sábado, 14 de maio de 2016

As instituições funcionaram?

Concordamos que algo fora do normal aconteceu no país na última semana. Uma coalização de direita, apoiada pela mídia oligopolista, foi capaz de desestabilizar um governo de esquerda eleito e ameaça, agora, implementar uma agenda econômica e social rejeitada nas urnas por 54 milhões de brasileiros e brasileiras.

Como explicar esse evento? 

Como era de se esperar, hipóteses preliminares rivais começam a surgir. Para alguns, o golpe pode ser entendido como um conflito distributivo agravado pela crise fiscal, crise a qual a classe proprietária não parece disposta a pagar a sua parte (ver, por exemplo, aqui e aqui). Outras interpretações procuram contextualizar o golpe a partir de uma reorientação geopolítica pela qual a América do Sul e o sul global estariam passando, enfatizando o baixo crescimento dos países industriais centrais e a nova corrida por recursos naturais (ver aqui e aqui). Contudo, uma das correntes mais importantes da da ciência política brasileira, o neoinstitucionalismo, havia mantido certa cautela ao julgar os últimos acontecimentos. 

O silêncio foi quebrado com a publicação na Folha com o artigo da cientista política Argelina Figueiredo (IEPS/UERJ) entitulado O que deu errado? Não culpemos as instituições (o artigo pode ser lido abaixo). Não é exagero dizer que os trabalhos de Argelina de meados dos anos 90 sobre o funcionamento das instituições políticas no Brasil mudou não apenas a  nossa compreensão sobre o funcionamento das instituições como também foi uma das grandes responsáveis pela profissionalização da ciência política no no país - por vezes um jogo sem muito rigor analítico e jogado apenas pelas elites. 

Estudos institucionalistas como os conduzidos por Argelina tendem a levar em consideração o impacto das regras sobre o comportamento dos agentes políticos. Contudo, diferentemente do "antigo" institucionalismo, que procura deduzir consequências políticas a partir das macro-características de um regime político, o "novo"institucionalismo procura explicar, a partir de evidências empíricas, como o sistema de incentivos e penalidades criados pelas instituições afetam as múltiplas (e certamente conflitantes) estratégias dos agentes racionais em interação. Daí o recurso às análises econômicas sobre o comportamento dos agentes. 

A grande atração desse tipo de explicação é seu rigor conceitual e a capacidade de testar hipóteses sobre o sistema político, de uma forma que outros tipos de explicação, ou mesmo a famosa ciência política de bar, não conseguem. Tomemos um exemplo. Ao invés de deduzir que o número excessivo de partidos no Brasil é um problema, ou que presidencialismo com multipartidarismo é impossível (verdadeira fixação da ciência política norte-americana) neoinstitucionalistas procuram entender, primeiro, como as lideranças partidárias de fato atuam no congresso. O resultado pode ser um jogo de poder muito mais organizado, previsível e aberto às exigências populares do que imaginávamos.

Como afirma Argelina em seu artigo, os últimos vinte anos foram marcados justamente por esse tipo de estabilidade positiva.

Presidentes e presidentas foram eleitos, coalizões partidárias foram montadas, a política conseguiu controlar parcialmente os rumos da economia (para o bem ou para o mal) e o grau de participação da sociedade civil aumentou na formulação de políticas públicas. Como explicar, então, o governo Temer-Cunha?

"Nada a ver com as instituições", afirma Argelina. "O que temos hoje é um cabo de guerra entre um governo fragilizado pelo baixo desempenho de sua economia e pelo seu envolvimento em práticas corruptas e uma oposição desleal [...] que não aceita as regras do jogo". A origem do problema estaria, portanto, na composição (ou recomposição) de forças sociais envolvendo uma exímia (porém moralmente condenável) articulação conservadora parlamentar, mídia oligopolista e setores econômicos. Organizando seus interesses eles teriam consigo tornar impossível a governabilidade de Dilma. "O PT de de bandeja as bandeiras que a oposição adotou". 

