terça-feira, 6 de outubro de 2015

A risada de Judith Butler

Por Lucas Petroni

A filósofa norte-americana Judith Butler (Berkeley) esteve recentemente no Brasil como convidada principal do I Seminário Queer: Cultura e Subversões das Identidades organizado pela Revista Cult e pelo Sesc. A conferência de Butler pode ser conferida abaixo. A passagem de Butler é não apenas uma boa notícia para os vários grupos de pesquisa dedicados aos estudos de gênero e identidade no país, para os quais a obra de Butler é um referencial teórico incontornável, mas também um capítulo nas batalhas pela inclusão das discussões sobre gênero e sexualidade na grade curricular convencional e dos debates sobre o estatuto da família. A presença de Butler no país foi motivo de protesto por um pequeno grupo de ativistas conservadores de São Paulouma batalha logicamente compreensível, mas que surpreendente dada à dificuldade e o caráter especializado dos trabalhos de Butler.


(Judith Butler durante o Occupy NY em 2011)

A principal contribuição de Butler para a filosofia política certamente foi sua teoria de gênero - e da identidade pessoal de modo geral - como performance, isto é, como algo construído por meio de nossas interações pessoais ao longo das nossas trajetórias de vida, em oposição à visão clássica e amplamente assumida tanto na filosofia clássica como em nosso dia a dia de que nossa identidade pessoal é apenas a expressão exterior de uma verdade interior mais fundamental e, portanto, mais importante para fins normativos do que nossas eventuais auto-atribuições. Ser "homem" parece ser algo mais importante, segundo a visão tradicional, do que "ser feliz" ou "ser pobre", para usarmos um exemplo banal. Para Butler, contudo, a "feminilidade" de alguém (notar: "alguém", e não uma "mulher") é tão contingente e socialmente construída por meio de ações e intenções quanto as categorias "pobre" ou "feliz" o são.

Ser pobre, para ficarmos com esse exemplo, exige como condição de possibilidade uma relação historicamente determinada entre possuidores e não-possuidores, além, é claro, de instituições socialmente compartilhadas, como a propriedade privada e o direito, que só podem funcionar caso ambos os pólos da relação consigam entender as suas regras de funcionamento. Com o gênero teríamos a mesma situação: não faz sentido para Butler concebermos gênero como uma identidade subjacente, natural a cada um de nós, a espera de ser "descoberta" seja pelo uso adequado da razão ou por categorias sociais bem compreendidas.

Desse modo, por exemplo, formas de opressão contra as mulheres não ocorreriam a despeito de suas identidades, isto é, porque violam suas identidades morais enquanto seres humanos, mas sim na medida em que tais atribuições identitárias impõem uma identidade não reconhecida as mulheres e, com isso, constrangendo as inúmeras possibilidades de auto-realização pessoal - obrigando-as, por exemplo, a exercerem um papel social fixo, tal como a maternidade monogâmica e heterssexual, que não gostariam de exercer. Butler resume de modo claro essa ideia em sua entrevista para a Ilustríssima ao afirmar que, em seu entendimento, 

"[A]lgumas pessoas [temem] que 'gênero' signifique que não haja leis naturais que regulem a divisão entre sexos. Elas querem leis naturais para estabelecer a questão de gênero para elas [ênfase acrescida]. [...] Enquanto alguns entendem que vidas podem ter várias trajetórias de gênero e sexuais, os que temem gênero querem que haja só uma vida. E querem que ela seja fixada por Deus ou por lei natural. Todo o resto é caos amedrontador, e com frequência escolhem o ódio como forma de lidar com seus medos". 

Se o feminismo na filosofia política pode ser definido, de modo muito geral, como a tarefa premente de dar um sentido normativo para a auto-representação das mulheres nas sociedades contemporâneas sem reduzir a "feminilidade" (ou a "masculinidade", etc.) à elementos naturais, com sua teoria da performatividade Butler elevou as exigências da contestação identitária a um grau mais elevado. A biologia não é a única forma essencialismo em jogo: a própria dicotomia identitária entre os gêneros masculinos e femininos pode ser outra essencialização igualmente opressora. Para usarmos um slogan forte adotado por um teórico queer francês inspirado por Butler: entre uma mulher e uma drag queen a única diferença que importa é o comprimento do salto




Caso aceitemos a tese de Butler segundo a qual não existem identidades anteriores àquelas nas quais somos constrangidos a nos expressar em sociedade, podemos entender o que significa uma "política de identidades". Por definição, se não existem identidades anteriores à política, então todo ato de reivindicação identitária coloca em questão (i) o modo como construímos coletivamente nossas categorias identitárias ao longo da história e (ii) as diversas formas potenciais de silenciamento e exclusão trazidas quando as re-atualizamos (um terceiro ponto a ser explorado seria nos perguntar se toda forma de reivindicação identitária pressupõe um "outro" a quem devemos nos opor, mas deixemos de lado essa questão por um momento). Essa é a razão pela qual a concepção de gênero de Butler precisa valorizar positivamente tanto a performance como formas socialmente marginalizadas (portanto, potencialmente contestatórias) de identidade. 



