Esta é a primeira de uma série de intervenções originais escritas por cientistas políticos, antropólogos e filósofos acerca do atentado ao periódico satírico francês Charlie Hebdo. As diferentes contribuições discutem o que o Caso Charlie Hebdo representa para questões de tolerância, direito de expressão, integração cultural e violência nas democracias contemporâneas. As posições expressas em cada post são - como não poderiam deixar de ser - estritamente autorais.
As vicissitudes do debate Eu sou Charlie vs. Eu não sou Charlie
Por Adrián Albala
Nas horas que se seguiram após os terríveis atentados contra o jornal
satírico francês, Charlie Hebdo (CH), massificou-se uma onda internacional de
apoio e identificação com as vítimas, sob o lema “Eu sou Charlie”. O sentido
deste lema espontâneo continha um duplo objetivo: primeiro, repudiar a
violência e o terrorismo; segundo, para se posicionar na defesa da liberdade de
expressão de um órgão de imprensa, por mais irreverente e politicamente
incorreto que este fosse. A difusão deste lema e apoio ao mesmo desembocou na
grande marcha do domingo passado (11), na qual mais de 4 milhões de pessoas se manifestaram
em toda a França, sendo1,5 milhão apenas em Paris.
Portanto, chama à atenção que, horas após a aparição deste movimento “Eu sou Charlie”, apareça uma espécie de contra
movimento autoproclamado “Eu não sou
Charlie”. Este movimento se difundiu muito rapidamente através das redes
sociais, particularmente deste lado do Atlântico. Pode-se ver um bom exemplo
deste fenômeno num artigo do Leonardo Boff. O argumento principal é que as
charges de CH teriam sido ofensivas à comunidade muçulmana, a qual já é indiscutivelmente
vulnerável e alvo de discriminação constante. A partir disto, vários
comentaristas têm assimilado o CH a uma postura racista, neocolonialista e
imperialista. Vários inclusive afirmaram que CH auxilia o partido da
extrema-direita, Frente Nacional, na banalização do ódio contra os muçulmanos.
Como bem disse o Laerte numa entrevista dada à UOL nos dias anteriores, o
humor é, geralmente, cultural. O humor francês é, em geral, um pouco mais
pesado que o humor britânico, por exemplo, ou que o humor brasileiro. Logo,
obviamente, existem aspectos pessoais. Todo mundo não ri das mesmas coisas. O CH
parte da ideia, sensata e saudável, que dá para rir de tudo e de todos. Em
minha opinião, quando a zoeira ou caricatura toca todo mundo sem exceção, ela
não toca ninguém em particular. O fato de poder satirizar ou caricaturar o Islã
como instituição (e não os muçulmanos) parte da ideia de que
"santificar" uma religião sob o pretexto que ela é diferente por ser professada,
no caso francês, por uma minoria muitas vezes discriminada, constitui
justamente uma atitude neocolonialista. Isso de satirizar o Islã no mesmo nível
que o catolicismo e o judaísmo constitui uma tentativa de, justamente,
assimilação por semelhança.
O CH não faz discriminação, ao contrário, ele zomba de todo mundo. O
fato de não zombar do islã, quando você já zomba do cristianismo (mas não os
cristãos) o judaísmo (mas não os judeus), denota-se claramente como um esforço
de colocar essas três religiões no mesmo nível. Vale lembrar que o jornal em
questão tem por alvos principais as religiões e a política, o establishment e a
extrema-direita. Ninguém tem passe livre: satirizar a todos para não
discriminar ninguém.
Além disso, uma das capas mais famosas a que a maioria se refere,e que
tem a seguinte mensagem: "O Alcorão é uma merda, ele não para os balaços",
referia-se à matança no Egito,na qual muçulmanos mataram outros muçulmanos, em
nome do Islã e do Estado...É inconcebível comparar árabes a terroristas. A
caricatura, em nenhum momento, ataca aos muçulmanos, mas sim, às matanças
organizadas em nome de uma religião e do Estado.
Contudo, alguns analistas que aprofundaram a discussão avançam que o
humor não deveria degradar comunidades que se instalaram recentemente na França
e que não compartilham necessariamente os mesmos valores. Aqui eis uma questão que
surge: considerado isto, os cartunistas (ou quem seja) tem de se abster de
satirizar essas comunidades e o islã? Deve trata-los de forma diferenciada? E
se se trata de “poupar” uma comunidade vulnerável, como então esta comunidade
muçulmana pode sentir-se integrada se ela não é tratada igualmente aos outros?
As nossas culturas de imigração têm sido, historicamente, muito mais
laxistas que na Europa. Aqui, cada imigrante, geralmente europeu ou asiático,
pode se instalar e preservar suas culturas e tradições, desde que pague os
impostos e respeite a lei. Já a tradição francesa parte da ideia de integração
e "assimilação", para que, no meio prazo, todos sejam
"franceses" (de fato o IBGE francês não recolhe nenhuma informação
sobre raça, religião, etnia, etc...). Assim, neste contexto republicano existe uma
tradição totalmente legítima: ninguém está fora da lei, ninguém pode ser
tratado diferentemente. A integração a uma sociedade, do mesmo jeito que a
recepção de uma imigração de massa, tem que conter um período de aprendizagem e
respeito mútuo. O primeiro de todos os respeitos, segundo me parece e segundo
desenvolvi na tradição marxista, é, justamente, a igualdade...
Adrián Albala é pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Políticas Pública da USP (NUPES).