sexta-feira, 29 de julho de 2016

Princípios liberais, valores conservadores (parte I) - O caso da Escola sem Partido

Por Lucas Petroni

Certos princípios que, a primeira vista, todos parecemos aceitar são, com frequência, utilizados para justificar exatamente aquilo que eles originalmente deveriam rejeitar. Essa é a característica central da propaganda ideológica: o uso de um ideal a primeira vista valioso contra os próprios valores que o justificariam em primeiro lugar.

Alguns grupos políticos conservadores tem utilizado princípios liberais como uma forma de propaganda ideológica na esfera pública brasileira. Dois desses princípios tem sido empregado com certo sucesso: o princípio de neutralidade do estado, defendido pelos organizadores da Escola sem Partido, e o princípio de liberdade de expressão, tal como tem sido utilizado pela grande imprensa brasileira. Em ambos os casos, princípios e valores liberais estão sendo instrumentalizados para causas tradicionalistas ou politicamente conservadoras. Ou seja, a despeito daquilo que essas duas causas parecem ser, elas são apenas uma tentativa de defender o status quo injusto e, ironicamente, anti-liberal da sociedade brasileira.

Formas de propaganda ideológica como essas são nocivas não apenas porque distorcem o significado histórico de valores importantes, mas também na medida em que confundem os nossos julgamentos políticos. O mal uso das ideias liberais pode, com isso, comprometer debates mais sério sobre a qualidade da educação e o tipo de imprensa que queremos para a nossa sociedade.

Neste primeiro post gostaria de analisar o princípio liberal de neutralidade, pelo menos tal como esse princípio parece sustentar algumas das propostas da Escola sem Partido. 

Uma nota preliminar pode ser útil antes de prosseguirmos. Princípios liberais, como o da neutralidade do estado e da liberdade de expressão, estão longe de serem incontestáveis. Na verdade, boa parte da teoria política contemporânea pode ser entendida como uma tentativa de analisar e explorar os limites e contradições dos valores liberais clássicos. Propostas feministas e multiculturalistas, para darmos dois exemplos importantes, ressaltam a facilidade com que a neutralidade estatal tende a excluir perspectivas minoritárias dos debates públicos, enquanto concepções de inspiração socialista chamam a atenção para a dificuldade que o pensamento liberal possui em combater formas históricas de opressão política e exploração econômica. 

Ou seja, meu objetivo aqui é extremamente restrito: acredito que o uso conservador de princípios liberais não se sustenta dentro do próprio discurso liberal, não obstante as muitas objeções externas que podemos fazer a ele. Entretanto, acredito que mesmo quem tende a rejeitar esses princípios podem ganhar com um debate público mais sofisticado respeito de sua natureza e suas implicações. Um princípio básico da teoria política diz que só podemos rejeitar uma teoria quando vista a partir de sua melhor formulação. 

O que é o princípio de neutralidade do estado? 

Comecemos com uma definição preliminar. O princípio de neutralidade ou, de imparcialidade (como veremos abaixo) pode ser formulado de muitas maneiras mas, em geral, qualquer de suas formulações conta com pelo menos dois "reconhecimentos" fundamentais: (i) o reconhecimento do pluralismo moral e (ii) o reconhecimento do desentendimento razoável.

Em primeiro lugar, reconhecemos que as sociedades modernas são caracterizadas por uma ampla variedade de crenças e estilos de vida que, muitas vezes, não são apenas diferentes, mas também patentemente contraditórios entre si. O conflito entre formas de vida religiosas e laicas é um exemplo típico desse problema. Acreditar e devotar a vida a formas comunais de religião contradiz formas de vida laica na qual outros valores possuem prioridade, como o engajamento político ou uma vida reclusa dedicada aos prazeres da arte. O primeiro reconhecimento, portanto, afirma que existe uma pluralidade de concepções morais distintas disponíveis em uma mesma sociedade. 

Em segundo lugar, o princípio de neutralidade reconhece que mesmo pessoas plenamente razoáveis, isto é, pessoas motivadas por um desejo genuíno de tentar entender e respeitar as opiniões e valores alheios, podem discordar de modo profundo em relação à questões éticas crucias. Por exemplo, se acredito que uma vida dedicada a deus (qualquer deus) é intrinsicamente superior às outras formas possíveis de felicidade humana, então não posso aceitar que qualquer forma de vida é igualmente tão boa quanto outra, ainda que possa, de outro lado, aceitar uma convivência respeitosa com quem pensa diferente. O desentendimento razoável implica que mesmo pessoas esclarecidas e bem intencionadas não obterão um consenso sobre a melhor forma de organizar a sociedade e que, consequentemente, conflitos morais farão parte do cotidiano da vida política de uma sociedade. 