É difícil discordar da narrativa apresentada por Argelina. Entretanto, não está claro que a narrativa seja perfeitamente compatível com uma tese neoinstitucionalista "forte". Fico aqui com dois problemas possíveis.

O primeiro diz respeito à interpretação do evento. Parece difícil sustentar as duas teses ao mesmo tempo: que (i) as principais instituições políticas estão funcionando perfeitamente e que (ii) não era para acontecer o que aconteceu. Talvez, então, não tenha ocorrido "golpe" e o que vimos foi apenas uma nova dinâmica de governabilidade no país: governos impopulares sem apoio na classe proprietária (econômica e mídia) estão sujeitos, graças às regras do jogo, a um recall parlamentar. Mas se esse for o caso, então não deveríamos partir do pressuposto de que existe algo "errado" a ser explicado.  

Em segundo lugar, e talvez mais complicado, não fica claro o motivo pelo qual a oposição não teria aceito as regras do jogo. Não seria justamente essa a finalidade das (boas) instituições políticas? Produzir os incentivos necessários para que os agentes queiram ganhar por meio delas e não a despeito delas? Da perspectiva neoinstitucionalista, a fragilidade do governo Dilma deveria ser entendida como uma forma de responsividade ao equilíbrio de forças políticas, principalmente em um cenário de recessão e eleição acirrada. Não podemos esperar que entregar os pontos ao adversário tenha sido uma estratégia racional. Logo, foi uma reação racional (e dramática) à estratégia da oposição. Logo, a oposição queria derrubar o governo desde o começo. Precisaríamos concluir que, a despeito da extrema permissividade em termos de concessões políticas, a oposição decidiu manobras a lei, comprar a rua, derrubar um governo eleito e por em risco o futuro da constituição, mesmo quando a eleição de 2018 já parecia garantida.

Antes de ser uma deficiência, vejo os problemas apontados como um incentivo ao debate especializado mais sofisticado sobre o nosso futuro enquanto cidadãos cidadãs e cientistas. O debate está aberto.


O que deu errado? Não culpemos as instituições


por Argelina Figueiredo

A pergunta feita a mim pela Folha não foi por acaso. Sempre argumentei que as instituições representativas e de governo brasileiras –ou seja, o presidencialismo, o federalismo, o sistema proporcional de lista aberta e o multipartidarismo– não constituíam obstáculos para o funcionamento e a mudança de políticas públicas em governos de coalizão.
A centralização decisória estabelecida na Constituição de 1988, com o aumento dos poderes legislativos do Executivo, e o fortalecimento dos líderes partidários inscritos no regimento da Câmara dos Deputados podem funcionar como instrumentos de barganha entre o governo e sua base parlamentar, resultando em apoio congressual sistemático e na capacidade do governo de aprovar suas propostas legislativas.
Por isso, sempre fui contra mudanças drásticas das nossas instituições representativas e de governo, pois elas garantem acesso das demandas da população ao centro decisório e mais equilíbrio entre os poderes.

Seus efeitos na representação e na participação dos cidadãos compensam eventuais conflitos que possam gerar na formulação de políticas públicas.


