Esta é a terceira de uma série de intervenções originais escritas por cientistas políticos, antropólogos e filósofos acerca do atentado ao periódico satírico francês Charlie Hebdo. As diferentes contribuições discutem o que o Caso Charlie Hebdo representa para questões de tolerância, direito de expressão, integração cultural e violência nas democracias contemporâneas. As posições expressas em cada post são - como não poderiam deixar de ser - estritamente autorais.
Charlie Hebdo e os Limites da Tolerância
Por Paula Montero
As multidões que tomaram as ruas de Paris e de outras capitais na Europa na segunda semana de janeiro levantando a bandeira ”Je suis Charlie”, além de expressarem a forte comoção que a violência gratuita contra jornalistas provocou, impressionam por dois outros motivos.
Pela primeira vez, movimentos de rua em defesa da liberdade de opinião conseguem se apresentar com o mesmo grau de convicção e força coletiva que as manifestações muçulmanas de indignação que vimos assistindo desde 2005 em decorrência da publicação das charges com a figura de Maomé no jornal dinamarquês Jyllands-Posten.
Naquela ocasião, a Organização da Conferência Islâmica e a Liga Árabe pediram às Nações Unidas que impusessem à Dinamarca sanções internacionais e exigiram a introdução de leis contra a blasfêmia na Europa. A publicação das charges motivou multidões de muçulmanos a saírem às ruas em protestos, com queima de bandeiras e ataques à embaixadas. A extensão e violência das reações deu lugar a uma grave crise diplomática e levou vozes importantes como o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, e outros intelectuais a consideraram que a imprensa havia ultrapassado os limites aceitáveis de sua liberdade ao ridicularizar as convicções religiosas dos muçulmanos. Desde então uma sucessão de atentados pontuais foram perpetrados na Dinamarca e outros países contra jornalistas que se arriscavam a publicar as charges. Na ocasião, o cartoonista Westergaard, autor da charge que motivou os protestos, lamentou a falta de apoio de políticos e intelectuais à sua posição na Dinamarca.
Hoje, as quase 4 milhões de pessoas que foram às ruas para demonstrar seu apreço pela liberdade e tolerância, me fazem pensar que o fiel da balança mudou de direção. As multidões vieram a público reafirmar a convicção de que em resposta à ofensa não é aceitável calar pessoas por meio de ações violentas.
Pela primeira vez também, 50 chefes de Estado de diferentes espectros ideológicos marcharam ombro a ombro pelas ruas, ao lado dos seus concidadãos e sem aparatos de segurança, para reafirmar a liberdade de imprensa e de opinião como pilares fundamentais dos sistemas democráticos.
Essas manifestações e a vasta cobertura jornalística de que foram objeto, indicam que o atentado contra o jornal satírico Charlie Hebdo representou um evento quase tão devastador quanto o atentado às Torres Gêmeas em Nova York em 2001. Com a diferença que, naquele caso, a derrubada das torres, pela sua espetacularidade e seqüestro de aviões de carreira, pôde ser interpretado como um ato que procurou atingir, em sua autoconfiança, o poder econômico e politico dos Estados Unidos expondo a vulnerabilidade de seu próprio monumento; neste caso, indivíduos foram deliberadamente assassinados em razão das idéias que eles afirmavam professar. O fato dos atiradores chamarem um a um os cartunistas pelo nome e em seguida atirarem com metralhadoras de alto calibre foi um dos elementos que colaboraram para que este atentado, mais do que o de Nova York, tenha sido lido quase unanimemente, não como um ato político, mas como simples barbárie.
Mas como resolver a difícil equação que consiste em aceitar os requisitos, ao mesmo tempo, da liberdade de expressão e das restrições à ofensa contra religiões?
Como se sabe, as nações européias encerram seu longo ciclo de mais de um século de guerras religiosas que sucederam a Reforma protestante pactuando a paz em nome do preceito de tolerância. O programa político da tolerância supõe a separação das finalidades do Estado com relação às finalidades da Igreja e, em um primeiro momento, a conseqüente proteção legal da dissidência religiosa. Essa posição evolui, na segunda metade do século XVI para a idéia de liberdade de consciência e do respeito mútuo entre religiões. No bojo da luta dos anabatistas contra a Igreja Anglicana e contra os protestantes clássicos (calvinistas e luteranos) a própria idéia de Igreja se modifica: ela deixa de ser concebida como uma instituição universal e se redefine como uma associação civil voluntária que resulta de um contrato entre seus membros. O filósofo J. Locke retoma essa idéia como um dos pilares de sua teoria da tolerância. Em sua Carta acerca da tolerância (1689), que se tornou uma referência clássica para nossos sistemas políticos, Locke propõe que o Estado e Igreja são duas sociedades separadas com finalidades distintas às quais se pertence por consentimento individual. O argumento do contrato é o único fundamento do poder dessas sociedades e também de seus limites. A novidade do pensamento lockeano é sua ênfase no caráter voluntário da associação religiosa (e estatal) de modo a que “a nenhum homem lhe será imposto um legislador que ele mesmo não escolheu”.
No século XX a idéia de tolerância volta ao foco do debate no bojo dos movimentos de defesa de minoria e das políticas de identidade. Diferentemente do conceito liberal, ao estender a idéia de tolerância ao reconhecimento das identidades (inclusive religiosas), esses movimentos lançam mão de instrumentos jurídico-político que criminalizam as condutas discriminatórias, abrindo novamente espaço para a intervenção estatal na definição e imposição de formas específicas de tolerância. Essa ambigüidade intrínseca ao conceito contemporâneo dá suporte a posições diferentes e até mesmo contraditórias com relação aos limites da tolerância. Uns defendendo a estrita não-intervenção do Estado, outros considerando que o desrespeito às religiões justifica punições.
A magnitude dos atentados de Paris e a reação pública que lhes sucederam nos permitem pensar que a posição de Locke permanece um pilar importante a ser preservado pelo bem de nossos sistemas democráticos. A dimensão arbitrária e autocrática dos atentados de Paris reside, em parte, no fato de que algumas lideranças religiosas vêm se outorgando o direito de legislar (com pena de morte) sobre pessoas que não os acolheram como legisladores. Evidentemente a tolerância, como respeito às diferenças, não pode ser abandonada como virtude cívica. Mas como traçar uma linha entre o dever de tolerância e a exigência de opor-se ao intolerável? Não é fácil responder a essa questão, mas é claro que de nenhum modo se pode aceitar que visões de mundo particulares, procurem se impor pela força, sobre aqueles que não aderiram à elas. Os limites da tolerância estão sujeitos à dinâmica dos conflitos políticos; portanto, só podem ser definidos contextualmente, isto é, no âmbito das relações recíprocas entre pessoas concretas. E para que isso possa acontecer é preciso que lideranças cristãs, muçulmanas, judaicas e outras estejam dispostas a contribuir para o fortalecimento de instituições que promovam uma cultura de tolerância. Que na linha de frente das manifestações parisienses estivessem o premiê israelense e o chefe da autoridade palestina, que o presidente iraniano e o chefe do Hezbollah tenham se declarado publicamente contra os atos terrorista, que mais de 50 chefes de Estado tenham se solidarizado com a republica francesa, nação com a maior população muçulmana entre os grandes países europeus, renovam as esperanças de que as incertezas sobre o islamismo e o secularismo se acomodem de maneira a que o terror como instrumento político não tenha mais lugar nem sentido.
Paula Montero é professora titular do departamento de Antropologia da USP.
O texto tem post cruzado com o Opinião Cebrap.