quinta-feira, 19 de maio de 2016

Livro: O legado de Ronald Dworkin

Saiu pela Oxford Press uma coletânea de artigos dedicados ao legado de Ronald Dworkin: The Legacy of Ronald Dworkin. A maior parte das contribuições, como tem sido recorrente no debate atual da filosofia do direito, centra sua atenção na última formulação de suas ideias, publicada em Justice for Hedgehogs de 2013 - fato tende a agradar realistas em relação à valores morais. A teoria da unidade dos valores desenvolvidas por Dworkin nessa obra o objeto do artigo do neopositivista Joseph Raz, talvez seja uma das grandes reformulações realistas (sobre valores morais) no debate contemporâneo e, enquanto tal, encontra-se em clara oposição a outras formulações liberais tal como, por exemplo, a de John Rawls. Parte dos capítulos do livro já circulavam em versões preliminares (agradeço ao blog Political Theory pelos links)

Em 2014, o grupo de teoria política da USP organizou um simpósio sobre as diferentes contribuições de Dworkin para a teoria política, filosofia do direito e metaética. Alguns dos working papers podem ser encontrados no site do evento. O evento foi uma resposta à presença constante das teorias de Dworkin (gostemos ou não delas) em nossos departamentos de filosofia e teoria política.









This book assembles leading legal, political, and moral philosophers to examine the legacy of the work of Ronald Dworkin. They provide the most comprehensive critical treatment of Dworkin's accomplishments focusing on his work in all branches of philosophy, including his theory of value, political philosophy, philosophy of international law, and legal philosophy. 

The book's organizing principle and theme reflect Dworkin's self-conception as a builder of a unified theory of value, and the broad outlines of his system can be found throughout the book. The first section addresses the most abstract and general aspect of Dworkin's work—the unity of value thesis. The second section explores Dworkin's contributions to political philosophy, and discusses a number of political concepts including authority, civil disobedience, the legitimacy of states and the international legal system, distributive justice, collective responsibility, and Dworkin's master value of dignity and the associated values of equal concern and respect. The third section addresses various aspects of Dworkin's general theory of law. The fourth and final section comprises accounts of the structure and defining values of discrete areas of law.


Part I: The Unity of Value

1. A Hedgehog's Unity of Value - Joseph Raz

Part II: Political Values: Legitimacy, Authority, and Collective Responsibility

2. Political Resistance for Hedgehogs - Candice Delmas
3. Ronald Dworkin, State Consent and Progressive Cosmopolitanism - Thomas Christiano
4. To Fill or Not To Fill Individual Responsibility Gaps? - François Tanguay-Renaud
5. Inheritance and Hypothetical Insurance - Daniel Halliday

Part III: General Jurisprudence: Contesting the Unity of Law and Value

6. Putting Law in Its Place - Lawrence G. Sager
7. Dworkin and Unjust Law - David Dyzenhaus
8. The Grounds of Law - Luís Duarte d'Almeida
9. Immodesty in Dworkin's 'Third' Theory - Kenneth Einar Himma
10. Imperialism and Importance in Dworkin's Jurisprudence - Michael Giudice
11. A Theory of Legal Obligation - Christopher Essert

Part IV: Value in Law

12. Originalism and Constructive Interpretation - David O. Brink
13. Was Dworkin an Originalist? - Larry Alexander
14. The Moral Reading of Constitutions - Connie S. Rosati
15. Authority, Intention and Interpretation - Aditi Bagchi
16. Concern and Respect in Procedural Law - Hamish Stewart

Medeiros: Meio século de desigualdades no Brasil

Marcelo Medeiros (UNB/IPEA) resenhou o livro Trajetórias da Desigualdade no Brasil (ver aqui um post sobre o livro) para o último número da Revista Brasileira de Ciências Sociais (a edição pode ser encontrada aqui). O livro Trajetórias foi o fruto de um ambicioso projeto de pesquisa que reuniu dezenas de pesquisadores e pesquisadoras com o objetivo de mapear os padrões de desigualdade ao longo dos últimos cinquenta anos no Brasil, utilizando principalmente informações dos sensos nacionais. 

A grande conclusão da obra é que podemos afirmar que nossa gritante desigualdade sócio-econômica diminui durante a democracia, ainda que, como era de se esperar, tenha afetado diferentemente grupos sociais e geográficos distintos. O grupo de pesquisa de Medeiros, por outro lado, tem apontado para uma outra conclusão. 

