Esta é a segunda de uma série de intervenções originais escritas por cientistas políticos, sociólogos e filósofos acerca da possibilidade de um golpe jurídico atualmente em curso no Brasil contra o governo Dilma Rousseff. As diferentes contribuições procuram contextualizar o problema a partir de diferentes elementos presentes na crise política e social dos últimos meses, tais como as instituições representativas, a mídia, o judiciário e o capital estrangeiro. As posições expressas em cada post são - como não poderiam deixar de ser - estritamente autorais
Impeachment, Têmis e Leviatã
Por Beatriz Camões
Uma maneira de se buscar compreender a sensação de crise da democracia é através da análise que faz Marcelo Neves do constitucionalismo na modernidade periférica. Estou aqui a defender que o autor explica com uma precisão cirúrgica o momento político atual. Promovendo a releitura de Niklas Luhmann, Neves entende que o Estado Democrático de Direito encontra limitações na modernidade periférica (isto é, a modernidade da forma que se apresenta nos países periféricos, fora do eixo Europa Ocidental – América do Norte), se observarmos a falta de autonomia que tem o direito em relação a outros subsistemas sociais.
Até agora, o livro Entre Têmis e Leviatã: Uma Relação Difícil foi a leitura que melhor me permitiu entender o fenômeno político que vivemos (uma resenha do livro pode ser encontrada aqui). O processo de impeachment contra a presidenta é um claro exemplo de como a esfera do jurídico (daquilo que, segundo Neves, se define através da dicotomia “lícito/ilícito”) apresenta uma quebra de fechamento em relação a outro subsistema: a política.
É bem verdade que muito se discute a respeito da natureza do impeachment: trata-se de processo jurídico ou político? (uma análise boa a respeito se encontra no artigo de Daniel Murata). É verdade que há argumentos para defender qualquer dos posicionamentos. No entanto, mais uma vez é possível nos voltarmos para Neves: a falha em percebermos, na modernidade periférica (contexto no qual o Brasil está inserido), o direito enquanto código de poder, porquanto definidor do lícito e do ilícito; e o fato de percebermos apenas a política enquanto tal, não significa termos instituições políticas suficientemente fortalecidas.
Também é curioso que, em sua obra, o autor faz essa análise sem se propor a abranger os períodos 1937-45 e 1964-84. Portanto, os obstáculos que considera existirem à realização do Estado Democrático de Direito se verificam em períodos nos quais diversos atores políticos e a grande mídia sustentam que vivenciamos a experiência democrática. Mesmo nesses períodos, porém, há uma defasagem democrática.
E qual é a consequência dessa falta de fechamento do subsistema jurídico? Qual é a consequência de serem rejeitadas a legalidade e a constitucionalidade, na análise de Marcelo Neves? Talvez o melhor modo de explicar isso seja com trecho do próprio autor:
“Nessas circunstâncias, os procedimentos predominantemente jurídicos do Estado Democrático de Direito, tais como o jurisdicional e o administrativo de estrita execução da lei, sobretudo o policial, são invadidos por critérios extrajurídicos que de forma incontrolável corrompem o processamento de casos jurídicos de acordo com critérios generalizados de constitucionalidade e legalidade, concretizados jurisdicional e administrativamente. É ingênua a interpretação de que se trata aqui de uma ampla abertura cognitiva do direito aos interesses sociais".
Parece-me que essa análise é essencial para que se construa o discurso de que seria justificado qualquer dos posicionamentos a respeito do impeachment. Caso contrário, corre-se o risco de sacrificar a democracia em nome do entendimento de que “os interesses sociais” clamam pelo tratamento do processo como jurídico ou como político.
Beatriz Camões é advogada (FDUSP) com ênfase Teoria do Direito.