York) ministrou uma palestra na Universidade de York acerca dos fundamentos econômicos da política de predistribuição, em particular o papel da teoria do economista James Meade e sua obra de 1964, Eficiência, Igualdade e Propriedade Econômica (em uma tradução livre do original em inglês), para o chamado movimento predistributivo. Martin O'Neill é uma das principais vozes de um grupo de autores e autoras que vêem na ideia de predistribuição um passo necessário na luta contra a desigualdade e um princípio impossível de ser ignorado por partidos e movimentos de esquerda no século XXI. Lembremos, por exemplo, que outro autor fundamental para pensarmos as possibilidades do socialismo nas democracias contemporâneas, o francês Thomas Piketty, afirma em sua obra O Capital no Século XXI que sua pesquisa deveria ser entendida como uma continuação da obra de Meade.
Em sua curta palestra, O'Neill traça um paralelo convincente entre, de um lado, a desigualdade econômica no começo do século XXI e o prognóstico sombrio proposto por Meade na década de 60 a respeito do futuro da composição da riqueza social em sociedades industriais. Segundo Meade, não se deveria esperar (tal como foi esperado no entanto) que a divisão entre os ganhos do trabalho e o retorno do capital mantivesse a proporção relativamente igualitária encontrada nos países europeus pós-Segunda Guerra (cerca de 2/3 para o trabalho e 1/3 para o capital). Deveríamos esperar, ao contrário, uma tendência secular de diminuição global da remuneração do trabalho vis à vis o aumento da automação da produção. Em uma economia de uso intensivo de capital, com pouca demanda por trabalho não-qualificado na indústria, a grande parte dos indivíduos sem propriedade terá que lutar entre si por empregos precarizados no setor de serviços - no caso, serviços para os proprietários do capital produtivo.
Isso significa que, consequentemente, deveríamos esperar também o crescimento da desigualdade econômica nas sociedades ricas. É interessante notar que essa conclusão, por exemplo, foi corroborada em parte pela OECD em 2015 com um relatório sobre o papel do trabalho na composição econômica dos países ricos. O estudo menciona também, ainda que de modo independente, uma "tendência secular" da diminuição dos ganhos provenientes do trabalho que, em média, teria diminuindo 0,3% ao ano entre 1980 e o ano 2000 nos países membros da OECD vis à vis a remuneração do capital. Além disso, Meade tinha perfeita consciência que uma economia fundada no capital, e não mais no trabalho, possui efeitos indesejáveis para as demais esferas da vida democrática, tal como, por exemplo, a obsessão de milionários em converter seu poder econômico em poder político e a pauperização de trabalhadores não-qualificados. Como afirma Meade:
Most discussions about the social and economic problems
which will arise in an automated world run in terms of the rise
in real output and real income per head of the population.
What, we ask, shall we all do with our leisure when we need
to work only an hour or two a day to obtain the total output
of real goods and services needed to satisfy our wants? But
the problem is really much more difficult than that. The
question which we should ask is: What shall we all do when
output per man-hour of work is extremely high but practically the whole of the output goes to a few property owners,
while the mass of the workers are relatively (or even absolutely)
worse off than before?
Qual a solução diante desse cenário distópico? Aqui reencontramos a ideia de predistribuição recuperada pelos trabalhos de O'Neill. Meade formula e "testa" diferentes modelos socioeconômicos a partir de seu potencial em enfrentar essa tendência. Dois resultados chamam nossa atenção. Em primeiro lugar, Meade reconhece os limites de propostas centradas apenas na proteção do trabalho, como, por exemplo, o fortalecimento de sindicatos, ou apenas na taxação e redistribuição da renda. Isso porque se o diagnóstico da tendência estrutural para o aumento da composição do capital estiver correto, tornar o trabalho excessivamente caro seria, ao mesmo tempo, indesejável frente à competição internacional com países não-igualitários, e ineficiente, dado que o crescimento proporcional da renda do capital permaneceria muito superior a do trabalho. A clivagem fundamental no cenário de Meade não se dá entre rendimentos elevados e rendimentos baixos, mas sim entre rendimentos do capital e rendimentos do trabalho.
A proposta de Meade é muito mais radical: precisamos coletivizar a remuneração do capital. Existe uma diferença fundamental - mas pouco notada - entre a composição do capital na economia, isto é, qual a fatia da produção econômica advém do emprego do capital, e a propriedade ou poder de decisão (duas relações diferentes) desse capital. Caso a economia se torne capital-intensiva isso não significa, a rigor, que a sociedade será mais ou menos igualitária. Desigualdade depende dos instrumentos de controle e propriedade sobre esse capital. Evidentemente, nas sociedades que conhecemos a propriedade de capital é extremamente concentrada - a ponto de ser menor do que 5% entre os 50% mais pobres mesmo nas sociedades ricas e 0% em países em desenvolvimento como o Brasil. Logo, Meade defende que, ao invés de apenas redistribuir os ganhos crescentes do emprego do capital na produção, deveríamos também predistribuí-lo por assim dizer garantindo que os indivíduos tenham acesso a esse capital e produzam, eles próprios, sua remuneração.
A grande vantagem da proposta de Meade é, como enfatiza O'Neill, a dupla possibilidade de coletivização: pública e privada. A solução clássica do socialismo (também defendida por Meade em sua obra, é importante enfatizar) é a socialização de parte dos meios de produção e dos recursos naturais. Isso pode ser realizado, por exemplo, na forma de fundos soberanos como o fundo do petróleo norueguês que, segundo O'Neill conta com 1% de todas as ações do mundo. Um fundo soberano poderia pagar uma espécie de "dividendo social" para todos os membros da sociedade, aumentando a renda do trabalho não qualificado. Contudo, Meade explora a possibilidade de mecanismos privados de dispersão de capital, como uma dotação básica de capital para todos os cidadãos e cidadãs (hoje chamada de capital básico incondicional) via abolição da herança. Para aqueles e aquelas que conhecem a filosofia política de John Rawls, esse é o principal argumento normativo por trás da defesa de uma democracia de cidadãos proprietários tal como apresenta em Uma Teoria da Justiça e Justiça como Equidade: Uma Reformulação (ver aqui uma edição especial da revista Diacrítica sobre o tema).
Ainda que tenhamos muito o que conquistar e, principalmente do Brasil pós-golpe de 2016, muito o que lutar para manter as proteções históricas do trabalho e os mecanismos redistribuitivos civilizatórios conquistados a duras penas, uma esquerda que não consiga pensar os desafios igualitários do acumulo de capital estaria, segundo os teóricos da predistribuição, fadada à irrelevância. No momento em que precisamos repensar os fundamentos da esquerda brasileira sobretudo, como tem sido bastante debatido, sua matriz econômica, talvez esse seja o momento para darmos mais espaço para a luta pela predistribuição.
Political philosopher Martin O’Neill investigates the idea that market reforms could be used to encourage a more equal distribution of economic power and rewards. He shows how debate about the idea of ‘predistribution’ connects to the neglected work of the Nobel prize-winning economist James Meade, who championed the idea of what he called a ‘property-owning democracy’. Meade's theory was conceived as a stage in the development of social democracy beyond the welfare state and has relevance for today’s political debates about creating a more equal and just society.
- Martin O'Neill & Thad Williasom: "The Promisse of Pre-distribution"
- James Meade: Efficiency, Equality and the Ownership of Property
- Property-Owning Democracy (Diacrítica)