Em seus trabalhos utilizando os dados do imposto de renda, metodologia similar a adotado por Piketty e Saez e mais sensível às variações no topo da distribuição, o grupo de Medeiros tem procurado mostrar que a desigualdade no país entre o 1% mais rico e o resto da distribuição, encontra-se estagnada - no mínimo desde 2006. Como já dissemos aqui os dois projetos representam um dos debates atuais mais interessantes (e politicamente relevante) das ciências socais brasileiras.

Entretanto, essa divergência metodológica e de resultados não significa necessariamente que os estudos sejam contraditórios. É inegável que o país tenha passado por uma revolução no número de pessoas incluídas no mercado de trabalho e nos serviços públicos, além é claro da redução da pobreza extrema. Caso ambas as pesquisas estejam corretas, o que os trabalhos do grupo de Medeiros apontam é que o custo da revolução inclusiva pela qual passamos na última década poupou justamente (e injustamente eu acrescentaria) o topo da distribuição de renda brasileira. 

Na verdade, é exatamente por meio da diferença entre inclusão e distribuição que Medeiros escolhe analisar as diferentes contribuições do Trajetórias:

"[...] há uma ideia que costura os capítulos: nos últimos cinquenta anos a igualdade no Brasil foi obtida predominantemente por inclusão, não por redistribuição. Isso merece esclarecimentos. Há várias maneiras de se promover a igualdade por meio de políticas públicas, que podem ser agrupadas em duas grandes categorias, igualdade por inclusão e igualdade por redistribuição. A classificação encerra certo artificialismo, mas é útil para entender o eixo no qual giram as ideias do livro.

Políticas de igualdade por inclusão são aquelas que reconhecem certos avanços de uma parte da população, definindo-os como um marco absoluto, e buscam recuperar o atraso do restante das pessoas em relação a eles. São desenhadas para usar os recursos fiscais disponíveis de modo a dar aos que têm menos aquilo que se considera básico ou essencial e já foi garantido a outros. [...] Políticas de igualdade por redistribuição trabalham com marcos relativos. Identificam diferenças e se empenham em reduzi-las, retirando dos que têm mais para redistribuir aos que têm menos. São desenhadas para aumentar a disponibilidade de recursos fiscais para fins redistributivos e realocar vantagens dos que têm mais aos que têm menos. A igualdade por redistribuição é guiada por princípios de equidade"

E conclui:

"É recorrente no livro o fato de a história brasileira ser marcada por uma igualdade por inclusão. Ou seja, a redução da desigualdade por meio de políticas, quando ocorreu, foi determinada por medidas inclusivas em políticas que não foram desenhadas com propósitos explicitamente distributivos." 

A íntegra da resenha pode ser encontrada abaixo. (Por fim, vale notar que o número 90 da RBCS marca uma mudança importante na revista, fundada em 1986 e possivelmente para os demais periódicos abertos no país. A partir desta edição a revista não terá uma publicação física, será publica apenas em formato digital)




sábado, 14 de maio de 2016

As instituições funcionaram?

Concordamos que algo fora do normal aconteceu no país na última semana. Uma coalização de direita, apoiada pela mídia oligopolista, foi capaz de desestabilizar um governo de esquerda eleito e ameaça, agora, implementar uma agenda econômica e social rejeitada nas urnas por 54 milhões de brasileiros e brasileiras.

Como explicar esse evento? 

Como era de se esperar, hipóteses preliminares rivais começam a surgir. Para alguns, o golpe pode ser entendido como um conflito distributivo agravado pela crise fiscal, crise a qual a classe proprietária não parece disposta a pagar a sua parte (ver, por exemplo, aqui e aqui). Outras interpretações procuram contextualizar o golpe a partir de uma reorientação geopolítica pela qual a América do Sul e o sul global estariam passando, enfatizando o baixo crescimento dos países industriais centrais e a nova corrida por recursos naturais (ver aqui e aqui). Contudo, uma das correntes mais importantes da da ciência política brasileira, o neoinstitucionalismo, havia mantido certa cautela ao julgar os últimos acontecimentos. 

O silêncio foi quebrado com a publicação na Folha com o artigo da cientista política Argelina Figueiredo (IEPS/UERJ) entitulado O que deu errado? Não culpemos as instituições (o artigo pode ser lido abaixo). Não é exagero dizer que os trabalhos de Argelina de meados dos anos 90 sobre o funcionamento das instituições políticas no Brasil mudou não apenas a  nossa compreensão sobre o funcionamento das instituições como também foi uma das grandes responsáveis pela profissionalização da ciência política no no país - por vezes um jogo sem muito rigor analítico e jogado apenas pelas elites. 