Tendo esses dois reconhecimentos em mente, o princípio liberal de neutralidade afirma que o estado, e seu aparato coercivo, como a lei e seus agentes, deve ser neutro entre as diferentes formas de vida presentes em uma sociedade. Isto é, o estado não deve nem endossar oficialmente, nem favorecer sistematicamente, uma forma de vida particular tendo como argumento sua alegada superioridade moral intrínseca. Isto é, que uma determinada concepção de bem é "verdadeira". No exemplo proposto, entre a vida religiosa e a vida secular, o princípio de neutralidade exige que o estado deve se manter neutro: daí a justificação para o estado secular. 

É importante notar que o princípio de neutralidade não rejeita a possibilidade de decisões políticas fundada em valores específicos ou mesmo o favorecimento de algumas formas de vida sobre outras (algo inevitável no jogo político democrático). O que ele diz é simplesmente que a razão para decidir conflitos morais não pode ser apenas a de que uma concepção moral particular é intrinsicamente melhor do que outras. Ou violar esse princípio o estado coloca em questão sua própria legitimidade moral. Essa era o caso, por exemplo, ao longo dos    anos nos quais o Brasil adotou o catolicismo como religião oficial do país. Uma rápida olhada na pequena quantidade de estados confessionais ao redor do mundo serve para ilustrar o sucesso do princípio de neutralidade. 

O princípio tem muitas aplicações e vai muito além da mera laicidade das leis. Uma dessas aplicações diz respeito, justamente, ao conteúdo do ensino oferecido às novas gerações (sobretudo do ensino público) e o tipo de formação que podemos legitimamente esperar de futuros cidadãs e cidadãos em uma sociedade plural e democrática. Tendo em vista o reconhecimento do pluralismo moral, é perfeitamente natural compreender a educação como uma das "questões controversas" mais importantes em sociedades pluralistas.

Na verdade, é difícil imaginar alguém que de fato valorize seus pontos de vista pessoais e que não se preocupe seriamente com a possibilidade do uso dos meios coletivos de coerção como forma de opressão ideológica - eu certamente me revoltaria se o professor de literatura dos meus filhos ensinasse a poesia do presidente interino Michel Temer como exemplo de qualidade lírica.

A história recente do Brasil nos fornece um exemplo mais sério dos temores liberais: o ensino cívico durante a ditadura militar.




Imposta em 1969 pela ditadura jurídico-militar, a educação moral e cívica tinha como objetivo oficial preparar os cidadãos para o exercício de suas atribuições na vida adulta por meio de - cito - um "culto oficial à Pátria". Parte de suas diretrizes pedagógicas eram algo cômicas - ou melhor, digna da mentalidade autoritária dos militares - como a necessidade de decorar, mas não necessariamente entender, as estrofes parnasianas do hino nacional. O lado mais sinistro da educação moral e cívica no entanto residia no controle autocrático do governo tanto sobre os conteúdos ministrados em sala de aula como na indicação de professores e reitores ao longo da ditadura (o decreto-lei original pode ser lido aqui).

O que nos interessa a respeito da educação moral e cívica não é tanto a dimensão institucional do projeto, mas sua dimensão ideológica. A instituição de uma educação moral compulsória era a tentativa de promover os valores que as elites militares e empresariais do país entendiam como intrinsicamente superiores a todos os outros. Esse ideal era constituído por de três valores básicos: deus, pátria e "ação permanente em benefício do Brasil" (ver aqui).

Na prática, a educação cívica procurava enquadrar comportamentos e mentalidades dissidentes em um padrão normativo compatível com as aspirações do governo militar e, principalmente, com a doutrina nacional de segurança responsável - o que, dentre outras coisas, significa encontrar e erradicar comportamentos ditos por "subversivo" entre os jovens. Qualquer forma de identidade "desviante", tal como a não crer em deus (ou crer em um deus diferente daquele dos militares) ou formas de conduta imorais, como fugir do modelo de virilidade masculina ou submissão feminina, deveriam ser severamente constrangido tanto pela lei como pelo educação.

A educação moral e cívica é um caso extremo de violação do princípio de neutralidade (o regime militar como um todo também o era, mas deixemos essa questão para outro post). Ela ilustra bem o chamei anteriormente de opressão pública: um grupo detentor dos meios da coerção (no caso, ilegitimamente) utiliza a força para impor um conjunto particular e extremante controverso de valores na população, desrespeitando a nossa capacidade de conceber e revisar as crenças e valores importantes que endossamos ao longo de nossas vidas.

O princípio de neutralidade, portanto, é uma forma de justificar uma convicção amplamente partilhada em sociedade democrática, a saber, um ambiente escolar pluralista e sem autoritarismo.