Butler tem por área de especialização acadêmica a filosofia européia contemporânea. Em sua tese de doutoramento, que teve uma versão publicada sob o título Sujeitos do desejo, a autora apresentou uma pesquisa sobre conceito de desejo em Hegel e sua recepção no pensamento francês (em especial, em Sartre, Foucault, Lacan e Deleuze). Nesta obra já estão presentes um conjunto de preocupações que constituirão as principais questões conceituais que a acompanham ao longo de sua carreira, especialmente a pergunta se, e de que modo, nossas identidades são construídas por meio de interações com os outros. Como pergunta logo no início dessa obra: “o que é a relação entre desejo e reconhecimento e como a constituição do sujeito implica uma relação radical e constitutiva à alteridade? [ênfase acrescida]”.

Basta uma tentativa rápida de leitura para percebermos que n
ão é incomum encontrarmos conceitos filosóficos densos em seus argumentos sem grandes contextualizações. Ou seja, ler Butler pode ser uma tarefa difícil para os não familiarizados ou até mesmo inviável para quem não estiver disposto a tratar a questão de um ponto de vista filosófico, psicanalítico e político. Somando isso ao seu diálogo constante com autores e autoras pós-estruturalistas, o risco de descaracterizar sua teoria por meio de atribuições fáceis de relativismo social ou, dessa vez por parte dos adeptos, de cairmos em um obscurantismo conceitual ao tentarmos apresentar suas ideias é, infelizmente, comum

Não devemos nos enganar: "construção" é um conceito diferente de "ficção" e "performatividade" é algo bem diferente de simples "escolha". A concepção performativa de gênero defendida por Butler não deve ser confundida com um simples nominalismo de identidades - a ideia de que cada um inventa sua própria identidade, sem atritos. O ponto é justamente o contrário. Nossa própria identidade pessoal, aquilo que supostamente nos define enquanto agentes morais únicos, depende, sobretudo, de como somos reconhecidos ou re-apresentados pelos outros em nossas interações cotidianas. Adotar uma identidade queer - para usarmos um dos exemplos preferidos da autora - é uma questão de luta e não de mera liberdade de escolha em um mercado de identidades: 

"Afirmar que a política exige um sujeito estável é afirmar que não pode haver oposição política a essa afirmação. Com efeito, essa afirmação implica que uma crítica do sujeito não pode ser uma crítica politicamente informada, mas antes, um ato que põe em xeque a política enquanto tal. Exigir o sujeito significa tomar de volta o domínio do político e essa espécie de execução judicial, instalada analiticamente como uma característica essencial do político, impõe as fronteiras do domínio do político de tal forma que essa imposição fica protegida do exame político. O ato que estabelece unilateralmente o domínio do político funciona então como um estratagema autoritário pelo qual se silencia sumariamente a contestação política do estatuto do sujeito" (Butler, 1998 p. 13). 

Problemas de gênero na abordagem de Butler pode ser apenas mais uma de uma série de narrativas contingentes que nos atravessam e determinam em alguma medida nossas perspectivas de vida. Mas é justamente por não temos o controle sobre essas narrativas que, para a autora, precisamos criar constantemente mecanismos de contestação de identidades assumidas. Rir de categorias que se apresentam como incontestáveis talvez seja o primeiro passo para nos livrarmos de seu autoritarismo implícito. 

Parece ser possível concluir que a filosofia polí
tica de Judith Butler pode ser incorporada a uma distinta linhagem filosófica que tem por grandes autores (notemos aqui o gênero do substantivo) como Hegel, Nietzsche, Heidegger e Foucault (especialmente em seus últimos trabalhos), Charles Taylor e Axel Honneth. A principal característica desses autores é, justamente, a tentativa de repensar os modos de se fazer filosofia moral no mundo contemporâneo. A filosofia moral deveria ser pensada como uma  prática intelectual (e ética sem dúvida) que só faz sentido quando concebida dentro de um referencial social determinado. Um tipo de ética contra discursos morais universalizantes. 

mundo que partilhamos exigiria uma resposta para a pergunta (ética) "como devemos viver com significado?”, muito mais do que a busca pela definição (moral) de "nossos deveres e obrigações universais” como seres racionais. A ideia de uma ética contra a moral, para Butler como para os demais, seria especialmente urgente quando a autoridade dos princípios morais encontra-se fundamentada em fontes exteriores à nossa precária situação humana, tais como um Deus, a Razão, o Mercado, o Povo, a Nação ou, no caso de Butler, também a Mulher. 

Agradeço a Raissa Ventura pela preciosa ajuda no escrita deste texto


Leituras recomendadas:


[Butler é uma autora relativamente bem estuda por nós e conta com muitos artigos traduzidos para o português. O artigo em questão foi publicado nos Cadernos Pagu da Unicamp] 

[Obra  mais importante de Butler na qual ela apresenta de modo sistemático sua teoria performativa da identidade - na íntegra].

[Excelente verbete da Enciclopédia de Stanford escrito por Cressida Heyves]