Estudos institucionalistas como os conduzidos por Argelina tendem a levar em consideração o impacto das regras sobre o comportamento dos agentes políticos. Contudo, diferentemente do "antigo" institucionalismo, que procura deduzir consequências políticas a partir das macro-características de um regime político, o "novo"institucionalismo procura explicar, a partir de evidências empíricas, como o sistema de incentivos e penalidades criados pelas instituições afetam as múltiplas (e certamente conflitantes) estratégias dos agentes racionais em interação. Daí o recurso às análises econômicas sobre o comportamento dos agentes. 

A grande atração desse tipo de explicação é seu rigor conceitual e a capacidade de testar hipóteses sobre o sistema político, de uma forma que outros tipos de explicação, ou mesmo a famosa ciência política de bar, não conseguem. Tomemos um exemplo. Ao invés de deduzir que o número excessivo de partidos no Brasil é um problema, ou que presidencialismo com multipartidarismo é impossível (verdadeira fixação da ciência política norte-americana) neoinstitucionalistas procuram entender, primeiro, como as lideranças partidárias de fato atuam no congresso. O resultado pode ser um jogo de poder muito mais organizado, previsível e aberto às exigências populares do que imaginávamos.

Como afirma Argelina em seu artigo, os últimos vinte anos foram marcados justamente por esse tipo de estabilidade positiva.

Presidentes e presidentas foram eleitos, coalizões partidárias foram montadas, a política conseguiu controlar parcialmente os rumos da economia (para o bem ou para o mal) e o grau de participação da sociedade civil aumentou na formulação de políticas públicas. Como explicar, então, o governo Temer-Cunha?

"Nada a ver com as instituições", afirma Argelina. "O que temos hoje é um cabo de guerra entre um governo fragilizado pelo baixo desempenho de sua economia e pelo seu envolvimento em práticas corruptas e uma oposição desleal [...] que não aceita as regras do jogo". A origem do problema estaria, portanto, na composição (ou recomposição) de forças sociais envolvendo uma exímia (porém moralmente condenável) articulação conservadora parlamentar, mídia oligopolista e setores econômicos. Organizando seus interesses eles teriam consigo tornar impossível a governabilidade de Dilma. "O PT de de bandeja as bandeiras que a oposição adotou". 

É difícil discordar da narrativa apresentada por Argelina. Entretanto, não está claro que a narrativa seja perfeitamente compatível com uma tese neoinstitucionalista "forte". Fico aqui com dois problemas possíveis.

O primeiro diz respeito à interpretação do evento. Parece difícil sustentar as duas teses ao mesmo tempo: que (i) as principais instituições políticas estão funcionando perfeitamente e que (ii) não era para acontecer o que aconteceu. Talvez, então, não tenha ocorrido "golpe" e o que vimos foi apenas uma nova dinâmica de governabilidade no país: governos impopulares sem apoio na classe proprietária (econômica e mídia) estão sujeitos, graças às regras do jogo, a um recall parlamentar. Mas se esse for o caso, então não deveríamos partir do pressuposto de que existe algo "errado" a ser explicado.  

Em segundo lugar, e talvez mais complicado, não fica claro o motivo pelo qual a oposição não teria aceito as regras do jogo. Não seria justamente essa a finalidade das (boas) instituições políticas? Produzir os incentivos necessários para que os agentes queiram ganhar por meio delas e não a despeito delas? Da perspectiva neoinstitucionalista, a fragilidade do governo Dilma deveria ser entendida como uma forma de responsividade ao equilíbrio de forças políticas, principalmente em um cenário de recessão e eleição acirrada. Não podemos esperar que entregar os pontos ao adversário tenha sido uma estratégia racional. Logo, foi uma reação racional (e dramática) à estratégia da oposição. Logo, a oposição queria derrubar o governo desde o começo. Precisaríamos concluir que, a despeito da extrema permissividade em termos de concessões políticas, a oposição decidiu manobras a lei, comprar a rua, derrubar um governo eleito e por em risco o futuro da constituição, mesmo quando a eleição de 2018 já parecia garantida.