Infelizmente não é esse o ambiente escolar proposto pelo grupo de advogados organizados ao redor do Movimento Escola sem Partido. A despeito da similaridade de vocabulário com valores liberais, a escola sem partido não defende nem o pluralismo nem a recusa do autoritarismo, a despeito de justificar seus argumentos por meio do princípio de neutralidade (o principal objetivo segundo seu programa seria o de acabar com a "doutrinação nas escolas").

Gostemos ou não do princípio liberal de neutralidade e, como eu disse anteriormente, existem objeções importantes a ele, a Escola sem Partido não é compatível o com o ideal de neutralidade. Arrisco a dizer que, na verdade, as ideias defendidas pelo movimento são melhores descritas como uma concepção conservadora sobre o papel da educação em uma sociedade democrática em alguns casos mais próxima da educação cívica dos militares do que de qualquer forma de liberalismo conhecido.

É difícil explicar por que o movimento tem recebido tanta atenção tanto da na mídia como por parte da classe política. Entre seus apoiadores estão o atual ministro interino da educação do DEM, famoso por ter indicado um acusado de duplo homicídio para presidir a comissão do congresso contra o crime organizado, empresários paulistas ligados ao PMDB e um ex-ator de filmes pornográficos. Frases de mau gosto como "a pedofilia vai a escola" e "cartilha para zumbis", uma submissão incoerente às formulas constitucionais norte-americanas e um preconceito evidente contra estudantes de escolas públicas (um dos apoiadores do movimento chegou a descrever o ensino púbico como um "centro de recrutamento de traficantes") caracterizam boa parte das "discussões" promovidas pelos seus organizadores. Mesmo assim, estima-se que em nada menos do que menos nove estados já existem projetos de lei influenciados pela Escola sem Partido.

Como explicar essa popularidade? Meu palpite é que a principal força da Escola sem Partido está na defesa do princípio de neutralidade do estado aplicado à educação. Ou melhor, do uso dessa linguagem para os objetivos de seus criadores.

Segundo as carta de intenções do grupo,

"[n]uma sociedade livre, as escolas deveriam funcionar como centros de produção e difusão do conhecimento, abertos às mais diversas perspectivas de investigação e capazes, por isso, de refletir, com neutralidade e equilíbrio, os infinitos matizes da realidade. No Brasil, entretanto, a despeito da mais ampla liberdade, boa parte das escolas, tanto públicas, como particulares, lamentavelmente já não cumpre esse papel. Vítimas do assédio de grupos e correntes políticas e ideológicas com pretensões claramente hegemônicas, essas escolas se transformaram em meras caixas de ressonância das doutrinas e das agendas desses grupos e dessas correntes. A imensa maioria dos educadores e das autoridades, quando não promove ou apoia a doutrinação, ignora culposamente o problema ou se recusa a admiti-lo, por cumplicidade, conveniência ou covardia". 
Tal como o interpreto, o objetivo do grupo é impedir a doutrinação de estudantes ("doutrinação política e ideológica dos alunos [e alunas?] pelos professores [e professoras?]") e combater a "usurpação dos direitos dos pais [e mães?] na educação moral e religiosa dos seus filhos [e filhas?]" (ver aqui). Isso seria mais evidente especialmente em relação às questões morais controversas como religião política e sexualidade. A luta contra a doutrinação seria alcançada, segundo a Escola sem Partido, por meio de uma aplicação estrita da neutralidade: caberia ao professor ou professora ser "neutro" ao ter de lidar com essas questões, evitando abordar qualquer questão religiosa, política ou sexual em sala de aula e, consequentemente, evitando a exposição de seus alunos a alunas a uma visão particular de moralidade pessoal à qual as famílias dos estudantes recusariam.

Se esse é o caso, então o grande problema por trás da concepção da Escola sem Partido é uma confusão grave entre dois sentidos de neutralidade. 

Seguindo a formulação corrente na teoria política podemos chamar, respectivamente, esses dois sentidos de neutralidade (i) de neutralidade de resultados ou efeitos e (ii) neutralidade de justificação. Em linhas gerais, a neutralidade de efeitos demanda que o objetivo de uma decisão legítima seja a criação de um padrão neutro entre as diferentes perspectivas em um dado grupo. A neutralidade é um objetivo a ser realizado por meio do agente do estado (no caso em questão, pelo professor ou professora). A neutralidade de justificação, por outro lado, impõe restrições ao modo como as decisões do agente do estado são tomadas, sendo o resultado dessas decisões irrelevantes do ponto de vista do princípio.

