sexta-feira, 29 de julho de 2016

Princípios liberais, valores conservadores (parte I) - O caso da Escola sem Partido

Por Lucas Petroni

Certos princípios que, a primeira vista, todos parecemos aceitar são, com frequência, utilizados para justificar exatamente aquilo que eles originalmente deveriam rejeitar. Essa é a característica central da propaganda ideológica: o uso de um ideal a primeira vista valioso contra os próprios valores que o justificariam em primeiro lugar.

Alguns grupos políticos conservadores tem utilizado princípios liberais como uma forma de propaganda ideológica na esfera pública brasileira. Dois desses princípios tem sido empregado com certo sucesso: o princípio de neutralidade do estado, defendido pelos organizadores da Escola sem Partido, e o princípio de liberdade de expressão, tal como tem sido utilizado pela grande imprensa brasileira. Em ambos os casos, princípios e valores liberais estão sendo instrumentalizados para causas tradicionalistas ou politicamente conservadoras. Ou seja, a despeito daquilo que essas duas causas parecem ser, elas são apenas uma tentativa de defender o status quo injusto e, ironicamente, anti-liberal da sociedade brasileira.

Formas de propaganda ideológica como essas são nocivas não apenas porque distorcem o significado histórico de valores importantes, mas também na medida em que confundem os nossos julgamentos políticos. O mal uso das ideias liberais pode, com isso, comprometer debates mais sério sobre a qualidade da educação e o tipo de imprensa que queremos para a nossa sociedade.

Neste primeiro post gostaria de analisar o princípio liberal de neutralidade, pelo menos tal como esse princípio parece sustentar algumas das propostas da Escola sem Partido. 

Uma nota preliminar pode ser útil antes de prosseguirmos. Princípios liberais, como o da neutralidade do estado e da liberdade de expressão, estão longe de serem incontestáveis. Na verdade, boa parte da teoria política contemporânea pode ser entendida como uma tentativa de analisar e explorar os limites e contradições dos valores liberais clássicos. Propostas feministas e multiculturalistas, para darmos dois exemplos importantes, ressaltam a facilidade com que a neutralidade estatal tende a excluir perspectivas minoritárias dos debates públicos, enquanto concepções de inspiração socialista chamam a atenção para a dificuldade que o pensamento liberal possui em combater formas históricas de opressão política e exploração econômica. 

Ou seja, meu objetivo aqui é extremamente restrito: acredito que o uso conservador de princípios liberais não se sustenta dentro do próprio discurso liberal, não obstante as muitas objeções externas que podemos fazer a ele. Entretanto, acredito que mesmo quem tende a rejeitar esses princípios podem ganhar com um debate público mais sofisticado respeito de sua natureza e suas implicações. Um princípio básico da teoria política diz que só podemos rejeitar uma teoria quando vista a partir de sua melhor formulação. 

O que é o princípio de neutralidade do estado? 

Comecemos com uma definição preliminar. O princípio de neutralidade ou, de imparcialidade (como veremos abaixo) pode ser formulado de muitas maneiras mas, em geral, qualquer de suas formulações conta com pelo menos dois "reconhecimentos" fundamentais: (i) o reconhecimento do pluralismo moral e (ii) o reconhecimento do desentendimento razoável.

Em primeiro lugar, reconhecemos que as sociedades modernas são caracterizadas por uma ampla variedade de crenças e estilos de vida que, muitas vezes, não são apenas diferentes, mas também patentemente contraditórios entre si. O conflito entre formas de vida religiosas e laicas é um exemplo típico desse problema. Acreditar e devotar a vida a formas comunais de religião contradiz formas de vida laica na qual outros valores possuem prioridade, como o engajamento político ou uma vida reclusa dedicada aos prazeres da arte. O primeiro reconhecimento, portanto, afirma que existe uma pluralidade de concepções morais distintas disponíveis em uma mesma sociedade. 

Em segundo lugar, o princípio de neutralidade reconhece que mesmo pessoas plenamente razoáveis, isto é, pessoas motivadas por um desejo genuíno de tentar entender e respeitar as opiniões e valores alheios, podem discordar de modo profundo em relação à questões éticas crucias. Por exemplo, se acredito que uma vida dedicada a deus (qualquer deus) é intrinsicamente superior às outras formas possíveis de felicidade humana, então não posso aceitar que qualquer forma de vida é igualmente tão boa quanto outra, ainda que possa, de outro lado, aceitar uma convivência respeitosa com quem pensa diferente. O desentendimento razoável implica que mesmo pessoas esclarecidas e bem intencionadas não obterão um consenso sobre a melhor forma de organizar a sociedade e que, consequentemente, conflitos morais farão parte do cotidiano da vida política de uma sociedade. 