Antes de ser uma deficiência, vejo os problemas apontados como um incentivo ao debate especializado mais sofisticado sobre o nosso futuro enquanto cidadãos cidadãs e cientistas. O debate está aberto.


O que deu errado? Não culpemos as instituições


por Argelina Figueiredo

A pergunta feita a mim pela Folha não foi por acaso. Sempre argumentei que as instituições representativas e de governo brasileiras –ou seja, o presidencialismo, o federalismo, o sistema proporcional de lista aberta e o multipartidarismo– não constituíam obstáculos para o funcionamento e a mudança de políticas públicas em governos de coalizão.
A centralização decisória estabelecida na Constituição de 1988, com o aumento dos poderes legislativos do Executivo, e o fortalecimento dos líderes partidários inscritos no regimento da Câmara dos Deputados podem funcionar como instrumentos de barganha entre o governo e sua base parlamentar, resultando em apoio congressual sistemático e na capacidade do governo de aprovar suas propostas legislativas.
Por isso, sempre fui contra mudanças drásticas das nossas instituições representativas e de governo, pois elas garantem acesso das demandas da população ao centro decisório e mais equilíbrio entre os poderes.

Seus efeitos na representação e na participação dos cidadãos compensam eventuais conflitos que possam gerar na formulação de políticas públicas.


Se os constituintes decidiram maior centralização decisória para garantir mais eficácia e legitimidade ao governo democrático, não é preciso colocar uma camisa de força na representação, fomentar artificialmente o majoritarismo, promover a fusão dos poderes Legislativo e Executivo e muito menos negar representação nos governos subnacionais.
Os 20 anos de estabilidade econômica e política me parecem suficientes para demonstrar que essa combinação institucional não é inviável.
Durante esse período testemunhamos significativas mudanças na organização do Estado e da economia, na política e nas políticas públicas e, principalmente, na incorporação econômica e social das camadas mais baixas da população, além de comprovada melhoria de suas condições de vida.
Tudo isso foi conquistado com extensa e crescente participação social e eleitoral, ao contrário do que ocorre nas chamadas democracias consolidadas, ou mais antigas, como prefiro.
O Brasil que retornou plenamente à democracia em 1988 é muito melhor do que o país entregue pelos militares. E, apesar do longo caminho ainda a percorrer, certamente é mais justo.
O que deu errado, então? Nada a ver com as instituições, pelo menos não com as instituições em geral responsabilizadas pelas mazelas do sistema político brasileiro.
O que temos hoje é um cabo de guerra entre um governo fragilizado pelo baixo desempenho da economia e pelas denúncias de seu envolvimento em práticas corruptas e uma oposição desleal, ou seja, aquela que, segundo os manuais de ciência política, não aceita as regras do jogo. Vejamos.
A origem da crise está na vitória do PT nas eleições de 2014. O país enfrentava sérios problemas econômicos que ameaçavam os ganhos obtidos pela população por mais de uma década. A baixa popularidade do governo expressava o descontentamento com a situação. Além disso, denúncias de um esquema de corrupção na Petrobrás, liderado pelo partido do governo, alimentavam as manchetes jornalísticas diariamente.
Ao final do processo, o PSDB, principal partido de oposição, não aceitou sua quarta derrota na disputa presidencial. Solicitou a recontagem dos votos, demanda negada pela Justiça Eleitoral, fiadora até então inconteste da lisura das eleições brasileiras.
Nascia aí o objetivo que mais tarde se tornaria claro, o objetivo de não permitir que a presidenta concluísse seu mandato, custasse o que custasse.
A coalizão oposicionista se ampliou e ganhou as redes sociais e as ruas. A primeira grande manifestação contra o governo foi em março de 2015 e outras se seguiram durante o ano, além dos panelaços a qualquer ação pública da presidenta.
O apoio mais conspícuo entre as "classes produtoras" veio da Fiesp, Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, mas ela não foi exceção. A imprensa oligopolista foi conivente com vazamentos de delações em momentos estratégicos e não negou manchetes, além de reportagens enviesadas e análises favoráveis à oposição.
No front legislativo, o segundo mandato inicia com a disputa entre o PT e o PMDB pela presidência da Câmara e a vitória do candidato do PMDB, Eduardo Cunha, azedando ainda mais as relações do governo com seu maior aliado e com sua base parlamentar.
Denunciado pela Justiça, o presidente da Câmara faz um verdadeiro leilão de seu apoio ao governo ou à oposição em troca de proteção, até romper definitivamente com o governo.
Usando de todas as prerrogativas do cargo, todas as ações de Eduardo Cunha tiveram um único objetivo: tornar críveis suas ameaças visando proteção.
Com a denúncia contra ele aceita pelo Supremo Tribunal Federal e um processo de cassação no Conselho de Ética da Câmara, Cunha acolhe, em dezembro de 2015, um dos muitos processos que pediam o impeachment da presidente.
Em 2016, manifestações de apoio ao governo se contrapõem às da oposição. Fica cada vez mais claro o antagonismo entre projetos políticos dos dois grupos liderados pelo PT e o PSDB, o que aliás já era evidente nas eleições.
O PT deu de bandeja as bandeiras que a oposição abraçou. Medidas tomadas pelo governo no primeiro mandato de Dilma e os as práticas adotadas pelo partido para se manter no poder criaram um adversário mais fácil de ser abatido.


