quinta-feira, 5 de maio de 2016

Golpe e Legitimidade

Por Renato Francisquini


A esfera pública brasileira tem debatido insistentemente a respeito da legitimidade do impedimento da presidente Dilma Rousseff. Recentemente, parte significativa dessa discussão tem se dado em torno da definição do processo como um golpe, ainda que institucional, ou como parte das regras do jogo político democrático. Creio ser necessário, para evitar confusões ulteriores, rechaçar que se trate de um golpe no mesmo sentido da interrupção causada pela intervenção de um aparato militar. Poderíamos, por isso, afirmar que se trata de um processo que ocorre dentro dos marcos da legitimidade democrática? Gostaria de sugerir que não, ou seja, que é possível questionar sua adequação ao que se espera de uma decisão democrática legítima. Não se trata, porém, de um argumento trivial.

Para começar, não podemos deixar de mencionar as inaceitáveis violações cometidas pelos órgãos do Estado, admitidas pelas próprias instâncias judiciais e sobre as quais o juiz responsável se retratou (mas cujos impactos são irrevogáveis e gravíssimos). Um dos casos mais escandalosos envolveu o ex-presidente Lula, que foi, primeiro, coercitivamente conduzido para prestar depoimento na sede da Polícia Federal no aeroporto de Congonhas e que, em seguida, teve a privacidade invadida pela divulgação de gravações, autorizadas pelo mesmo juiz de primeira instância, de telefonemas pessoais e entre ele e seus advogados – neste último caso, sobretudo, uma afronta evidente aos direitos constitucionalmente garantidos.

Além das patacoadas de juízes e promotores de primeira instância, vale a pena lembrar também a larga abstenção do Supremo Tribunal Federal em matérias, de enorme impacto sobre o processo de impedimento, que chegaram à corte mas não ganharam a atenção e a celeridade devidas. O julgamento do pedido do Procurador-Geral para o afastamento do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que apresenta fartas evidências da interferência do deputado sobre o processo de cassação de seu próprio mandato, mostra uma cautela excessiva que deixa suspeitar certa temeridade por parte dos ministros do STF. Tampouco fica claro porque o tribunal se negou até o momento a analisar em plenário a liminar concedida por Gilmar Mendes contra a posse de Lula como ministro-chefe da Casa Civil.





Não bastasse a atuação pouco prodigiosa das instâncias judiciais, acompanha-se, na cobertura da grande imprensa sobre o tema, flagrante parcialidade e violação dos códigos de ética jornalística,  ambos com efeitos devastadores sobre a formação de opinião . A começar pelo próprio episódio envolvendo as gravações de conversas telefônicas do ex-presidente Lula, cujo sigilo foi levantado coincidentemente quando de sua nomeação para a chefia da Casa Civil. Em que pese o potencial erro político dessa indicação, nada me parece justificar a conclusão imediatamente abraçada pelos jornais e telejornais de maior audiência do país.

Para ficar em um exemplo, a Folha de S. Paulo registrou, em letras garrafais, no alto de sua homepage: “Dilma agiu para tentar evitar a prisão de Lula, mostra grampo telefônico” (FSP, 16 de março de 2016, 19h37) – assim mesmo, sem filtros ou conjugações condicionais. Tal interpretação é verossímil a partir dos áudios divulgados? É preciso admitir que sim. Contudo, seria ela uma conclusão inatacável, como dois e dois são quatro? A então ombudsperson do jornal, Vera Magalhães, pareceu assentir com a conclusão - ao menos este foi o tom de sua resposta em comunicação via endereço eletrônico, quando a questionei sobre a escolha editorial.

Para entender por que essa interpretação e outras visões da imprensa familiar brasileira ganhou o status de verdade – e não mais de versão, como atesta a manchete acima referida e como evidencia ainda mais fortemente o tom usado pelos jornalistas da Globonews e do Jornal Nacional –, e como a parcialidade explícita de grandes organizações de comunicação nacional vem ganhando destaque na mídia internacional, precisamos lançar luz sobre o processo discursivo mediado pelos grupos tradicionais de comunicação e como a sua interpretação se tornou uma espécie de ortodoxia vigente na esfera pública brasileira.

Apresentar interpretações de certos eventos como verdades inatacáveis (apresentando-as apressadamente em destaque absoluto, como no caso acima), desconsiderando que o conteúdo foi obtido mediante desconsideração contumaz às normas legais, só é possível em um ambiente discursivo que despreza e interrompe a pluralidade, permitindo que os canais do jornalismo tradicional desfrutem de uma imagem de imparcialidade e ética que não condiz com o seu histórico, tanto pregresso quanto atual.

Pois notemos: as manifestações dos últimos meses contra o governo execraram o ex-presidente Lula, a presidente Dilma e o PT, vaiaram também Alckmin e Aécio (Paulinho da Força sequer pôs os pés na Paulista), expulsaram Alexandre de Moraes (Secretário de Segurança Pública de São Paulo) e o líder do Vem Pra Rua. Foram poucos os que saíram intactos da ebulição que tomou conta das avenidas e praças ao redor do país – de modo geral, mas nem sempre, figuras não identificadas com os diversos governos, sejam nas esferas federal, estadual ou municipal – à desonrosa exceção do deputado Jair Bolsonaro, que na votação da noite de 17 de abril homenageou o coronel, e torturador do regime militar, Carlos Brilhante Ustra. Todavia, os que se posicionam intempestivamente contra a política e os políticos tradicionais, seguem aplaudindo o Jornal Nacional, em rompantes históricos de agitação e ódio que remontam ao contexto de 1964. Veja bem, em março de 2016, promoveram-se “aplaudaços” para venerar o Jornal Nacional!

