Concordamos que algo fora do normal aconteceu no país na última semana. Uma coalização de direita, apoiada pela mídia oligopolista, foi capaz de desestabilizar um governo de esquerda eleito e ameaça, agora, implementar uma agenda econômica e social rejeitada nas urnas por 54 milhões de brasileiros e brasileiras.
Como explicar esse evento?
Como era de se esperar, hipóteses preliminares rivais começam a surgir. Para alguns, o golpe pode ser entendido como um conflito distributivo agravado pela crise fiscal, crise a qual a classe proprietária não parece disposta a pagar a sua parte (ver, por exemplo,
aqui e
aqui). Outras interpretações procuram contextualizar o golpe a partir de uma reorientação geopolítica pela qual a América do Sul e o sul global estariam passando, enfatizando o baixo crescimento dos países industriais centrais e a nova corrida por recursos naturais (ver
aqui e
aqui). Contudo, uma das correntes mais importantes da da ciência política brasileira, o neoinstitucionalismo, havia mantido certa cautela ao julgar os últimos acontecimentos.
O silêncio foi quebrado com a publicação na Folha com o artigo da cientista política
Argelina Figueiredo (IEPS/UERJ) entitulado
O que deu errado? Não culpemos as instituições (o artigo pode ser lido abaixo). Não é exagero dizer que
os trabalhos de Argelina de meados dos anos 90 sobre o funcionamento das instituições políticas no Brasil mudou não apenas a nossa compreensão sobre o funcionamento das instituições como também foi uma das grandes responsáveis pela profissionalização da ciência política no no país - por vezes um jogo sem muito rigor analítico e jogado apenas pelas elites.
Estudos institucionalistas como os conduzidos por Argelina tendem a levar em consideração o impacto das regras sobre o comportamento dos agentes políticos. Contudo, diferentemente do "antigo" institucionalismo, que procura deduzir consequências políticas a partir das macro-características de um regime político, o "novo"institucionalismo procura explicar, a partir de evidências empíricas, como o sistema de incentivos e penalidades criados pelas instituições afetam as múltiplas (e certamente conflitantes) estratégias dos agentes racionais em interação. Daí o recurso às análises econômicas sobre o comportamento dos agentes.
A grande atração desse tipo de explicação é seu rigor conceitual e a capacidade de testar hipóteses sobre o sistema político, de uma forma que outros tipos de explicação, ou mesmo a famosa ciência política de bar, não conseguem. Tomemos um exemplo. Ao invés de deduzir que o número excessivo de partidos no Brasil é um problema, ou que presidencialismo com multipartidarismo é impossível (verdadeira fixação da ciência política norte-americana) neoinstitucionalistas procuram entender, primeiro, como as lideranças partidárias de fato atuam no congresso. O resultado pode ser um jogo de poder muito mais organizado, previsível e aberto às exigências populares do que imaginávamos.
Como afirma Argelina em seu artigo, os últimos vinte anos foram marcados justamente por esse tipo de estabilidade positiva.
Presidentes e presidentas foram eleitos, coalizões partidárias foram montadas, a política conseguiu controlar parcialmente os rumos da economia (para o bem ou para o mal) e o grau de participação da sociedade civil aumentou na formulação de políticas públicas. Como explicar, então, o governo Temer-Cunha?
"Nada a ver com as instituições", afirma Argelina. "O que temos hoje é um cabo de guerra entre um governo fragilizado pelo baixo desempenho de sua economia e pelo seu envolvimento em práticas corruptas e uma oposição desleal [...] que não aceita as regras do jogo". A origem do problema estaria, portanto, na composição (ou recomposição) de forças sociais envolvendo uma exímia (porém moralmente condenável) articulação conservadora parlamentar, mídia oligopolista e setores econômicos. Organizando seus interesses eles teriam consigo tornar impossível a governabilidade de Dilma. "O PT de de bandeja as bandeiras que a oposição adotou".