E a oposição ainda contou com o apoio de setores econômicos e sociais mais poderosos. A origem da crise, portanto, não está nas instituições, mas na correlação de forças entre diferentes grupos políticos.
Temos que parar com a mania de culpar as instituições básicas da República –presidencialismo, multipartidarismo, federalismo– por crises que têm raízes sociais, econômicas e políticas. Isso é diversionismo.

ARGELINA CHEIBUB FIGUEIREDO é professora do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj e autora de "Democracia ou Reformas? Alternativas Democráticas à Crise Política - 1961-1964" (Editora Paz e Terra) e coautora de "Executivo e Legislativo na Nova Ordem Democrática" (Editora FGV). 


terça-feira, 10 de maio de 2016

O golpe está sendo televisionado (mas não no Brasil)

O movimento conservador brasileiro conhecido entre os cientistas políticos como a revolta da cashmere, devido ao seu perfil socioeconômico elitizado, tem chamado a atenção da mídia internacional. Contudo, diferentemente da cobertura oferecida pela mídia nacional, ela tem adotado, em geral, uma postura muito menos apologética à destituição da presidenta Rousseff. Tal como em qualquer mercado de informações, em todos os país existem múltiplas interpretações e posicionamentos sobre os últimos acontecimentos no Brasil, mas, surpreendentemente para um leitor brasileiro, existe certo consenso entre os principais meios de comunicação de que ou bem se trata de uma golpe suave (soft coup) ou de um descarado jogo de cena entre a elite econômica (contrário ao governo de esquerda) e a elite política (ávida por interromper as investigações contra corrupção na Petrobrás). Como afirmou recentemente o NY Times a respeito da votação do relatório do impedimento presidencial na Câmara: trata-se de um acobertamento.

Mesmo periódicos moderados ou mais conservadores, como o inglês The Economist e os norte-americanos USA TodayThe Atlantic, aventam abertamente a possibilidade de que um golpe jurídico  esteja atualmente em curso no Brasil. Sobretudo, os veículos de comunicação internacionais chamam a atenção para a atuação anti-democrática da oposição parlamentar. Em um artigo para a revista The Nation, o historiador Greg Grandin chega a chamar o impedimento de Dilma de "a revolução dos escravocratas", fazendo uma alusão ao apoio político e financeiro que as principais lideranças do golpe receberam de empresas incluídas na importante (porém pouco debatida no Brasil) "lista suja" da mão de obra escrava.





Ou seja, caso um brasileiro ou brasileira não tivesse os grupos de comunicação nacionais como sua principal fonte de informação sobre a política, provavelmente ele ou ela entenderia a destituição da presidenta eleita como uma agressão às nossas instituições políticas, exatamente como boa parte da opinião pública internacional tem interpretado os acontecimentos até o momento. O que o mundo toma como uma atrocidade política, nossa esfera pública encara como trivial.

É relativamente fácil explicar essa discrepância entre esses dois mundos. Um dos elementos mais importantes de nossa crise política, reiteradamente apresentado pela mídia internacional, é a concentração extrema dos meios de comunicação no Brasil. Ainda que esse seja um problema generalizado (basta lembrar dos Murdochs na Inglaterra e nos EUA e dos Berlusconis na Italia), nada se compara com o que temos no Brasil. A recente queda do país no índice de liberdade de imprensa, computado pela organização Reporters Without Borders (caímos da posição 58 em 2010 para 104 em 2016), foi explicada pela ONG nos seguintes termos:

[...] os meios de comunicação [brasileiros] são fortemente dependentes dos centros do poder econômico e político. A cobertura midiática da atual crise política pela qual passa o país realçou ainda mais esse problema. De maneira bem pouco sutil, os líderes da mídia nacional conclamaram o público para os ajudar a derrubar a presidente Dilma Rousseff. Os jornalistas que trabalham para esses grupos de comunicação encontram-se constantemente sujeitos à influência de interesses privados e partidários, e esse permanente conflito de interesses é, certamente, extremamente prejudicial à qualidade de sua produção jornalística. 