Tendo esses dois reconhecimentos em mente, o princípio liberal de neutralidade afirma que o estado, e seu aparato coercivo, como a lei e seus agentes, deve ser neutro entre as diferentes formas de vida presentes em uma sociedade. Isto é, o estado não deve nem endossar oficialmente, nem favorecer sistematicamente, uma forma de vida particular tendo como argumento sua alegada superioridade moral intrínseca. Isto é, que uma determinada concepção de bem é "verdadeira". No exemplo proposto, entre a vida religiosa e a vida secular, o princípio de neutralidade exige que o estado deve se manter neutro: daí a justificação para o estado secular. 

É importante notar que o princípio de neutralidade não rejeita a possibilidade de decisões políticas fundada em valores específicos ou mesmo o favorecimento de algumas formas de vida sobre outras (algo inevitável no jogo político democrático). O que ele diz é simplesmente que a razão para decidir conflitos morais não pode ser apenas a de que uma concepção moral particular é intrinsicamente melhor do que outras. Ou violar esse princípio o estado coloca em questão sua própria legitimidade moral. Essa era o caso, por exemplo, ao longo dos    anos nos quais o Brasil adotou o catolicismo como religião oficial do país. Uma rápida olhada na pequena quantidade de estados confessionais ao redor do mundo serve para ilustrar o sucesso do princípio de neutralidade. 

O princípio tem muitas aplicações e vai muito além da mera laicidade das leis. Uma dessas aplicações diz respeito, justamente, ao conteúdo do ensino oferecido às novas gerações (sobretudo do ensino público) e o tipo de formação que podemos legitimamente esperar de futuros cidadãs e cidadãos em uma sociedade plural e democrática. Tendo em vista o reconhecimento do pluralismo moral, é perfeitamente natural compreender a educação como uma das "questões controversas" mais importantes em sociedades pluralistas.

Na verdade, é difícil imaginar alguém que de fato valorize seus pontos de vista pessoais e que não se preocupe seriamente com a possibilidade do uso dos meios coletivos de coerção como forma de opressão ideológica - eu certamente me revoltaria se o professor de literatura dos meus filhos ensinasse a poesia do presidente interino Michel Temer como exemplo de qualidade lírica.

A história recente do Brasil nos fornece um exemplo mais sério dos temores liberais: o ensino cívico durante a ditadura militar.




Imposta em 1969 pela ditadura jurídico-militar, a educação moral e cívica tinha como objetivo oficial preparar os cidadãos para o exercício de suas atribuições na vida adulta por meio de - cito - um "culto oficial à Pátria". Parte de suas diretrizes pedagógicas eram algo cômicas - ou melhor, digna da mentalidade autoritária dos militares - como a necessidade de decorar, mas não necessariamente entender, as estrofes parnasianas do hino nacional. O lado mais sinistro da educação moral e cívica no entanto residia no controle autocrático do governo tanto sobre os conteúdos ministrados em sala de aula como na indicação de professores e reitores ao longo da ditadura (o decreto-lei original pode ser lido aqui).

O que nos interessa a respeito da educação moral e cívica não é tanto a dimensão institucional do projeto, mas sua dimensão ideológica. A instituição de uma educação moral compulsória era a tentativa de promover os valores que as elites militares e empresariais do país entendiam como intrinsicamente superiores a todos os outros. Esse ideal era constituído por de três valores básicos: deus, pátria e "ação permanente em benefício do Brasil" (ver aqui).

Na prática, a educação cívica procurava enquadrar comportamentos e mentalidades dissidentes em um padrão normativo compatível com as aspirações do governo militar e, principalmente, com a doutrina nacional de segurança responsável - o que, dentre outras coisas, significa encontrar e erradicar comportamentos ditos por "subversivo" entre os jovens. Qualquer forma de identidade "desviante", tal como a não crer em deus (ou crer em um deus diferente daquele dos militares) ou formas de conduta imorais, como fugir do modelo de virilidade masculina ou submissão feminina, deveriam ser severamente constrangido tanto pela lei como pelo educação.

A educação moral e cívica é um caso extremo de violação do princípio de neutralidade (o regime militar como um todo também o era, mas deixemos essa questão para outro post). Ela ilustra bem o chamei anteriormente de opressão pública: um grupo detentor dos meios da coerção (no caso, ilegitimamente) utiliza a força para impor um conjunto particular e extremante controverso de valores na população, desrespeitando a nossa capacidade de conceber e revisar as crenças e valores importantes que endossamos ao longo de nossas vidas.