É difícil discordar da narrativa apresentada por Argelina. Entretanto, não está claro que a narrativa seja perfeitamente compatível com uma tese neoinstitucionalista "forte". Fico aqui com dois problemas possíveis.
O primeiro diz respeito à interpretação do evento. Parece difícil sustentar as duas teses ao mesmo tempo: que (i) as principais instituições políticas estão funcionando perfeitamente e que (ii) não era para acontecer o que aconteceu. Talvez, então, não tenha ocorrido "golpe" e o que vimos foi apenas uma nova dinâmica de governabilidade no país: governos impopulares sem apoio na classe proprietária (econômica e mídia) estão sujeitos, graças às regras do jogo, a um recall parlamentar. Mas se esse for o caso, então não deveríamos partir do pressuposto de que existe algo "errado" a ser explicado.
Em segundo lugar, e talvez mais complicado, não fica claro o motivo pelo qual a oposição não teria aceito as regras do jogo. Não seria justamente essa a finalidade das (boas) instituições políticas? Produzir os incentivos necessários para que os agentes queiram ganhar por meio delas e não a despeito delas? Da perspectiva neoinstitucionalista, a fragilidade do governo Dilma deveria ser entendida como uma forma de responsividade ao equilíbrio de forças políticas, principalmente em um cenário de recessão e eleição acirrada. Não podemos esperar que entregar os pontos ao adversário tenha sido uma estratégia racional. Logo, foi uma reação racional (e dramática) à estratégia da oposição. Logo, a oposição queria derrubar o governo desde o começo. Precisaríamos concluir que, a despeito da extrema permissividade em termos de concessões políticas, a oposição decidiu manobras a lei, comprar a rua, derrubar um governo eleito e por em risco o futuro da constituição, mesmo quando a eleição de 2018 já parecia garantida.
Antes de ser uma deficiência, vejo os problemas apontados como um incentivo ao debate especializado mais sofisticado sobre o nosso futuro enquanto cidadãos cidadãs e cientistas. O debate está aberto.
por
Argelina Figueiredo
A pergunta feita a mim pela Folha não foi por acaso. Sempre argumentei que as instituições representativas e de governo brasileiras –ou seja, o presidencialismo, o federalismo, o sistema proporcional de lista aberta e o multipartidarismo– não constituíam obstáculos para o funcionamento e a mudança de políticas públicas em governos de coalizão.
A centralização decisória estabelecida na Constituição de 1988, com o aumento dos poderes legislativos do Executivo, e o fortalecimento dos líderes partidários inscritos no regimento da Câmara dos Deputados podem funcionar como instrumentos de barganha entre o governo e sua base parlamentar, resultando em apoio congressual sistemático e na capacidade do governo de aprovar suas propostas legislativas.
Por isso, sempre fui contra mudanças drásticas das nossas instituições representativas e de governo, pois elas garantem acesso das demandas da população ao centro decisório e mais equilíbrio entre os poderes.
Seus efeitos na representação e na participação dos cidadãos compensam eventuais conflitos que possam gerar na formulação de políticas públicas.
Se os constituintes decidiram maior centralização decisória para garantir mais eficácia e legitimidade ao governo democrático, não é preciso colocar uma camisa de força na representação, fomentar artificialmente o majoritarismo, promover a fusão dos poderes Legislativo e Executivo e muito menos negar representação nos governos subnacionais.
Os 20 anos de estabilidade econômica e política me parecem suficientes para demonstrar que essa combinação institucional não é inviável.
Durante esse período testemunhamos significativas mudanças na organização do Estado e da economia, na política e nas políticas públicas e, principalmente, na incorporação econômica e social das camadas mais baixas da população, além de comprovada melhoria de suas condições de vida.
Tudo isso foi conquistado com extensa e crescente participação social e eleitoral, ao contrário do que ocorre nas chamadas democracias consolidadas, ou mais antigas, como prefiro.