O caso do Grupo Globo, como foi recentemente apresentado no jornal inglês The Guardian, é o resultado mais chocante dessa injustiça na distribuição da informação: o grupo promoveu a seletividade partidária na cobertura da operação Lava Jato, deu apoio explícito às manifestações anti-governo e, adicionando insulto à injúria, apresentou em rede nacional um grampo obtido ilegalmente como parte da tentativa de criminalizar um ex-presidente da república. Recentemente, João Marinho, herdeiro do fundador do grupo e alegadamente o homem mais poderoso do Brasil, procurou defender a conduta dúbia de sua organização perante à imprensa internacional, apenas para reforçar o que todo mundo já sabia: o compromisso do Grupo Globo contra causas progressistas no país.

A falta de responsividade da imprensa brasileira ao pluralismo comunicativo necessário a uma democracia (e as vezes também aos critérios mínimos de profissionalismo) pode ser um obstáculo muito mais complicado de ser superado entre nós do que a tão alegada "falta de qualidade" de nossa classe política. (Ainda quanto a falta de responsividade, é interessante notar que os principais grupos oligopolistas da nossa mídia, incluindo o Estado de São Paulo, a editora Abril e uma neta da família Marinho, normalmente tão ávidos por virtudes republicanas em seus editoriais, estão presentes nos Panama Papers)

Segue abaixo uma pequena lista de matérias sobre a crise política brasileira em alguns dos principais meios de comunicação sul-americanos, norte-americanos e europeus (e a Al Jazeera):


- Is a coup taking place in Brazil? (The Atlantic)

- A razão pela qual os inimigos de Dilma querem seu impeachment (The Guardian)

- The Guardian view on Dilma Rousseff's impeachment (The Guardian)

- Brazil's president accuses opposition of coup-mongering (Al Jazeera)

- Is U.S. backing Rousseff's ouster in Brazil? (Democracy Now)

- Brazil is engulfed by Ruling Class Corruption - and a Dangerous Subvertion of Democracy (The Intercept)

- Winners and losers in Brazil presidential impeachment (Boston Review)

- Oligarchs handing control of Brazil to corporate elites in slow-moving coup (Salon)

- How the Rio Olympics could cement a Brazilian coup (The Nation)

- A Slaver's Coup in Brazil? (The Nation)

- Why vote to impeach Dilma Rousseff? (The Economist)

- Crisis in Brazil (London Review of Books)

- Brésil: la destitution de Dilma Rousseff est-elle un coup d'État? (La Tribune)

- Is the impeachment trial of Brazil's Dilma Rousseff a coup? (Washington Post)

- El enemigo principal está pronto para substituirla (El País)

- "El último día de mi mandato es el 31 de deciembre de 2018" (El País)

- Here's why some people think Brazil is in the middle of a "soft coup" (Washington Post)

-  Para la OEA el juicio politico contra Rousseff es ilegal (Clarín)

- No crime, no proof: Brazil's soft coup continues anyway (TeleSUR)

- Dilma Rousseff's impeachment isn't a coup, it's a cover up (NY Times)

- The ousting of Brazilian president Dilma Rousseff constitutes a coup (NY Times)

- Brazil's vice president, unpopular and under scrutiny, prepares to lead (NY Times)

- Who wins if Brazil impeaches its president? (USA Today)

- A coup is in the air (The Wire)

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Impeachment, Têmis e Leviatã

Esta é a segunda de uma série de intervenções originais escritas por cientistas políticos, sociólogos e filósofos acerca da possibilidade de um golpe jurídico atualmente em curso no Brasil contra o governo Dilma Rousseff. As diferentes contribuições procuram contextualizar o problema a partir de diferentes elementos presentes na crise política e social dos últimos meses, tais como as instituições representativas, a mídia, o judiciário e o capital estrangeiro. As posições expressas em cada post são - como não poderiam deixar de ser - estritamente autorais


Impeachment, Têmis e Leviatã 

Por Beatriz Camões

Uma maneira de se buscar compreender a sensação de crise da democracia é através da análise que faz Marcelo Neves do constitucionalismo na modernidade periférica. Estou aqui a defender que o autor explica com uma precisão cirúrgica o momento político atual. Promovendo a releitura de Niklas Luhmann, Neves entende que o Estado Democrático de Direito encontra limitações na modernidade periférica (isto é, a modernidade da forma que se apresenta nos países periféricos, fora do eixo Europa Ocidental – América do Norte), se observarmos a falta de autonomia que tem o direito em relação a outros subsistemas sociais.

