Por Lucas Petroni
Dois fatos são amplamente conhecidos sobre a Rede Globo, empresa de comunicação de propriedade da família Marinho.
Dois fatos são amplamente conhecidos sobre a Rede Globo, empresa de comunicação de propriedade da família Marinho.
O primeiro, mais técnico e menos passional, é o de que o Grupo Globo - organização privada que controla a empresa - está entre os maiores conglomerados de mídia do mundo. Na verdade, de acordo com o Top Thirty World Media Owners (2015), relatório que mede o tamanho de grupos de comunicação a partir de gastos com receita publicitária, o conglomerado brasileiro ocuparia a 17a. colocação no mercado de informação, ficando atrás em termos de concentração de propriedade de mídia de gigantes como o Google e a 21st Century Fox. Mas, à frente de outras tantas companhias importantes como Yahoo e Microsoft. A Rede Globo é amplamente reconhecida como o principal canal de televisão dos brasileiros. Estima-se que sozinha controla algo em torno de 70% do mercado interno encontrando-se bem à frente das 5 outras empresas com alcance de cobertura nacional.
O outro fato bem conhecido por todos os brasileiros é o papel dúbio da emissora na nossa democracia. Entre as causas políticas do Grupo Globo encontram-se o apoio público ao golpe jurídico-militar de 1964, a oposição à campanha pela redemocratização do país e o apoio incondicional a Fernando Collor, então candidato a presidência em 1989 - o que inclui um dos episódios de manipulação televisiva mais tristes da nossa história contemporânea. Mais recentemente a emissora se envolveu em crimes de sonegação financeira, participou de esquema de corrupção esportiva internacional, censurou o documentário inglês sobre a própria organização (intitulado Muito Além do Cidadão Kane), além de ser alvo de diversas acusações de tratamento pejorativo às mulheres e minorias sociais (uma lista mais detalhada da atuação política da família Marinho pode ser encontrada aqui).
Nessa lista de problemas, vale ressaltar os laços da família Marinho com os governos militares durante os mais de 20 anos de autoritarismo no Brasil. Os militares autorizaram, por exemplo, que a família Marinho pudesse utilizar 5 milhões de dólares do grupo norte-americano Time-Warner para fundar sua emissora de TV, o que havia sido considerado inconstitucional pelo congresso à época. A ajuda legal e financeira da ditadura jurídico-militar em troca de apoio midiático ao regime, sobretudo no interior do país, foi decisivo para que o Grupo Globo conseguisse uma fatia quase monopolista da imprensa brasileira.
A mais recente causa política do grupo tem sido a tentativa de condenar (ou pelo menos humilhar publicamente, uma vez que a devida condução do processo legal no caso esteja sob forte contestação) um ex-presidente brasileiro - o mesmo que havia sofrido aquela edição desfavorável em 1989. Em episódio raro, com traços de tragédia, o ex-presidente Lula expôs alguns dos termos dessa disputa em uma declaração ao vivo na semana passada. O apoio da família Marinho aos movimentos que defendem a derrubada, constitucional ou não, do governo Dilma é tão forte que uma das principais jornalistas da Globo News referiu-se a Dilma como "ex-presidente" duas vezes em uma mesma transmissão.
Todos os fatos apresentados até aqui são amplamente conhecidos. Contudo, existe uma diferença importante entre conhecer um fato e debatê-lo. Nenhuma dessas informações foi realmente debatida pela mídia no Brasil. Obviamente não devemos esperar que a própria empresa ponha em pauta a discussão de suas desventuras financeiras ao olhar atento do espectador-contribuinte. O ponto é que não há discussão sobre o próprio papel da mídia na política brasileira por nenhuma meio de comunicação - seja ele "global" ou não. Uma possível explicação é a de que não há pluralismo de mídia no Brasil. Os mesmos defensores do livre-mercado no mercado de bens e desmonte da estrutura de justiça social no Brasil não defendem com o mesmo ardor a livre circulação de informação.
("Globo Golpista: Quer Incendiar o País", durante transmissão ao vivo do Jornal da Globo)
A questão da reforma estrutural da imprensa no Brasil pode ser abordada de muitas formas. Simplesmente abolir a Rede Globo certamente não seria a melhor forma de respondermos ao problema. Deixe-mos de lado por um momento as questões legais da emissora e as acusações de corrupção financeira, o que, vale lembrar, caracterizam crime. Ou mesmo sua posição conservadora e, em alguns casos, legalmente controversa sobre a exposição do corpo feminino e representações estereotipadas de minorias, que variam entre o preconceito e o simples mau gosto. Foquemos no problema da politização de sua comunicação.