O Brasil que retornou plenamente à democracia em 1988 é muito melhor do que o país entregue pelos militares. E, apesar do longo caminho ainda a percorrer, certamente é mais justo.
O que deu errado, então? Nada a ver com as instituições, pelo menos não com as instituições em geral responsabilizadas pelas mazelas do sistema político brasileiro.
O que temos hoje é um cabo de guerra entre um governo fragilizado pelo baixo desempenho da economia e pelas denúncias de seu envolvimento em práticas corruptas e uma oposição desleal, ou seja, aquela que, segundo os manuais de ciência política, não aceita as regras do jogo. Vejamos.
A origem da crise está na vitória do PT nas eleições de 2014. O país enfrentava sérios problemas econômicos que ameaçavam os ganhos obtidos pela população por mais de uma década. A baixa popularidade do governo expressava o descontentamento com a situação. Além disso, denúncias de um esquema de corrupção na Petrobrás, liderado pelo partido do governo, alimentavam as manchetes jornalísticas diariamente.
Ao final do processo, o PSDB, principal partido de oposição, não aceitou sua quarta derrota na disputa presidencial. Solicitou a recontagem dos votos, demanda negada pela Justiça Eleitoral, fiadora até então inconteste da lisura das eleições brasileiras.
Nascia aí o objetivo que mais tarde se tornaria claro, o objetivo de não permitir que a presidenta concluísse seu mandato, custasse o que custasse.
A coalizão oposicionista se ampliou e ganhou as redes sociais e as ruas. A primeira grande manifestação contra o governo foi em março de 2015 e outras se seguiram durante o ano, além dos panelaços a qualquer ação pública da presidenta.
O apoio mais conspícuo entre as "classes produtoras" veio da Fiesp, Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, mas ela não foi exceção. A imprensa oligopolista foi conivente com vazamentos de delações em momentos estratégicos e não negou manchetes, além de reportagens enviesadas e análises favoráveis à oposição.
No front legislativo, o segundo mandato inicia com a disputa entre o PT e o PMDB pela presidência da Câmara e a vitória do candidato do PMDB, Eduardo Cunha, azedando ainda mais as relações do governo com seu maior aliado e com sua base parlamentar.
Denunciado pela Justiça, o presidente da Câmara faz um verdadeiro leilão de seu apoio ao governo ou à oposição em troca de proteção, até romper definitivamente com o governo.
Usando de todas as prerrogativas do cargo, todas as ações de Eduardo Cunha tiveram um único objetivo: tornar críveis suas ameaças visando proteção.
Com a denúncia contra ele aceita pelo Supremo Tribunal Federal e um processo de cassação no Conselho de Ética da Câmara, Cunha acolhe, em dezembro de 2015, um dos muitos processos que pediam o impeachment da presidente.
Em 2016, manifestações de apoio ao governo se contrapõem às da oposição. Fica cada vez mais claro o antagonismo entre projetos políticos dos dois grupos liderados pelo PT e o PSDB, o que aliás já era evidente nas eleições.
O PT deu de bandeja as bandeiras que a oposição abraçou. Medidas tomadas pelo governo no primeiro mandato de Dilma e os as práticas adotadas pelo partido para se manter no poder criaram um adversário mais fácil de ser abatido.
E a oposição ainda contou com o apoio de setores econômicos e sociais mais poderosos. A origem da crise, portanto, não está nas instituições, mas na correlação de forças entre diferentes grupos políticos.
Temos que parar com a mania de culpar as instituições básicas da República –presidencialismo, multipartidarismo, federalismo– por crises que têm raízes sociais, econômicas e políticas. Isso é diversionismo.
ARGELINA CHEIBUB FIGUEIREDO é professora do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj e autora de "Democracia ou Reformas? Alternativas Democráticas à Crise Política - 1961-1964" (Editora Paz e Terra) e coautora de "Executivo e Legislativo na Nova Ordem Democrática" (Editora FGV).