A única interpretação possível de neutralidade presente no princípio liberal é a (ii), a neutralidade de justificação. Isso por dois motivos mais ou menos óbvios uma vez que refletimos sobre seu funcionamento. Em primeiro lugar, porque a neutralidade de resultados é incoerente. Qualquer decisão, inclusive a decisão de não decidir, afeta o equilíbrio de concepções morais presentes em um determinado grupo. Não abordar problemas de gênero, nesse sentido, seria tão parcial do ponto de vista de um casal de pais homossexuais quanto seria, ao contrário, abordar a questão para pais e mães ultra-religiosos. 

Contudo, ainda que fosse coerente, provavelmente a neutralidade de resultado seria indesejável de um ponto de vista liberal. A neutralidade de resultados exigiria ao final uma forma de imposição de crença ou valores particulares, a neutralidade, sobre os cidadãos e cidadãs. Lembremos que o objetivo liberal é reconhecer e respeitar a diversidade de identidades e valores presentes em uma sociedade e que, muitas vezes, essas identidades e valores são contraditórios entre si. Isso significa que não há solução possível para os desentendimentos advindos dessa diversidade. A solução, do ponto de vista liberal, é não endossar uma doutrina particular nem que essa doutrina seja a própria neutralidade.  A própria ideia de impor um padrão homogêneo de identidade por meio do aparato coercitivo do estado é frontalmente contrário aos valores liberais. 

É justamente a confusão entre os dois sentidos de neutralidade que nos leva a falar em um princípio de imparcialidade, ou invés de neutralidade. Uma decisão é imparcial se, mas apenas se, ela puder ser justificada sem apelar para as alegadas superioridades intrínsecas de concepções morais particulares (inclusive da neutralidade). 

Alguns exemplos de aplicação do princípio pode nos ajudar a entender melhor essa diferença. Não fica muito claro se o problema principal para a Escola sem Partido é com o conteúdo pedagógico oferecido - isto é, aquilo que os professores ensinam - ou diz respeito ao comportamento dos professores e professoras - isto é, como os profissionais de educação abordam esses conteúdos em sala de aula. Tendo em vista a falta de precisão sobre o assunto vou considerar ambos os cenários como exemplos dos dois sentidos de neutralidade.

Primeiro exemplo: comportamento

Uma aluna evangélica é vítima de comentários e ameaças intolerantes a respeito de sua religião e o modo de vida de sua família. Um grupo de alunos católicos (majoritário) utiliza a religião da aluna como justificada para descriminá-la em sala de aula e ofendê-la durante o convívio com os demais alunos da escola. Devido a gravidade da situação, cabe ao professor tomar uma atitude. Qual neutralidade seria apropriada nesse caso?

No primeiro sentido de neutralidade, cabe ao professor obter um resultado, a neutralidade de pontos de vista. A única forma possível de obter isso sem promover suas concepções pessoais de religião é suprimindo qualquer menção à religião na sala de aula. A partir daquele momento está instituído, digamos, uma "política de silêncio" em relação ao assunto: nenhuma forma de religião (ou ausência de religião) poderá ser abordada ou discutida a fim de garantir a neutralidade. Mas percebamos que o silencio também é parcial: ele é omisso em relação à intolerância sofrida pela aluna.

A neutralidade de justificação oferece outra abordagem, radicalmente diferente. Uma vez que ninguém deveria ser tratado com inferioridade em relação a sua forma de vida ou valores pessoais, cabe ao professor abordar a questão de um ponto de vista imparcial. A melhor forma de fazer isso é apresentando aos alunos diferentes formas de religião as quais a classe, e provavelmente, a maioria católica, pode não estar plenamente familiarizadas, e mostrando a necessidade, mas também a dificuldade, de estabelecer formas de respeito em meio a diversidade. Notemos que não há nada "parcial" nessa proposta: nenhuma forma de vida religiosa foi promovida e, diferentemente do modelo anterior, obteve-se um resultado valioso: o tratamento da intolerância religiosa entre futuros cidadãos e cidadãs. 

Segundo exemplo: conteúdo.  

Uma professora de biologia aborda a teoria da evolução das espécies. Ao introduzir a revolução darwiniana, um grupo de mães religiosas utiliza um dos modelos de "notificação extrajudicial" fornecido pela Escola sem Partido para intimidar a professora tendo por argumento que seus filhos disseram em um encontro de família que "não foi deus quem criou os seres humanos".

A neutralidade de resultados nos abrigaria, mais uma vez, a silenciar a professora. Uma vez que se trata de um conteúdo didático importante o qual os estudantes não podem prescindir em suas vidas, dois cenários são propostos: decide-se que, ou bem as alunas religiosas não participem mais das aulas de biologia, ou que a professora de biologia ensine a criação bíblica com o mesmo peso que a teoria da evolução. Mas notemos que as duas escolha são claramente parciais em favor da concepção religiosa dos estudantes afetados. Primeiro por que isenta certos estudantes do conteúdo pedagógico (o que, na verdade, prejudica as alunas) e segundo porque torna uma religião particular uma forma de conhecimento científico.