Fico me perguntando o que seria preciso para que houvesse ao menos uma dose de ceticismo em relação às verdades enunciadas perlocucionariamente por um canal cujos diretores admitiram, sem qualquer pudor ou arrependimento, em 1989, terem manipulado um debate entre Lula e Collor para favorecer o candidato de sua preferência; um canal que há pouco mais de um ano assumiu, tímida e insatisfatoriamente, ter apoiado o golpe civil-militar de março-abril de 1964 (aliás, uma tendência quase geral da imprensa à época). Não fica claro o que seria necessário para que se questionasse a leitura ora hegemônica entre os meios de comunicação tradicionais sobre o cenário político. O esforço dos veículos impressos e eletrônicos da mídia oligopolizada para desconstruir ou, no mínimo, atenuar, a posição de seus congêneres internacionais sobre o processo de impedimento criou embaraço nacional quando um membro da família Marinho, e diretor das Organizações Globo, enviou uma “petição” ao inglês The Guardian por discordar das afirmações do periódico inglês sobre a parcialidade do grupo de comunicação brasileiro. Tal como reporta o ultimo relatório da organização Repórteres Sem Fronteiras, o principal obstáculo à Liberdade de imprensa no país hoje é justamente a concentração dos meios de comunicação em escala nacional em torno de um punhado de famílias com óbvias ligações com a classe política.

Quando a realidade chega até nós por lentes unifocais e obstaculizadas, a nossa tendência é reproduzir, não duvidar. Aplaudimos por acreditar que, de alguma forma, a versão apresentada representa uma compreensão sobre o mundo que nos parece correta, universal, mas apenas porque não fomos expostos a quaisquer alternativas a ela.

Enquanto as Organizações Globo estiverem falando sozinhas, acompanhadas de longe por outros que, no mais das vezes, reproduzem a sua voz ou compartilham com eles a mesma compreensão sobre o contexto político e social, é improvável que venha a emergir uma apreensão crítica das perspectivas transmitidas pelos meios de comunicação com abrangência nacional. Ou mesmo algo menos exigente: que se entendessem as suas interpretações como hipóteses que, por definição, não passam de uma opinião e carecem de comprovação empírica. A seguir nessa linha, continuaremos a saudar os mesmos valores supostamente violados pelos governos do PT, ainda hoje tratados por muitos como comunistas, bolivarianos e os criadores da corrupção institucionalizada (afinal, os outros roubavam, mas, por alguma razão ainda obscura, não era a mesma coisa).

Como diria o bom e velho John Stuart Mill, sem uma pluralidade de alternativas disponíveis para a formação das opiniões públicas e valores, dificilmente poderíamos falar em escolhas autônomas, porquanto estas são definidas sem um conhecimento adequado das perspectivas concorrentes. Pluralidade não significa simplesmente o direito formal à proliferação de fontes de informação, para o que, afirma-se, a internet e os meios alternativos seriam plenamente suficientes. Diversidade demanda condições efetivas, pela distribuição menos desigual dos espaços de fala onde as vozes dissonantes possam ressoar e competir em pé de igualdade com as versões ora predominantes.

Desde os gregos, o fundamento da legitimidade política é o consentimento daqueles sobre os quais recaem as decisões, considerados capazes tanto de tomar decisões quanto de se submeter aos seus resultados. Se este consentimento exige algo mais do que o comparecimento mais ou menos interessado a cada ciclo eleitoral para autorizar aqueles que irão nos representar, a comunicação pública é um elemento necessário para a legitimidade na medida em que é nela que se constrói a opinião e a vontade democrática e, ao mesmo tempo, é onde se apresentam as oportunidades à participação dos cidadãos nessa mesma construção. Quando o processo deliberativo limita a contribuição comunicativa àqueles pontos de vista que reproduzem (ou não ameaçam em grande medida) o consenso em torno do qual se puseram de acordo os principais veículos de comunicação, o consentimento dos cidadãos encontra-se claramente corrompido.

Voltando assim à questão com que iniciei esse texto: em que medida podemos considerar que o processo mais amplo que nos conduziu à atual situação teria sido plenamente legítimo?

Ainda que a decisão final sobre o impedimento da presidente Dilma Rousseff caiba a quem de direito, ou seja, aos representantes investidos de mandato concedido pelo povo; embora a Câmara dos Deputados e o Senado Federal sigam o roteiro estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal, guardada a devida discricionariedade que cabe aos legisladores, como a de agendar, como quis o absolutamente ilegítimo presidente da Câmara, a data da votação para um domingo, por mais esdrúxulo que isso possa parecer; mesmo que o atual processo não recorra ao uso da força e sim aos mecanismos jurídicos e institucionais, ao contrário, portanto, do que se passou no fatídico março/abril de 1964 – que, vale lembrar, à época (e, em alguns casos mais extremos, também nos dias de hoje) denominou-se “revolução”; enfim, a despeito de se cobrir de um véu de normalidade factual, se olhamos para o enquadramento mais amplo, é patente a ilegitimidade do processo que poderá culminar no fim precoce do mandato presidencial. Dentre outros motivos mencionados, o processo por meio do qual se formou a vontade expressa pelos deputados no último domingo e em que se está construindo a vontade dos senadores, para o qual os “placares” expressos nos veículos da mídia tradicional em muito contribuem, carece substantivamente de validade. Usar o termo golpe ou não, fica ao gosto do freguês. De minha parte, considero apenas que a imprensa se esforça por deixar cada vez mais nítida a necessidade fundamental de reformas que promovam a pluralidade no sentido de que o empreendimento de construção da opinião pública seja de fato democrático.


Renato Francisquini é Doutor em Ciência Política (USP). Professor substituto do Departamento de Sociologia e Ciência Política (UFSC).