O princípio de neutralidade, portanto, é uma forma de justificar uma convicção amplamente partilhada em sociedade democrática, a saber, um ambiente escolar pluralista e sem autoritarismo.

Infelizmente não é esse o ambiente escolar proposto pelo grupo de advogados organizados ao redor do Movimento Escola sem Partido. A despeito da similaridade de vocabulário com valores liberais, a escola sem partido não defende nem o pluralismo nem a recusa do autoritarismo, a despeito de justificar seus argumentos por meio do princípio de neutralidade (o principal objetivo segundo seu programa seria o de acabar com a "doutrinação nas escolas").

Gostemos ou não do princípio liberal de neutralidade e, como eu disse anteriormente, existem objeções importantes a ele, a Escola sem Partido não é compatível o com o ideal de neutralidade. Arrisco a dizer que, na verdade, as ideias defendidas pelo movimento são melhores descritas como uma concepção conservadora sobre o papel da educação em uma sociedade democrática em alguns casos mais próxima da educação cívica dos militares do que de qualquer forma de liberalismo conhecido.

É difícil explicar por que o movimento tem recebido tanta atenção tanto da na mídia como por parte da classe política. Entre seus apoiadores estão o atual ministro interino da educação do DEM, famoso por ter indicado um acusado de duplo homicídio para presidir a comissão do congresso contra o crime organizado, empresários paulistas ligados ao PMDB e um ex-ator de filmes pornográficos. Frases de mau gosto como "a pedofilia vai a escola" e "cartilha para zumbis", uma submissão incoerente às formulas constitucionais norte-americanas e um preconceito evidente contra estudantes de escolas públicas (um dos apoiadores do movimento chegou a descrever o ensino púbico como um "centro de recrutamento de traficantes") caracterizam boa parte das "discussões" promovidas pelos seus organizadores. Mesmo assim, estima-se que em nada menos do que menos nove estados já existem projetos de lei influenciados pela Escola sem Partido.

Como explicar essa popularidade? Meu palpite é que a principal força da Escola sem Partido está na defesa do princípio de neutralidade do estado aplicado à educação. Ou melhor, do uso dessa linguagem para os objetivos de seus criadores.

Segundo as carta de intenções do grupo,

"[n]uma sociedade livre, as escolas deveriam funcionar como centros de produção e difusão do conhecimento, abertos às mais diversas perspectivas de investigação e capazes, por isso, de refletir, com neutralidade e equilíbrio, os infinitos matizes da realidade. No Brasil, entretanto, a despeito da mais ampla liberdade, boa parte das escolas, tanto públicas, como particulares, lamentavelmente já não cumpre esse papel. Vítimas do assédio de grupos e correntes políticas e ideológicas com pretensões claramente hegemônicas, essas escolas se transformaram em meras caixas de ressonância das doutrinas e das agendas desses grupos e dessas correntes. A imensa maioria dos educadores e das autoridades, quando não promove ou apoia a doutrinação, ignora culposamente o problema ou se recusa a admiti-lo, por cumplicidade, conveniência ou covardia". 
Tal como o interpreto, o objetivo do grupo é impedir a doutrinação de estudantes ("doutrinação política e ideológica dos alunos [e alunas?] pelos professores [e professoras?]") e combater a "usurpação dos direitos dos pais [e mães?] na educação moral e religiosa dos seus filhos [e filhas?]" (ver aqui). Isso seria mais evidente especialmente em relação às questões morais controversas como religião política e sexualidade. A luta contra a doutrinação seria alcançada, segundo a Escola sem Partido, por meio de uma aplicação estrita da neutralidade: caberia ao professor ou professora ser "neutro" ao ter de lidar com essas questões, evitando abordar qualquer questão religiosa, política ou sexual em sala de aula e, consequentemente, evitando a exposição de seus alunos a alunas a uma visão particular de moralidade pessoal à qual as famílias dos estudantes recusariam.

Se esse é o caso, então o grande problema por trás da concepção da Escola sem Partido é uma confusão grave entre dois sentidos de neutralidade. 

Seguindo a formulação corrente na teoria política podemos chamar, respectivamente, esses dois sentidos de neutralidade (i) de neutralidade de resultados ou efeitos e (ii) neutralidade de justificação. Em linhas gerais, a neutralidade de efeitos demanda que o objetivo de uma decisão legítima seja a criação de um padrão neutro entre as diferentes perspectivas em um dado grupo. A neutralidade é um objetivo a ser realizado por meio do agente do estado (no caso em questão, pelo professor ou professora). A neutralidade de justificação, por outro lado, impõe restrições ao modo como as decisões do agente do estado são tomadas, sendo o resultado dessas decisões irrelevantes do ponto de vista do princípio.

