Ao ter que explicar as consequências econômicas de uma sociedade divida em classes sociais engessadas, o economista norte-americano Joseph Stiglitz costuma contar
a seguinte piada: qual é a melhor decisão que um jovem ou uma jovem pode tomar em relação ao seu futuro nessas sociedades? Resposta: escolher quais serão seus pais.
A piada pode não ter muita graça, mas representa bem o problema que a desigualdade econômica coloca para o princípio da igualdade de oportunidades sociais. Mesmo em uma formulação pouco exigente, esse princípio nos diz que, dada duas pessoas com os mesmos talentos e a mesma motivação, em uma sociedade justa elas deveriam ter chances iguais de ocupar uma mesma posição social, independentemente de suas respectivas circunstâncias sociais - tal como, justamente, o ambiente familiar nos quais foram criadas.
O princípio de igualdade de oportunidades sociais é importante não apenas para aqueles e aquelas que querem subir (ou não querem descer) na pirâmide social. Ele também é um dos únicos fundamentos morais para a justificação da desigualdade econômica. Esperamos que em geral quem possui uma renda pessoal maior, isto é, quem ocupa as melhores posições sociais em termos de dinheiro, prestígio e poder, chegaram até lá pelo uso inteligente de seus talentos e pela motivação pessoal em contribuir para a produção social da riqueza. Caso o sistema de posicionamento social esteja "fechado" para um grupo social determinado - ou mesmo para a maioria da sociedade como nas sociedades estamentais - podemos facilmente concluir que o preenchimento das melhores posições sociais é mais uma questão de privilégio do que de oportunidade social. Uma sociedade justa certamente demanda mais de sua estrutura social do que apenas uma competição equitativa pelos melhores cargos. Mas nunca poderia demandar menos do que isso.
Índices de mobilidade social são uma boa forma de avaliar em que medida o princípio de igualdade de oportunidades funciona ou não em uma determinada sociedade. Como vimos na piada de Stiglitz, um sinal importante de falta de mobilidade social é a divisão econômica da sociedade em classes rígidas. Filhos de pais ricos, em geral, tendem a ter muito mais chances de permanecem ricos do que filhos de pais pobres subirem a ladeira social. A razão para isso é bem simples: quanto mais acesso à recursos sociais como educação e saúde, e aos recursos "informais" proporcionados pelo investimento familiar, mais chances uma criança possui de entender e se beneficiar das oportunidades sociais existentes em seu mundo social (recentemente, o
sociólogo Robert Putnam procurou mostrar que mesmo atividades aparentemente triviais, como contar histórias antes de dormir e buscar as crianças no colégio, possuem consequências não desprezíveis para o desenvolvimento de habilidades cognitivas e emocionais nos mais jovens, habilidades extremamente valiosas para o sucesso na escola e no mercado de trabalho).
É contra esse pano de fundo que precisamos entender a importância do debate sobre o enxugamento da classe média nos EUA. Após compor a maioria da sociedade norte-americana por mais de 4 décadas, em 2015 a soma das famílias ricas e pobres igualou estatisticamente a soma do estrato médio da renda no país. Segundo os dados do Pew Research Center, no início de 2015 cerca de 120,8 milhões de adultos viviam na faixa da renda familiar de classe média, enquanto 121,3 milhões vivam com renda familiar mais baixa ou mais alta do que a classe média somados. Ou seja, de um ponto de vista aritmético, os EUA se transformaram em uma sociedade de classe tal como o Brasil e a Índia (ver aqui outro post sobre o enxugamento da classe média nos EUA).
A perda de uma classe de transição econômica entre o topo e a base da pirâmide social tende a engessar a mobilidade social. E sem a efetividade do princípio de igualdade de oportunidades, a desigualdade social converte-se em privilégio e exploração. Por que? Tendo em vista o pressuposto sociológico de manutenção das melhores posições sociais, podemos esperar que nem os menos afortunados em relação à circustância familiar (mas não em talentos e motivação pessoal, importante frisar) deixam para trás as classes baixas, nem os mais afortunados perdem o acesso aos melhores empregos e oportunidades sociais seu privilégio social (independentemente, portanto, da sua contribuição para a sociedade). De fato, de um ponto de vista conceitual, nada impediria que, digamos, as famílias mais pobres ascendesse aos estratos mais ricos, e vice-versa, em apenas uma geração, sem necessariamente passarem pela classe média. O problema do enxugamento da classe média é de ordem empírica e não conceitual. O ponto é que essa dinâmica é extremamente implausível (para dizer o mínimo), tanto por mecanismos de proteção dos de cima, como pela dificuldade dos de baixo em superarem obstáculos estruturais.
|
Pew Center: The American Middle Class is Loosing Ground |
Ou seja, ainda que amplamente conhecidos, dados como esse ainda não eram o bastante para demostrar com rigor
qual o nível específico de corrosão da mobilidade social nos EUA. Um novo estudo do centro de pesquisas sobre mobilidade social de Stanford mudou esse cenário. A equipe do economista
Raj Chetty e do sociólogo
David Grusky procuraram medir o tamanho da corrosão de mobilidade social no país que já teve a maior taxa de ascensão social do mundo - os resultados podem ser encontrados na plataforma
The Equality of Opportunity Project. A realidade é bem pior do que se costumava esperar quando inferimos o resultado apenas levando em conta a polarização da renda. Chetty mostra uma queda persistente das chances das gerações dos filhos ganharem mais do que a geração dos pais ao longo de quarenta anos (ver o quadro abaixo). Uma pessoa qualquer nascida na década de 80 (na casa dos 30 anos hoje) possui
50% de chances de ganhar mais do que seus pais, em comparação com uma pessoa qualquer na década de 40, que contava com impressionantes
90% de chance.