Já a neutralidade de justificação demanda um outro tratamento. Cabe a professora de biologia apresentar a teoria da evolução da melhor forma possível, isto é, enquanto uma teoria científica amplamente estabelecida, abordando suas implicações históricas para outras teorias rivais à época (como a da criação bíblica) que acabaram por ser refutadas por Darwin como uma explicação científica para o surgimento das espécies. Contudo, o princípio também exige da professora que aponte as diferenças entre ciência e outras formas de discurso (como a religião), que contam com regras de inferências e padrões de comprovação próprios. O darwinismo não tornou a religião proibida nem nos obriga a sermos ateus. Essa é uma verdade na sociedade e é uma verdade na sala de aula. Mais uma vez, a neutralidade de justificação demanda uma abordagem contrária à política do silêncio  e tem como consequência positiva a tentativa de estabelecer formas de convívio respeitoso em meio a diversidade. 

Podemos ver, portanto, como funciona o uso distorcido do princípio de neutralidade pela Escola sem Partido e, particularmente, como esse uso se encaixa na definição de propaganda oferecida no começo do texto. O objetivo é impor um silenciamento ao mesmo tempo extremante artificial para um ambiente de aprendizado, e autoritário do ponto de vista da diversidade, na tentativa (inócua na minha opinião) de proteger concepções morais particulares do convívio com outras formas de vida encontradas na sociedade, convívio esse indiscutível do ponto de vista dos valores liberais. 

Na verdade, se a minha interpretação dos objetivos da Escola sem Partido faz sentido, quem estaria ameaçando "o direito de educação moral" tão valorizado pelos criadores do movimento é a própria concepção de uma sociedade pluralista. O fato de que o fortalecimento dessas ideias coincide com o surgimento, sem precedentes em nossa história recente do país, de novas identidades religiosas e sexuais, e com os efeitos da mobilidade social e, consequentemente, da introdução de diferentes perspectivas sociais em ambientes escolares, até pouco tempo relativamente segregados, nos faz pensar que o verdadeiro objetivo da Escola sem Partido é apenas o de preservar modos de vida privilegiados socialmente. Valores até então indiscutíveis e, portanto, facilmente naturalizados pelas práticas sociais, nas instituições de ensino no país. 

Qualquer forma de silenciamento é anti-liberal. Seja ele em nome da neutralidade, da segurança nacional ou do "culto à Pátria". Invariavelmente, políticas de silenciamento acabam por funcionar no longo prazo como uma forma de manutenção do status quo - no nosso caso, um status quo injusto e profundamente anit-liberal em relação à minorias culturais. Ao utilizar uma versão distorcida de neutralidade, o movimento Escola sem Partido representa, infelizmente, apenas mais uma metamorfose da antiga causa conservadora: utilizar a lei e a coerção pública para reprimir formas de vida incompatíveis com o projeto particular de sociedade concebido pela, e defendido para, a elite cultural brasileira. Projeto esse que, tendo o princípio de neutralidade do nosso lado, só podemos rejeitar.


Referências sugeridas:

Reunião de artigos importantes sobre tolerância e imparcialidade organizado por Denilson Werle como trabalhos de Thomas Scanlon, Bernard Williams, Rainer Forst e Álvaro de Vita. 

O filósofo Charles Larmore foi um dos principais responsáveis por estabelecer os dois sentidos de neutralidade.

Reunião de artigos sobre o princípio de neutralidade tendo como objetivo analisar alguns de seus limites e propor novas aplicações.

Uma discussão com a antropóloga Paula Montero, o cientista político Cícero Araújo e Lucas Petroni - este que vos fala - sobre os diferentes significados do princípio de tolerância na história moderna. 

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Notas de leitura sobre Michel Foucault

O cientista político Andrei Koerner (Unicamp) publicou na última edição da RBCS uma resenha sobre as obras completas de Michel Foucault, publicadas, por sua vez, no ano passado na França. Na resenha, Koerner destaca os primeiros cursos do filósofo francês no Collège de France (traduzidos para o português como Aulas sobre a vontade de saber) e, em especial, para o momento no qual Foucault inicia sua pesquisa sobre os diferentes discursos de verdade como uma forma de poder - momento conhecido entre os especialistas em Foucault como a passagem de uma arqueologia dos discursos, que teria por objetivo a crítica filosófica do saber científico, para a genealogia das práticas de poder, voltada para a explicação do surgimento de novas formas de controle e dominação social. 

