terça-feira, 20 de janeiro de 2015

As vicissitudes do debate 'Eu sou Charlie'

Esta é a primeira de uma série de intervenções originais escritas por cientistas políticos, antropólogos e filósofos acerca do atentado ao periódico satírico francês Charlie Hebdo. As diferentes contribuições discutem o que o Caso Charlie Hebdo representa para questões de tolerância, direito de expressão, integração cultural e violência nas democracias contemporâneas. As posições expressas em cada post são - como não poderiam deixar de ser - estritamente autorais. 


As vicissitudes do debate Eu sou Charlie vs. Eu não sou Charlie

Por Adrián Albala

Nas horas que se seguiram após os terríveis atentados contra o jornal satírico francês, Charlie Hebdo (CH), massificou-se uma onda internacional de apoio e identificação com as vítimas, sob o lema “Eu sou Charlie”. O sentido deste lema espontâneo continha um duplo objetivo: primeiro, repudiar a violência e o terrorismo; segundo, para se posicionar na defesa da liberdade de expressão de um órgão de imprensa, por mais irreverente e politicamente incorreto que este fosse. A difusão deste lema e apoio ao mesmo desembocou na grande marcha do domingo passado (11), na qual mais de 4 milhões de pessoas se manifestaram em toda a França, sendo1,5 milhão apenas em Paris.

Portanto, chama à atenção que, horas após a aparição deste movimento “Eu sou Charlie”, apareça uma espécie de contra movimento autoproclamado “Eu não sou Charlie”. Este movimento se difundiu muito rapidamente através das redes sociais, particularmente deste lado do Atlântico. Pode-se ver um bom exemplo deste fenômeno num artigo do Leonardo Boff. O argumento principal é que as charges de CH teriam sido ofensivas à comunidade muçulmana, a qual já é indiscutivelmente vulnerável e alvo de discriminação constante. A partir disto, vários comentaristas têm assimilado o CH a uma postura racista, neocolonialista e imperialista. Vários inclusive afirmaram que CH auxilia o partido da extrema-direita, Frente Nacional, na banalização do ódio contra os muçulmanos.

Como bem disse o Laerte numa entrevista dada à UOL nos dias anteriores, o humor é, geralmente, cultural. O humor francês é, em geral, um pouco mais pesado que o humor britânico, por exemplo, ou que o humor brasileiro. Logo, obviamente, existem aspectos pessoais. Todo mundo não ri das mesmas coisas. O CH parte da ideia, sensata e saudável, que dá para rir de tudo e de todos. Em minha opinião, quando a zoeira ou caricatura toca todo mundo sem exceção, ela não toca ninguém em particular. O fato de poder satirizar ou caricaturar o Islã como instituição (e não os muçulmanos) parte da ideia de que "santificar" uma religião sob o pretexto que ela é diferente por ser professada, no caso francês, por uma minoria muitas vezes discriminada, constitui justamente uma atitude neocolonialista. Isso de satirizar o Islã no mesmo nível que o catolicismo e o judaísmo constitui uma tentativa de, justamente, assimilação por semelhança.

O CH não faz discriminação, ao contrário, ele zomba de todo mundo. O fato de não zombar do islã, quando você já zomba do cristianismo (mas não os cristãos) o judaísmo (mas não os judeus), denota-se claramente como um esforço de colocar essas três religiões no mesmo nível. Vale lembrar que o jornal em questão tem por alvos principais as religiões e a política, o establishment e a extrema-direita. Ninguém tem passe livre: satirizar a todos para não discriminar ninguém.

Além disso, uma das capas mais famosas a que a maioria se refere,e que tem a seguinte mensagem: "O Alcorão é uma merda, ele não para os balaços", referia-se à matança no Egito,na qual muçulmanos mataram outros muçulmanos, em nome do Islã e do Estado...É inconcebível comparar árabes a terroristas. A caricatura, em nenhum momento, ataca aos muçulmanos, mas sim, às matanças organizadas em nome de uma religião e do Estado.

Contudo, alguns analistas que aprofundaram a discussão avançam que o humor não deveria degradar comunidades que se instalaram recentemente na França e que não compartilham necessariamente os mesmos valores. Aqui eis uma questão que surge: considerado isto, os cartunistas (ou quem seja) tem de se abster de satirizar essas comunidades e o islã? Deve trata-los de forma diferenciada? E se se trata de “poupar” uma comunidade vulnerável, como então esta comunidade muçulmana pode sentir-se integrada se ela não é tratada igualmente aos outros?

As nossas culturas de imigração têm sido, historicamente, muito mais laxistas que na Europa. Aqui, cada imigrante, geralmente europeu ou asiático, pode se instalar e preservar suas culturas e tradições, desde que pague os impostos e respeite a lei. Já a tradição francesa parte da ideia de integração e "assimilação", para que, no meio prazo, todos sejam "franceses" (de fato o IBGE francês não recolhe nenhuma informação sobre raça, religião, etnia, etc...). Assim, neste contexto republicano existe uma tradição totalmente legítima: ninguém está fora da lei, ninguém pode ser tratado diferentemente. A integração a uma sociedade, do mesmo jeito que a recepção de uma imigração de massa, tem que conter um período de aprendizagem e respeito mútuo. O primeiro de todos os respeitos, segundo me parece e segundo desenvolvi na tradição marxista, é, justamente, a igualdade...

Adrián Albala é pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Políticas Pública da USP (NUPES).