Não é razoável esperarmos que a mídia não tenham seus próprios interesses políticos ou que não queira participar da disputa democrática. Não apenas é impossível conceber isso como talvez fosse indesejável. Para que um fato se torne conhecimento é preciso que ele seja deliberado, seja essa deliberação realizada por uma só pessoa seja por uma comunidade epistêmica. Uma condição necessária da deliberação é o contraste de diferentes argumentos e perspectivas sobre um mesmo problema. Diversidade não implica necessariamente qualidade, ou equidade de pontos de vista. Mas certamente sem diversidade não há conhecimento, só opinião.
O verdadeiro problema da reestruturação da mídia no Brasil - lembrando as duas ressalvas mencionadas acima - é a concentração da comunicação, não necessariamente o seu conteúdo, por mais repugnante que ele possa parecer aos olhos de quem venha a discordar dele. A luta pela democratização da comunicação no Brasil é uma luta contra o monopólio da informação, e seu objetivo é o pluralismo estrutural.
Uma ressalva importante: não se está afirmando que o conglomerado simplesmente invente os fatos publicados, que criminosamente ela apresente informações falsas - ainda que a história tenha nos mostrado que eles o fizeram impunimente ao longo das últimas décadas. Mecanismos de responsabilização de conduta profissional mal-intencionada é uma função importante das instituições legais. Pluralismo estrutural não é uma resposta para a fraude ou para a invenção. É uma resposta possível para o silenciamento da diversidade.
Voltemos para os últimos acontecimentos. Todas/os nós, enquanto cidadãs/ãos de uma democracia, ganhamos quando contratos milionários de construtoras ou doações de campanha ganham transparência. Ao expor a corrupção empresarial e política a mídia ajuda a tornar o poder político mais responsivo à sociedade. O problema é que fatos possuem diferentes interpretações, e um mesmo evento admite diferentes explicações muitas delas conflitantes. Sobretudo quando estamos acompanhado os acontecimentos em tempo real e de modo extremamente fragmentado. Por isso, o que será matéria de notícia, a seleção dos fatos, ou como eles são apresentados, quem os comentará no jornal das 8, etc., importam. Nem todas as pautas do país precisam ser construídas tendo como perspectiva privilegiada os anseios da população branca de São Paulo e do Rio de Janeiro ou a partir dos padrões econômicos das agências de investimento preocupadas com o capital estrangeiro. A política econômica dos comentaristas da Globo é tão questionável, de um ponto de vista científico, quanto os princípios que fundamentam as decisões do governo.
A atual falta de pluralismo comunicativo entre nós caracteriza uma forma grave de injustiça contra outros pontos de vista, um tipo de opressão que a filósofa inglesa Miranda Fliker denominou de injustiça epistêmica. Ainda que a teoria de Fricker seja pensada especialmente para casos de violência de gênero e preconceito racial, a noção de injustiça epistêmica pode ser facilmente estendida a história do debate político na nossa democracia. A exclusão sistemática de pontos de vista regionais, de classe e de perspectivas teóricas, tais como o papel dos juros no déficit público ou a interpretação do devido processo legal, representam uma forma grave de injustiça na construção coletiva do conhecimento.
É interessante notar, nesse sentido, como tanto o ex-presidente Lula quanto manifestações contra a atuação política da Globo (como o manifestante durante o Jornal da Globo) precisaram fazer isso por meio dos canais controlados pela emissora. O custo da informação em um país continental e extremamente pluralista em termos políticos, culturais e identitários é altíssimo. Sua apropriação monopolista é um limite estrutural ao debate democrático. Um outro exemplo pode nos ajudar aqui. Afirma-se que precisemos de uma nova narrativa política nacional. Dado que apenas três ou quatro meios de comunicação possuem os meios para comunicá-lo ao longo do país, sendo o principal deles é a própria Globo, é difícil imaginar como esse pacto, mais uma vez, não terá que conceder aos ideais políticos da família Marinho.
Por fim, notemos que não podemos utilizar o argumento segundo a qual a emissora conquistou sua posição privilegiada no mercado de informação apenas devido às suas qualidades ("eles merecem", alguém mais desavisado poderia afirmar). Como vimos acima, esse monopólio foi obtido por meio de um governo ilegítimo que usou da força para obter o direito de governar. Nesse sentido, podemos afirmar que, ao lado da militarização da polícia, a concentração da mídia são os dois legados mais duradouros do autoritarismo entre nós - fato que explica, entre outras coisas, o destaque negativo do país nos rankings de concentração de mídia e violação de direitos humanos.
As causas perdidas da Rede Globo já fazem parte da nossa história política. Aprendemos seus equívocos em sala de aula tal como as próximas gerações certamente apreenderão aqueles que ela está próxima de cometer ao apoiar a deposição de um governo democraticamente eleito. Nem todo dinheiro do mundo suprime o curso da história. O que precisamos saber é se vamos poder começar a discutir publicamente esses erros ou não. Se vamos ter uma mídia à altura das instituições democráticas do país ou vamos continuar vivendo no mundo fantástico da família Marinho. O monopólio comunicativo da Globo torna a própria imprensa no Brasil uma espécie de causa perdida.