Até agora, o livro Entre Têmis e Leviatã: Uma Relação Difícil foi a leitura que melhor me permitiu entender o fenômeno político que vivemos (uma resenha do livro pode ser encontrada aqui). O processo de impeachment contra a presidenta é um claro exemplo de como a esfera do jurídico (daquilo que, segundo Neves, se define através da dicotomia “lícito/ilícito”) apresenta uma quebra de fechamento em relação a outro subsistema: a política.

É bem verdade que muito se discute a respeito da natureza do impeachment: trata-se de processo jurídico ou político? (uma análise boa a respeito se encontra no artigo de Daniel Murata). É verdade que há argumentos para defender qualquer dos posicionamentos. No entanto, mais uma vez é possível nos voltarmos para Neves: a falha em percebermos, na modernidade periférica (contexto no qual o Brasil está inserido), o direito enquanto código de poder, porquanto definidor do lícito e do ilícito; e o fato de percebermos apenas a política enquanto tal, não significa termos instituições políticas suficientemente fortalecidas.

Também é curioso que, em sua obra, o autor faz essa análise sem se propor a abranger os períodos 1937-45 e 1964-84. Portanto, os obstáculos que considera existirem à realização do Estado Democrático de Direito se verificam em períodos nos quais diversos atores políticos e a grande mídia sustentam que vivenciamos a experiência democrática. Mesmo nesses períodos, porém, há uma defasagem democrática.

E qual é a consequência dessa falta de fechamento do subsistema jurídico? Qual é a consequência de serem rejeitadas a legalidade e a constitucionalidade, na análise de Marcelo Neves? Talvez o melhor modo de explicar isso seja com trecho do próprio autor:

Nessas circunstâncias, os procedimentos predominantemente jurídicos do Estado Democrático de Direito, tais como o jurisdicional e o administrativo de estrita execução da lei, sobretudo o policial, são invadidos por critérios extrajurídicos que de forma incontrolável corrompem o processamento de casos jurídicos de acordo com critérios generalizados de constitucionalidade e legalidade, concretizados jurisdicional e administrativamente. É ingênua a interpretação de que se trata aqui de uma ampla abertura cognitiva do direito aos interesses sociais".

Parece-me que essa análise é essencial para que se construa o discurso de que seria justificado qualquer dos posicionamentos a respeito do impeachment. Caso contrário, corre-se o risco de sacrificar a democracia em nome do entendimento de que “os interesses sociais” clamam pelo tratamento do processo como jurídico ou como político.


Beatriz Camões é advogada (FDUSP) com ênfase Teoria do Direito. 

Novo número da RBCP: Ciência Política no Brasil

Publicada neste mês, o número 19 da RBCS foi dedica ao tema a ciência política no brasil. Entre os artigos da edição encontram-se um mapa da produção em ciência política no país - incluindo uma nova e provocativa classificação de suas sub-áreas (Tavares & Oliveira) -  uma pesquisa sobre a (incerta) internacionalização da nossa produção docente (Madeira & Marenco) e uma debate metodológico a respeito a respeito da análise de discurso (Feres Júnior e Miguel). Os artigos podem ser conferidos abaixo




Artigos
Francisco Mata Machado Tavares, Ian Caetano de Oliveira
11-45

Rafael Machado Madeira, André Marenco
47-74

Christian Edward Cyril Lynch
75-119

João Pedro Tavares Damasceno, João Carlos Amoroso Botelho
121-145

Gerardo L. Munck, Jay Verkuilen
147-165

Alvaro Bianchi
167-197

Mario Fuks, Gabriel Avila Casalecchi, Guilherme Quaresma Gonçalves, Flávia Felizardo David
199-219

Alvaro Augusto de Borba Barreto
221-252

Kleber Chagas Cerqueira
253-275

João Feres Júnior
277-298


Luis Felipe Miguel
299-301