domingo, 11 de outubro de 2015

As eleições norte-americanas são justas?

Por Lucas Petroni

É incontestável que a composição da sociedade norte-americana passa por uma transformação sem precedentes. O número absoluto de falantes de espanhol já é maior nos EUA do que na Espanha, a quantidade de mulheres solteiras nunca foi tão grande e o monopólio da família monogâmica está sendo colocada em questão por novas formas de relacionamento homoafetivo - recentemente a suprema corte no país decretou que leis estaduais contrárias ao casamento gay são inconstitucionais. Entretanto, a depender do funcionamento do seu sistema eleitoral, pouca coisa irá mudar nos próximos 4 anos seja quem for que venha ocupar a vaga na casa branca.

Segundo uma excelente matéria de capa do NY Times - matéria que nos lembre que, se os efeitos da concentração da mídia nos EUA são ruins, no Brasil eles são catastróficos para o debate público - apenas 158 famílias norte-americanas foram responsáveis, até o momento, por mais da metade do financiamento eleitoral da corrida presidencial no país (176 milhões de dólares aproximadamente) considerando ambos os partidos. Ou seja, 158 famílias tradicionais, monogâmicas, falantes de inglês e brancas ("nenhuma é negra", a matéria não deixa de frisar) de um universo de 120 milhões de unidades familiares já decidiram em alguma medida algumas das principais questões políticas na pauta do próximo presidente ou presidenta. 

Parece uma loucura? Pode ser pior. 

Dessas 158 famílias de milionários (reparem no gênero masculino) 130 apoiam a campanha republicana, contra apenas 20 democratas, e, juntas, elas dão um sentido literal ao que os sociólogos chamam de feudalismo constitucional, i. e. o processo de insulamento político dos mecanismos de mudança institucional contra adversários de fora do sistema. Várias dessas famílias são literalmente vizinhas: oito delas vivem em um mesmo bairro em Houston e duas na mesma rua em uma ilha-condomínio na Flórida. 





Não resta muita dúvida de que a influência da riqueza privada nas doações de campanha foi exacerbada por uma polêmica decisão da Suprema Corte do país em 2010, a chamada Citizens United vs. FEC, na qual ficou decidido que a primeira emenda à constituição (de 1791), proíbe que o Estado regule o quanto associações privadas, sindicatos e, principalmente, corporações podem participar do processo eleitoral. Nesse sentido as corporações, e as famílias que as controlam, deveriam ser entendidas como uma "pessoa".

Ronald Dworkin, um dos filósofos do direito mais importantes do século XX,  costumava se referir à Citizens United simplesmente como a "decisão devastadora" (ver aqui a troca de argumentos entre Dworkin e o advogado pró-decisão Floyd Abrams). Para entender o porquê da devastação, basta um pouco de matemática elementar: alguém como o bilionário do mercado financeiro Kenneth Griffin já doou cerca de 300 mil para os republicanos. A quantia por si só pode parecer exorbitante e com certeza ela aumentará a partir do ano que vem quando os democratas entrarem na corrida. Contudo, de acordo com os cálculos da agência de orçamento do congresso norte-americano, ela representaria apenas 22 dólares caso vertêssemos a fortuna mensal de 62 milhões de Griffin nos termos do orçamento médio de uma família norte-americana. O peso desproporcional da quantidade de recursos disponíveis para serem gastos no sistema político torna discutível o princípio de igualdade de oportunidades políticas entre os cidadãos. Supostamente em nome da liberdade de expressão, os juízes decidiram que 120 milhões de famílias não terão muita chance de pautar a agenda dos presenciáveis e que o montante de dinheiro privado na política norte-americana tem o direito de permanecerem opaco ao poder público. 

Mas poderíamos nos perguntar: não estaríamos exagerando um pouco o argumento? O que nos garante que as tais 158 famílias não estariam defendendo os interesses dos norte-americanos em geral, ao apoiarem (supostamente) bons governos? 

Em primeiro lugar, o papel do dinheiro privado nas campanhas é problemático tendo em vista não apenas a mudança de composição social mas também a recente escalda da desigualdade (ilustrada abaixo). Considerando que grande parte do lobby nesse caso trata justamente de impor limites à expansão de programas sociais e a diminuição de impostos no topo da pirâmide, tudo indica que os eleitores não devem esperar grandes mudanças de atitude do governo.




Além disso, e talvez mais importante, o resultado é trágico na medida em que reforça uma concepção amplamente assumida pelo senso comum a respeito dos eleitores norte-americanos mas que, quando analisada mais de perto, não se sustenta. Acredita-se que o eleitor ou eleitora médios não acreditem que o aumento da desigualdade seja um problema, ou ainda, que todo norte-americano é, em alguma sentido, "contra" o Estado de bem-estar social.

Isto é, talvez os eleitores simplesmente não queiram (democraticamente falando) aquilo que vim supondo desde o início: mudar os rumos do país. Contrariando essa concepção uma excelente pesquisa de 2013 conduzida pelo Pew Research Center mostrou que 66% dos norte-americanos acreditam que a desigualdade econômica teria aumentando nos 5 anos anteriores e que 61% acreditam que o sistema econômico do país favorece, sistematicamente, os mais ricos em detrimento dos mais pobres (55% dos republicanos entrevistados afirmaram que o sistema econômico era equitativo entre todos enquanto 75% dos democratas e 63% dos independentes afirmaram que ele favoreceria os mais ricos). 

Nunca poderíamos inferir desse fato que os eleitores concordem quanto as causas desse aumento ou, mais importante para fins eleitorais, quais são as melhores forma de reverter esse processo. Contudo, estima-se que 2/3 dos norte-americanos gostariam que as fortunas acima de 1 milhão de dólares fossem melhores taxadas enquanto 6 em cada 10 são a favor de mais intervenção política na redução da desigualdade social. Os EUA estão longe de serem um paraíso socialista em termos de expectativas - é verdade - mas uma atenção mais criteriosa fornece uma imagem bem diferente do país daquela apresentada nos editoriais de telejornais da rede Globo. Aqui também se luta por justiça social.

Em resumo: caso alguém queira mudar as coisas nos EUA, talvez seja melhor negócio conseguir um convite para uma festa de aniversário em River Oaks ou Indian Creek do que escrever um livro ou montar um comitê. Esqueça o trabalho chato de mobilizar pessoas em nome de uma causa ou de lutar por ideais. O cofre das campanhas tem endereço.

O único problema é que para chegar até festa você provavelmente terá que ser homem, falar inglês, ter estudado nas universidades de elite e - sobretudo - ser branco.


Leituras:

- Ny Times: Buying Power - From only 158 Families, Half the Cash in the '16 Race