Para Koerner, a mudança de perspectiva na obra de Foucault não seria resultado de um "fracasso metodológico" do enfoque arqueológico (tal como sustentam, por exemplo, Dreifuss e Rabinow), mas sim de uma nova compreensão, influenciada sobretudo pelos argumentos de Nietzsche, do papel central que as práticas sociais e instituições possuem na criação e manutenção de discursos de verdade. Ou seja, nessas aulas iniciais Foucault teria "trazido para dentro" de suas análises históricas pela primeira vez relações concretas de poder e controle social. O que resultaria alguns anos depois, especialmente a partir de Vigiar e Punir (1975), em uma das principais contribuições de Foucault para a filosofia contemporânea, a saber, que relações de poder não são apenas negativas ou repressivas, como geralmente pensado pela filosofia política convencional, mas também estratégicas e produtivas, ou seja, capazes de criar novas formas de comportamento e atitude tanto quanto formas de exclusão e opressão (ver aqui outro post sobre o assunto).

Não deixa de ser curioso, como o próprio resenhista reconhece no texto, que Foucault fosse contrário a publicação de suas obras completas após a sua morte (ocorrida em 1984). Nada mais coerente vindo de um filósofo que se esforçou mais do que nenhum outro no século XX para combater aquilo que entendia como a ilusão do indivíduo.






[...] 

As Aulas sobre a vontade de saber encontram-se em um momento de inflexão do trabalho de Foucault entreL’archéologie du savoir e Surveiller et punir. O filósofo destacou em diversas ocasiões as diferenças entre as abordagens, pois o método arqueológico se coloca no eixo da verdade e tem propósito descritivo, enquanto a genealogia se coloca no eixo do poder e com objetivo explicativo. Para Dreifuss e Rabinow (1984), a mudança resultou do fracasso metodológico da arqueologia, porque a proposta de descrição formal das práticas discursivas não compreendia as relações de poder na transformação daquelas práticas e não fundamentava o papel crítico do arqueólogo. Esse problema explicaria o hiato de seis anos entre a publicação dos dois livros, cujas diferenças resultariam da decisão de Foucault de realinhar seu projeto sobre o pensamento de Nietzsche. Daniel Defert (2014) afirma que as duas abordagens são partes complementares de um mesmo complexo de problemas sobre os quais o filósofo se debruçou desde, pelo menos, a elaboração da Histoire de la folie. O propósito nietzschiano da arqueologia é indubitável, e o termo genealogia já aparece nos trabalhos anteriores a 1975. Mas em L’ordre du discours e nas Aulas sobre a vontade de saber ele se refere à genealogia do saber, ou da verdade, complementar à análise crítica da filosofia, cujo objetivo seria fazer a história da passagem das formas distintas de saber para o discurso da verdade.

A questão fica mais clara se levarmos em conta que ele pensa as relações entre práticas discursivas e não discursivas de forma distinta nos trabalhos anteriores e posteriores ao início dos anos de 1970. Nos primeiros, Foucault tinha como foco os saberes como práticas discursivas e as instituições apareciam como a sua concreção ou como seus suportes, ao passo que as outras práticas sociais (não discursivas) apareciam como elemento geral, um dado de certa forma exterior, um contexto, cujas modificações poderiam ter consequências para os saberes. Em L’ordre du discours, as instituições não são mais expressão do discurso, mas sua condição de possibilidade, ou melhor, de seu bloqueio (Mélès 2015). É a partir de Surveiller et punir que as relações de saber e poder passam a ser a base para a análise da formação e das transformações das práticas discursivas, das técnicas de disciplina dos corpos e de toda a tecnologia de poder.

Mas até o início dos anos de 1970 Foucault adota o que ele chama de concepção jurídica e “negativa” do poder. Ela é evidente em L’ordre du discours, em que o discurso da verdade produz efeitos de exclusão, controle ou limitação sobre a produção, a circulação e a recepção dos saberes. Foucault passou a analisar a dimensão estratégica e produtiva das relações de poder quando revisou Histoire de la folie e planejou ampliar o período analisado. Propôs-se a substituir a noção de violência pela de microfísica e deslocar o foco da instituição, do modelo familiar e do aparelho de Estado para a dinâmica das táticas e das redes de poder no jogo móvel das forças (Bert 2015. A expressão mais completa da passagem para a genealogia do poder está emLa volonté de savoir (1976), em que as relações de saber e poder passam ao interior dos corpos, na maneira pela qual os agentes se constituem como indivíduos disciplinados e sujeitos de desejo (Senellart 2015).


