Os moradores da Grande São Paulo conhecem muito bem a sensação: existem duas Polícias Militares em São Paulo. Uma delas atua na periferia das cidades da região metropolitana. Ela é uma das corporações mais agressivas e violentas do mundo, conta com índices de confronto e homicídio próximos (se não superiores) à regiões de conflito armado ao redor do mundo e um triste histórico de violação de direitos humanos. A outra, que atua principalmente na zona oeste e em alguns enclaves da classe média-alta da região sul da capital, é extremamente cordial e eficiente. Procura cumprir os procedimentos legais e assume que os cidadãos são, em princípio, inocentes. Uma rápida consulta por bairros nos gráficos da violência organizado pelo Estadão ilustram em estatísticas essa dupla realidade.
Entretanto, em meio à crise social das últimas semanas a sensação de que a PM funciona como uma força de segurança seletiva para uma parte da cidade contra a outra ficou ainda mais explícita. Se por um lado o governo de São Paulo optou por reprimir com extremo rigor o movimento dos alunos e alunas secundaristas da rede pública estadual e os movimentos sociais pela mobilidade urbana, por outro, as forças de segurança do estado foram usadas para ajudar a organizar às pressas manifestações contrárias ao governo federal, bloqueando a principal avenida da cidade antes mesmo dos primeiros manifestantes chegarem. O recente episódio da PUC-SP ilustra o desconforto da seletividade: diante de uma possível escalada de violência entre alguns manifestantes contra o governo e os estudantes da PUC, a PM atuou com o seu tradicional rigor e disciplina militar. Contudo, manifestantes (e mesmo cidadãos desinformados) que utilizaram as cores vermelho durante os protestos da extrema-direita não contaram com a mesma sorte.
(Manifestante anti-Dilma confraterniza com o Batalhão de Choque durante ato na Av. Paulista)
Em uma corajosa entrevista ao El País, Conrado Hübner Mendes (USP) denuncia os problemas da seletividade da segurança em São Paulo um problema que, além da institucionalização do violência contra os cidadãos da periferia, começa a ganhar também contornos partidários à medida que a divisão política do Brasil se agrava. O próprio sistema jurídico estaria começando a apresentar sinais de partidarização - como a atrapalhada tentativa de criminalização de um ex-presidente da república pelo Ministério Público de São Paulo. Segundo Mendes, contudo, o problema é muito mais complicado do que apenas o uso seletivo da força. A institucionalização de demandas de classe no sistema policial e penitenciária é uma realidade antiga entre nós.
[a] polícia tornou-se marionete dos políticos mais primitivos da democracia brasileira. É instrumento para realização de objetivos políticos escusos: pratica a repressão violenta de demandas populares, dissemina o medo, oferece casos numerosos para os programas sensacionalistas que celebram qualquer coisa que a polícia faça. Policiais são mal remunerados, trabalham em situação precária e de alto risco, mas continuam sendo agentes disciplinados de uma política que só os prejudica. São reféns da própria miopia [...]
O risco, claro, é que agentes da lei se partidarizem, que passem a ser percebidos como defensores de interesses de certos grupos e não de outros, que passem a ser vistos por muitos como adversários e não como agentes imparciais preocupados em exercer sua função no estado de direito. Perdem a legitimidade e o respeito, moedas caras para que tenham boa relação com a sociedade. É o mesmo risco que correm Judiciário e Ministério Público quando desprezam regras formais e informais para o bom exercício de sua função. Risco talvez já não seja a palavra mais adequada, a partidarização da polícia e de parcela do sistema de justiça é uma realidade com a qual já estamos lidando. Esse alarme está tocando faz tempo e uma situação aguda como a presente está nos permitindo aprender a duras penas o significado não trivial desse fenômeno.