quarta-feira, 16 de setembro de 2015

As angústias da representação

Benito Mussolini costumava justificar o fascismo italiano, identificado em suas próprias palavras como "um experimento político anti-liberal", por meio da bravata conhecida: "O Estado liberal está fadado ao desaparecimento". Ainda que hoje a frase soe ridícula, grande parte da cultura política do entreguerras concordava com o Duce fascista: as democracias representativas seriam formas obsoletas de organização política incapazes de enfrentar, por exemplo, algumas das tarefas (alegadamente) centrais de uma sociedade moderna, tais como: a mobilização total para a guerra, o crescimento econômico induzido pelo Estado e a criação de uma identidade pública coletiva. Para as democracias - alegavam seus detratores à esquerda e à direita - cada uma dessas tarefas acabaria por ser tornar um empreendimento longo, politicamente desgastante e, sobretudo, incerto quanto aos seus resultados efetivos.  

Cem anos depois podemos afirmar que o experimento anti-liberal de Mussolini (ou as variantes à esquerda) não representam hoje uma alternativa política plausível. A democracia liberal sobreviveu. Direitos constitucionais, livre-mercado, Estado social e representação legislativa fazem parte do "pacote institucional" de um governo legítimo. Uma mistura conceitualmente contraditória e empiricamente instável entre crescimento econômico e redistribuição material, proteção incondicional de direitos individuais e formação de maiorias voláteis, de mercantilização do trabalho e proteção social, etc. Contudo, a despeito da vitoria incontestável da democracia, podemos nos perguntar: estamos, de fato, satisfeitos com o sistema representativo? 




A queda da participação eleitoral, os baixos índices de filiação partidária e uma esfera pública descrente na representação legislativa parecem ser tão disseminados nas democracias liberais hoje quanto os próprios fundamentos normativos do regime. Para o historiador Ira Katznelson (Columbia), autor do livro Fear Itself: The New Deal and the Origins of our Time e o autor convidado do fórum de debate de setembro da Boston Review, podemos resumir a "angústia" da representação política convencional por meio de dois desafios centrais. O primeiro deles, identificado como o desafio da legitimidade e superado ao longo do século XX, pode ser identificado como a capacidade de reinvenção dos governos representativos tradicionais diante das alternativas anti-liberais do começo do século XX (fascismo, corporativismo, nazismo, comunismo, anarquismo, etc.) por meio da inclusão no processo de representação daqueles setores que, segundo os fundamentos do regime representativo tradicional, deveriam ser permanentemente excluídos desse processo: os sem-propriedade, as mulheres e as minorias raciais. Políticas à la New Deal e a criação do Estado de Bem-Estar também contribuíram para a vitória democrática.

Entretanto, estaríamos vivendo atualmente as angústias de um segundo desafio: o desafio da representatividade. Para Katznelson, a representação política estaria sendo contestada a partir de dois grandes problemas. O primeiro deles diria respeito à dificuldade das instituições representativas em garantir, nas palavras do autor, "uma distribuição equitativa do poder de cidadania". Ou seja, a democracia liberal não conseguiria sustentar uma de suas promessas normativas mais importantes, aquilo que o sociólogo alemão Claus Offe chamou de princípio de não-convertibilidade: a exigência de que recursos sociais e econômicos desiguais não sejam convertidos automaticamente em recursos políticos desiguais. Relações de feudalismo constitucional, nas quais apenas uma minoria política controla os mecanismos institucionais da mudança política, e o papel do dinheiro no lobby e nas eleições teriam insulado a democracia da cidadania.

Katznelson chama atenção, em segundo lugar, para a alta complexidade institucional das decisões políticas. A esfera pública tradicional não conseguiria atender às necessidades da livre-formação de consensos e as disputas parlamentares tornaram-se tão complexas e dependentes de dispositivos regimentais, por vezes arbitrários, que dificilmente os cidadãos (ou mesmo os representantes) mais bem intencionados conseguiriam entender e justificar os fundamentos e consequências de uma dada decisão - um dos debatedores convidados, Martin O'Neill, nos lembra também o papel dos "barões da mídia", tais como os irmão Koch (EUA), os Murdoch (UK) e família Marinho (Brasil) em desmoralizar publicamente qualquer posição alternativa ao status quo político, o que representaria a mais uma camada de insulamento político.

Somados, insulamento e complexidade gerariam uma sensação de alienação profunda das decisões políticas fundamentais por parte dos representados que, incapazes de participar ou entender os processos decisórios passariam também a não mais respeitá-los. Como de costume no fórum, o ensaio sugere algumas soluções para o impasse. Para Katznelson caberia às instituições representativas no século XXI se reinventarem uma vez mais.

Três contribuições teóricas seriam fundamentais para esse projeto de reinvenção democrática: (i) o ideal de uma democracia deliberativa, voltada para a criação de consensos informados, não-coagidos e abertos à revisão (e. g. Nadia Urbinati, Jurgen Habermas, Joshua Cohen), (ii) a retomada do elemento republicano popular como forma de contestação das econômicas e midiáticas (e. g. Neil McCormick) e (iii) o desenvolvimento de mecanismos de participação direta, tal como plebiscitos e referendos (e. g. Philippe Schmitter). Cada uma dessas opções apresenta seus próprios problemas tais como, respectivamente, a dimensão utópica da deliberação racional, o problema de cooptação dos movimentos populares por elites adversárias e a falta de reflexividade e argumentação nas participações nos plebiscitos. Entretanto, caso a representação queira manter seu estatuto como o principal mecanismo de transformação política da sociedade novos modelos precisariam ser experimentados.

A principal contribuição do ensaio de Katznelson para o leitor brasileiro é dupla. De um lado, ele nos mostra que o alegado problema de representativa política é muito mais amplo e, em certo sentido, inerente ao próprio desenvolvimento da democracia liberal e, portanto, não está ligado ao fato de não termos as mesmas instituições que os EUA ou a Alemanha. De outro, estamos diante de uma contribuição otimista. Ainda que os resultados sejam incertos e a tarefa pela frente seja árdua, não precisamos nos ater ao fatalismo de que as instituições representativas não funcionam ou que estejam fadadas ao fracasso. Possibilidades teóricas estão sendo debatidas (como a lista de autores assim indica) e diferentes experiências estão sendo tentadas (o autor cita, por exemplo, as formas de orçamento participativo) enquanto lemos esse post.

Deixemos então o fatalismo para os fascistas.


Agradeço a Lucas Tozo e a Pedro Ribeiro pela discussão


Leituras sugeridas:

- Katznelson: "Anxieties of Democracy" (BR Forum)
O debate conta também com a participação de outros pesquisadores e pesquisadoras do tema, como Nadia UrbinatiMelissa Williams, o já mencionado Martin O'Neill, Hélène Landemore, dentre outros.

- Urbinati: "Democracy Desfigured" (Entrevista)
Entrevista sobre o último livro de Urbinati

- Denilson Werle & Rurion Melo (org.): "Democracia Deliberativa" 
Reunião de artigos e capítulos de livro traduzidos sobre democracia e representação do ponto de vista da filosofia política, incluindo trabalhos de Habermas, Rawls, e J. Cohen.