Chamada: II Colóquio de História da Filosofia Política (UMinho)

O Grupo de Teoria Política do Minho está recebendo inscrições para o seu segundo colóquio anual de história da filosofia política e moral, que será realizado nos dias 12 e 13 de janeiro (2017). A cientista política Ruth Grant (Duke) será a palestrante convidada do evento. Grant tem como área de pesquisa a história da filosofia moderna e, mais recentemente, tem publicado alguns trabalhos interessantes sobre a ética (ou não) dos incentivos econômicos (uma entrevista pode ser lida aqui). O prazo para o envio de resumos termina no dia 15 de setembro

Mais informações podem ser encontradas na chamada abaixo e no site do evento


II BRAGA COLLOQUIUM IN THE HISTORY OF MORAL AND POLITICAL PHILOSOPHY

Lying and Hypocrisy in Politics and Morality”

University of Minho
Braga – Portugal
12-13 January 2017

Keynote speaker
Ruth W. Grant (Duke University)


Call for papers

The Political Theory Group of the University of Minho is delighted to announce the II Braga Colloquium in the History of Moral and Political Philosophy: an international annual conference held every year in January at the University of Minho in Braga, Portugal. The purpose of this conference series is to promote the study of the tradition of political and moral philosophy and its legacy in shaping our institutions, culture and beliefs. In this important respect, the conference series will focus on how this tradition can contribute to tackling the challenges our societies are facing today. Every year the conference will focus on a specific theme, which will be chosen by taking in consideration the current political situation in Europe (and beyond).

In line with the spirit behind this new series of conferences, the second annual Braga Colloquium in the History of Moral and Political Philosophy will be dedicated to exploring the themes of "Lying and Hypocrisy in Politics and Morality."

“No one has ever doubted that truth and politics are on rather bad terms with each other, and no one, as far as I know, has ever counted truthfulness among the political virtues. Lies have always been regarded as necessary and justifiable tools not only of the politician’s or the demagogue’s but also of the statesman’s trade.”
(Hannah Arendt)

Hypocrisy, though inherently unattractive, is also more or less inevitable in most political settings. Political life is often a world ethically apart from normal human interactions. This contributes, however, to the creation of a cleavage between citizens and politicians. Those citizens who are disaffected with democracy and politicians do not question only their competence: they doubt their promises, because they question the quality of the political class in terms of their truthfulness and basic honesty, and this seems to hinder citizens’ ability to judge politicians. This problem is magnified in contemporary liberal democracies: a political system that, on the one hand, has transparency as one of its foundational values, and on the other, that is deeply influenced by the media and logics of spectacularization as it promotes a continuous search of consent and electoral competition. The desire to cut oneself off from political hypocrisy—by denouncing it, owning up to it, or seeking some sort of insulation from it—reminds us not to approach the problem of hypocrisy with false expectations about what can be achieved, ignoring the nuances that pervade political life. 

We should not conflate the moral and political realms. Yet there is something both ethically and politically troubling about the ease with which modern political thinkers isolate norms of citizenship from the meaning and purpose of our lives as a whole: this habit of compartmentalizing “citizenship talk” from more holistic ethical aspirations discourages serious reflection on the ethical basis of civic life, an essential safeguard against the rise of manipulative and self-serving political ideologies.

We invite scholars interested in these topics to propose papers that interrogate the history of moral and political thought in order to illuminate our current predicament.

We especially hope for communications on ancient, modern, and contemporary thought addressing themes such as:
•    The ethical value of citizenship;

•    The value of integrity in the social and political order;

•    The uses of hypocrisy in political life;

•    The role and nuances of political deceit and the need for compromises;

•    The replacement of the people’s voice through elections by the eyes of the people;

•    Citizens as spectators of politics;

These topics are, however, no more than suggestions, and we encourage the most diverse approaches to the problem.

Submission Guidelines

Abstracts, of no more than 500 words, should be sent to: 


Deadline:  15th September 2016

In addition to the abstract, please include in your proposal your academic titlenameaffiliation, and the title of your contribution

The presentations at the conference will be 20 minutes long with 20 minutes reserved for discussion.