A única interpretação possível de neutralidade presente no princípio liberal é a (ii), a neutralidade de justificação. Isso por dois motivos mais ou menos óbvios uma vez que refletimos sobre seu funcionamento. Em primeiro lugar, porque a neutralidade de resultados é incoerente. Qualquer decisão, inclusive a decisão de não decidir, afeta o equilíbrio de concepções morais presentes em um determinado grupo. Não abordar problemas de gênero, nesse sentido, seria tão parcial do ponto de vista de um casal de pais homossexuais quanto seria, ao contrário, abordar a questão para pais e mães ultra-religiosos. 

Contudo, ainda que fosse coerente, provavelmente a neutralidade de resultado seria indesejável de um ponto de vista liberal. A neutralidade de resultados exigiria ao final uma forma de imposição de crença ou valores particulares, a neutralidade, sobre os cidadãos e cidadãs. Lembremos que o objetivo liberal é reconhecer e respeitar a diversidade de identidades e valores presentes em uma sociedade e que, muitas vezes, essas identidades e valores são contraditórios entre si. Isso significa que não há solução possível para os desentendimentos advindos dessa diversidade. A solução, do ponto de vista liberal, é não endossar uma doutrina particular nem que essa doutrina seja a própria neutralidade.  A própria ideia de impor um padrão homogêneo de identidade por meio do aparato coercitivo do estado é frontalmente contrário aos valores liberais. 

É justamente a confusão entre os dois sentidos de neutralidade que nos leva a falar em um princípio de imparcialidade, ou invés de neutralidade. Uma decisão é imparcial se, mas apenas se, ela puder ser justificada sem apelar para as alegadas superioridades intrínsecas de concepções morais particulares (inclusive da neutralidade). 

Alguns exemplos de aplicação do princípio pode nos ajudar a entender melhor essa diferença. Não fica muito claro se o problema principal para a Escola sem Partido é com o conteúdo pedagógico oferecido - isto é, aquilo que os professores ensinam - ou diz respeito ao comportamento dos professores e professoras - isto é, como os profissionais de educação abordam esses conteúdos em sala de aula. Tendo em vista a falta de precisão sobre o assunto vou considerar ambos os cenários como exemplos dos dois sentidos de neutralidade.

Primeiro exemplo: comportamento

Uma aluna evangélica é vítima de comentários e ameaças intolerantes a respeito de sua religião e o modo de vida de sua família. Um grupo de alunos católicos (majoritário) utiliza a religião da aluna como justificada para descriminá-la em sala de aula e ofendê-la durante o convívio com os demais alunos da escola. Devido a gravidade da situação, cabe ao professor tomar uma atitude. Qual neutralidade seria apropriada nesse caso?

No primeiro sentido de neutralidade, cabe ao professor obter um resultado, a neutralidade de pontos de vista. A única forma possível de obter isso sem promover suas concepções pessoais de religião é suprimindo qualquer menção à religião na sala de aula. A partir daquele momento está instituído, digamos, uma "política de silêncio" em relação ao assunto: nenhuma forma de religião (ou ausência de religião) poderá ser abordada ou discutida a fim de garantir a neutralidade. Mas percebamos que o silencio também é parcial: ele é omisso em relação à intolerância sofrida pela aluna.

A neutralidade de justificação oferece outra abordagem, radicalmente diferente. Uma vez que ninguém deveria ser tratado com inferioridade em relação a sua forma de vida ou valores pessoais, cabe ao professor abordar a questão de um ponto de vista imparcial. A melhor forma de fazer isso é apresentando aos alunos diferentes formas de religião as quais a classe, e provavelmente, a maioria católica, pode não estar plenamente familiarizadas, e mostrando a necessidade, mas também a dificuldade, de estabelecer formas de respeito em meio a diversidade. Notemos que não há nada "parcial" nessa proposta: nenhuma forma de vida religiosa foi promovida e, diferentemente do modelo anterior, obteve-se um resultado valioso: o tratamento da intolerância religiosa entre futuros cidadãos e cidadãs. 

Segundo exemplo: conteúdo.  