Se os constituintes decidiram maior centralização decisória para garantir mais eficácia e legitimidade ao governo democrático, não é preciso colocar uma camisa de força na representação, fomentar artificialmente o majoritarismo, promover a fusão dos poderes Legislativo e Executivo e muito menos negar representação nos governos subnacionais.
Os 20 anos de estabilidade econômica e política me parecem suficientes para demonstrar que essa combinação institucional não é inviável.
Durante esse período testemunhamos significativas mudanças na organização do Estado e da economia, na política e nas políticas públicas e, principalmente, na incorporação econômica e social das camadas mais baixas da população, além de comprovada melhoria de suas condições de vida.
Tudo isso foi conquistado com extensa e crescente participação social e eleitoral, ao contrário do que ocorre nas chamadas democracias consolidadas, ou mais antigas, como prefiro.
O Brasil que retornou plenamente à democracia em 1988 é muito melhor do que o país entregue pelos militares. E, apesar do longo caminho ainda a percorrer, certamente é mais justo.
O que deu errado, então? Nada a ver com as instituições, pelo menos não com as instituições em geral responsabilizadas pelas mazelas do sistema político brasileiro.
O que temos hoje é um cabo de guerra entre um governo fragilizado pelo baixo desempenho da economia e pelas denúncias de seu envolvimento em práticas corruptas e uma oposição desleal, ou seja, aquela que, segundo os manuais de ciência política, não aceita as regras do jogo. Vejamos.
A origem da crise está na vitória do PT nas eleições de 2014. O país enfrentava sérios problemas econômicos que ameaçavam os ganhos obtidos pela população por mais de uma década. A baixa popularidade do governo expressava o descontentamento com a situação. Além disso, denúncias de um esquema de corrupção na Petrobrás, liderado pelo partido do governo, alimentavam as manchetes jornalísticas diariamente.
Ao final do processo, o PSDB, principal partido de oposição, não aceitou sua quarta derrota na disputa presidencial. Solicitou a recontagem dos votos, demanda negada pela Justiça Eleitoral, fiadora até então inconteste da lisura das eleições brasileiras.
Nascia aí o objetivo que mais tarde se tornaria claro, o objetivo de não permitir que a presidenta concluísse seu mandato, custasse o que custasse.
A coalizão oposicionista se ampliou e ganhou as redes sociais e as ruas. A primeira grande manifestação contra o governo foi em março de 2015 e outras se seguiram durante o ano, além dos panelaços a qualquer ação pública da presidenta.
O apoio mais conspícuo entre as "classes produtoras" veio da Fiesp, Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, mas ela não foi exceção. A imprensa oligopolista foi conivente com vazamentos de delações em momentos estratégicos e não negou manchetes, além de reportagens enviesadas e análises favoráveis à oposição.
No front legislativo, o segundo mandato inicia com a disputa entre o PT e o PMDB pela presidência da Câmara e a vitória do candidato do PMDB, Eduardo Cunha, azedando ainda mais as relações do governo com seu maior aliado e com sua base parlamentar.
Denunciado pela Justiça, o presidente da Câmara faz um verdadeiro leilão de seu apoio ao governo ou à oposição em troca de proteção, até romper definitivamente com o governo.
Usando de todas as prerrogativas do cargo, todas as ações de Eduardo Cunha tiveram um único objetivo: tornar críveis suas ameaças visando proteção.
Com a denúncia contra ele aceita pelo Supremo Tribunal Federal e um processo de cassação no Conselho de Ética da Câmara, Cunha acolhe, em dezembro de 2015, um dos muitos processos que pediam o impeachment da presidente.
Em 2016, manifestações de apoio ao governo se contrapõem às da oposição. Fica cada vez mais claro o antagonismo entre projetos políticos dos dois grupos liderados pelo PT e o PSDB, o que aliás já era evidente nas eleições.
O PT deu de bandeja as bandeiras que a oposição abraçou. Medidas tomadas pelo governo no primeiro mandato de Dilma e os as práticas adotadas pelo partido para se manter no poder criaram um adversário mais fácil de ser abatido.


E a oposição ainda contou com o apoio de setores econômicos e sociais mais poderosos. A origem da crise, portanto, não está nas instituições, mas na correlação de forças entre diferentes grupos políticos.
Temos que parar com a mania de culpar as instituições básicas da República –presidencialismo, multipartidarismo, federalismo– por crises que têm raízes sociais, econômicas e políticas. Isso é diversionismo.

ARGELINA CHEIBUB FIGUEIREDO é professora do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj e autora de "Democracia ou Reformas? Alternativas Democráticas à Crise Política - 1961-1964" (Editora Paz e Terra) e coautora de "Executivo e Legislativo na Nova Ordem Democrática" (Editora FGV).