A pesquisa leva em consideração apenas padrões absolutos de mobilidade, isto é, não desagrega as chances de mobilidade por classe, o que provavelmente superestima as chances de ascensão das pessoas mais pobres. De modo interessante, a pesquisa compara dois cenários distributivos diferentes. Poderíamos argumentar, por exemplo, que a transformação da estrutura social nos EUA pode ser explicada não pelo aumento da desigualdade, mas sim pelo baixo crescimento econômico agregado. A equipe de Chetty comparou, então, dois cenários hipotéticos: (i) um cenário com o alto crescimento econômico dos anos 40, mas também os altos índices de desigualdade de hoje e (ii) um cenário com o baixo crescimento de hoje, mas com a também baixa desigualdade social da década de 40. Aumentar o crescimento econômico - cenário (i) - aumentaria em 62% as chances de mobilidade social, enquanto distribuir mais equitativamente o crescimento (ainda que baixo) - cenário (ii) - aumentaria em 80% essas chances. Ou seja, ao contrário do que normalmente se acredita em cultos econômicos conservadores, uma melhor distribuição de renda não apenas é mais justo do ponto de vista dos princípios como também melhora a .
Problemas de mobilização social também possuem consequências indiretas para outras esferas sociais. Particularmente, a sensação "pauperização" dos estratos médios pode gerar descontentamento com o antigo status quo o qual costumava ser-lhes mais favorável. É interessante notar, por exemplo, que a distribuição geográfica da deteriorização da mobilidade social nos EUA corresponde em parte à radicalização de parte do eleitorado no país. Especialmente em estados do meio oeste (como Illionis e Michigan) os quais costumavam optar por propostas políticas mais centristas.
Normalmente dizemos que a eleição de Donald Trump representa a voz dos trabalhadores brancos pobres. Mais correto seria dizer: ele representa a voz dos trabalhadores brancos empobrecidos em relação às oportunidades de seus pais. Negros e imigrantes continuam sendo mais pobres do que trabalhadores brancos em números absolutos. Contudo, é justamente entre os trabalhadores blue collar do país que devemos esperar uma piora radical da mobilidade social em termos relativos. É como se, do ponto de vista de suas expectativas sociais particulares, homens e mulheres do meio oeste tivessem suas razões em concordar com o lema de Trump: "Make America Great Again".
Isso não significa, obviamente, que possamos simplesmente transpor os dois mapas e inferir mecanismos explicativos. Não podemos afirmar, por exemplo, que foram exatamente os afetados pela falta de ascensão social quem, nessas localidades, votaram no Trump. O ponto é que a trajetória de deterioração apresentada na pesquisa de Chetty precisa ser levada em consideração na hora de entendermos as profundas mudanças sociais operadas ao longo dos últimos nos países ricos pelo crescimento persistente da desigualdade econômica, e o fosso perspectivístico em termos de valores e interesses inter-classes que a divisão social estabelece. Talvez o movimento social por trás do novo populismo de direita nos EUA e na Inglaterra (os país mais desiguais e com piores índices de mobilidade social da OCDE) possa ser melhor compreendido como a frustração de famílias que tomaram consciência de que as possibilidade sociais abertas aos seus pais e mães não existirão mais para os seus filhos e filhas.
Termino esse post com uma nota pessoal. Ao longo deste ano, apresentei os dados acima para diferentes pessoas no Brasil. Em todos os casos eu terminei a exposição traçando a seguinte comparação: em termos de mobilidade social, os EUA estão se "brasificando", ou seja, migrando de uma sociedade com alta mobilidade social (não necessariamente uma sociedade igualitária) para uma sociedade de classes rígidas como é o caso do Brasil. Sem exceção, meus interlocutores brasileiros lamentaram profundamente esse fenômeno. Na maioria dos casos, uma sociedade que realiza, em sentido minimamente efetivo, o princípio de igualdade de oportunidades sociais foi identificado como um valor social intrínseco, algo a ser mantido a todo custo. Eis, portanto, a explicação para lamento em relação aos EUA.
O ponto é que boa parte dessas pessoas
não lamenta o fato de viverem em uma das sociedades mais injustas do mundo em relação à mobilidade social (ver abaixo a famosa
"curva do grande Gatsby" que correlaciona
imobilidade social e desigualdade econômica). Em alguns dos casos mais dramáticos de dissonância cognitiva, o interlocutor era favorável às políticas de
restrição de mobilidade atualmente em debate no país após a destituição da presidente eleita Dilma Roussef, como o
congelamento de investimento em saúde e educação públicas. Por que alguém que, em tese, valoriza a igualdade de oportunidades como questão de princípio, vê com tanta desconfiança o processo de inclusão social vivido pelo país as últimas décadas?
Não sei explicar o que se passa. Duas hipóteses são possíveis. Ou bem estamos diante de uma caso crônico de auto-imperIalismo cultural ("por natureza eles merecem algo melhor do que nós"), o que seria ridículo, ainda que explicável no contexto de nossa reprodução cultural, ou bem estamos diante de interesses de classe ("
eu não quero arriscar
as minhas oportunidades e privilégios sociais"). Qualquer que seja a resposta, o resultado é que o princípio de igualdade de oportunidades entre a elite brasileira funciona mais como uma dispositivo discursivo do que, de fato, de um comprometimento politico efetivo.
Enquanto as maravilhas de uma sociedade de livre-mercado e as chances iguais de desenvolvimento individual são valorizadas no discurso público, para o Brasil valeria o postulado de Stiglitz: o único preditor confiável de sucesso individual deveria continuar sendo a família na qual você nasceu.
-
Chatty & ali: "The Fading American Dream: Trends in Absolute Income Mobility Since 1940"