Uma professora de biologia aborda a teoria da evolução das espécies. Ao introduzir a revolução darwiniana, um grupo de mães religiosas utiliza um dos modelos de "notificação extrajudicial" fornecido pela Escola sem Partido para intimidar a professora tendo por argumento que seus filhos disseram em um encontro de família que "não foi deus quem criou os seres humanos".

A neutralidade de resultados nos abrigaria, mais uma vez, a silenciar a professora. Uma vez que se trata de um conteúdo didático importante o qual os estudantes não podem prescindir em suas vidas, dois cenários são propostos: decide-se que, ou bem as alunas religiosas não participem mais das aulas de biologia, ou que a professora de biologia ensine a criação bíblica com o mesmo peso que a teoria da evolução. Mas notemos que as duas escolha são claramente parciais em favor da concepção religiosa dos estudantes afetados. Primeiro por que isenta certos estudantes do conteúdo pedagógico (o que, na verdade, prejudica as alunas) e segundo porque torna uma religião particular uma forma de conhecimento científico.

Já a neutralidade de justificação demanda um outro tratamento. Cabe a professora de biologia apresentar a teoria da evolução da melhor forma possível, isto é, enquanto uma teoria científica amplamente estabelecida, abordando suas implicações históricas para outras teorias rivais à época (como a da criação bíblica) que acabaram por ser refutadas por Darwin como uma explicação científica para o surgimento das espécies. Contudo, o princípio também exige da professora que aponte as diferenças entre ciência e outras formas de discurso (como a religião), que contam com regras de inferências e padrões de comprovação próprios. O darwinismo não tornou a religião proibida nem nos obriga a sermos ateus. Essa é uma verdade na sociedade e é uma verdade na sala de aula. Mais uma vez, a neutralidade de justificação demanda uma abordagem contrária à política do silêncio  e tem como consequência positiva a tentativa de estabelecer formas de convívio respeitoso em meio a diversidade. 

Podemos ver, portanto, como funciona o uso distorcido do princípio de neutralidade pela Escola sem Partido e, particularmente, como esse uso se encaixa na definição de propaganda oferecida no começo do texto. O objetivo é impor um silenciamento ao mesmo tempo extremante artificial para um ambiente de aprendizado, e autoritário do ponto de vista da diversidade, na tentativa (inócua na minha opinião) de proteger concepções morais particulares do convívio com outras formas de vida encontradas na sociedade, convívio esse indiscutível do ponto de vista dos valores liberais. 

Na verdade, se a minha interpretação dos objetivos da Escola sem Partido faz sentido, quem estaria ameaçando "o direito de educação moral" tão valorizado pelos criadores do movimento é a própria concepção de uma sociedade pluralista. O fato de que o fortalecimento dessas ideias coincide com o surgimento, sem precedentes em nossa história recente do país, de novas identidades religiosas e sexuais, e com os efeitos da mobilidade social e, consequentemente, da introdução de diferentes perspectivas sociais em ambientes escolares, até pouco tempo relativamente segregados, nos faz pensar que o verdadeiro objetivo da Escola sem Partido é apenas o de preservar modos de vida privilegiados socialmente. Valores até então indiscutíveis e, portanto, facilmente naturalizados pelas práticas sociais, nas instituições de ensino no país. 

Qualquer forma de silenciamento é anti-liberal. Seja ele em nome da neutralidade, da segurança nacional ou do "culto à Pátria". Invariavelmente, políticas de silenciamento acabam por funcionar no longo prazo como uma forma de manutenção do status quo - no nosso caso, um status quo injusto e profundamente anit-liberal em relação à minorias culturais. Ao utilizar uma versão distorcida de neutralidade, o movimento Escola sem Partido representa, infelizmente, apenas mais uma metamorfose da antiga causa conservadora: utilizar a lei e a coerção pública para reprimir formas de vida incompatíveis com o projeto particular de sociedade concebido pela, e defendido para, a elite cultural brasileira. Projeto esse que, tendo o princípio de neutralidade do nosso lado, só podemos rejeitar.


Referências sugeridas:

Reunião de artigos importantes sobre tolerância e imparcialidade organizado por Denilson Werle como trabalhos de Thomas Scanlon, Bernard Williams, Rainer Forst e Álvaro de Vita. 

O filósofo Charles Larmore foi um dos principais responsáveis por estabelecer os dois sentidos de neutralidade.

Reunião de artigos sobre o princípio de neutralidade tendo como objetivo analisar alguns de seus limites e propor novas aplicações.

Uma discussão com a antropóloga Paula Montero, o cientista político Cícero Araújo e Lucas Petroni - este que vos fala - sobre os diferentes significados do princípio de tolerância na história moderna.