The official language of the conference will be English

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Pós-doutorado no Programa Max Weber (2016/2017)

O Programa Max Weber, localizado no Instituto Universitário Europeu (EUI), em Floresça, está recebendo candidaturas de pós-doutorado para o período 2016/2017. Coordenado por Richard Bellamy (EUI), o programa oferece anualmente cerca de 50 bolsas (2000 euros) de um ou dois anos para pesquisadores/as nas áreas de ciências sociais, história, economia e teoria política. Trata-se de um dos melhores centros de pesquisa do mundo de teoria política. O prazo de inscrição termina 25 de outubro

Mais informações podem ser encontradas nos links abaixo:


2016-2017 Max Weber Post-doctoral Positions (EUI)


Applications are now open for the 2017/18 entry to the Max Weber Programme at the European University Institute (EUI) in Florence, Italy. Amongst the largest, most prestigious and successful post doctoral programmes in the historical and social sciences, and located in one of the most beautiful settings, with truly outstanding research facilities, we offer from 50-60 fully funded 1 and 2 year post doctoral fellowships to applicants from anywhere in the world in the fields of economics, history, law and social and political sciences. All areas and types of research within these fields are considered, including all forms of legal, social, economic, historical  and political thought  – both past and present. Last year 98% of Fellows found an academic position on completing the Fellowship. 
To find out more about the programme and how to apply, go to:
Applications close on 25 October 2016

sexta-feira, 8 de julho de 2016

A estranha morte do neoliberalismo

De todos os lugares dos quais poderíamos esperar receber a notícia da morte do neoliberalismo, nenhum poderia ser tão surpreendente quanto a Finance & Development (F&D), a publicação científica do FMI. Praticamente todos os movimentos sociais, partidos políticos de esquerda e economistas dissidentes ao redor do mundo concordam em discordar da chamada "agenda neoliberal" adota pelas principais instituições financeiras mundiais e, sobretudo pelo FMI. Uma agenda normalmente imposta como condições de colaboração econômica entre seus países membros. É verdade que o nome não é adotado por seus defensores, funcionamento mais como uma acusação do que como uma descrição, e que a revista não representa a posição oficial da instituição. Mas, mesmo assim, não deixa de espantar encontrar a morte intelectual do neoliberalismo em seu próprio local de nascimento ideológico. 

No artigo Neoliberalism: Oversold? escrito em conjunto pelos economistas Jonathan Ostry, Prakash Loungani e Davide Furceri, todos membros da divisão de pesquisa do Fundo Monetário Internacional, os autores argumentam de modo contundente contra duas políticas econômicas centrais da agenda neoliberal: (i) a liberalização do mercado de capitais e (ii) e as exigências da consolidação fiscal (ou medidas de austeridade fiscal). Se o artigo de Ostry & alii estiver correto, e tudo indica que está, movimentos anti-neoliberal ao redor do mundo passaram a contar com um aliado inesperado: a própria economia mainstream. 

Antes de passar para os argumentos do artigo, pode ser útil tentar uma definição preliminar do que estou chamando de neoliberalismo. Deixando de lado usos políticos ou históricos, podemos definir a agenda neoliberal na economia política como um consenso entre economistas e formadores de políticas econômicas, iniciado em meados dos anos 80 e amparado intelectualmente nas obras de economistas-filósofos como Milton Friedman and James Buchanan, em torno duas grandes teses macroeconômicas relacionadas ao crescimento econômico. 

A primeira tese afirma que o aumento da competição econômica, seja nos diversos setores da econômica nacional, seja por meio da abertura das economias nacionais para o mercado mundial de capitais, é uma receita de sucesso para o crescimento econômico duradouro (crescimento esse que, para as então chamadas economias "subdesenvolvidas" representava a possibilidade de alcançar a produção econômica e o desenvolvimento social dos países "desenvolvidos"). A segunda tese afirma que, por razões políticas, o estado desempenha um papel muito maior seria o ideal nas economias contemporâneas, o que, novamente, impediria um crescimento econômico sustentado. Privatizar suas atribuições e obter a chamada consolidação fiscal das contas públicas seriam as duas formas mais recomendadas para corrigir esse problema. 

Em suma, segundo a agenda neoliberal, a regulação da economia e a provisão pública de serviços (incluindo a redistribuição de recursos econômicos) seriam os principais entraves ao desenvolvimento econômico mundial 

Novamente: os defensores dessas duas teses não se auto-descrevem como neoliberais. Eles tendem a assumir uma variante mais simpática amparada nas retóricas da cientificidade dos dados econômicos e da dura, porém necessária, responsabilidade dos gastos públicos. Como podemos ver no gráfico abaixo, a agenda neoliberal teve sucesso em liberalizar as economias nacionais. Além disso, a política da austeridade influenciada pelos trabalhos de economistas neoliberais representa a principal concepção de economia em muitas das democracias liberais. 


Mudança da política econômica mundial a partir dos anos 80: abertura e desregulamentação (Ostry & ali, 2016). O índice mede a introdução de mecanismos de competição em diferentes partes da economia nacional. 

O que Ostry & alii. mostram em sua pesquisa diz respeito aos resultados empíricos de duas políticas neoliberais específicas: a desregulamentação dos mercados nacionais de capitais, um corolário amplamente aceito da primeira tese, e a redução do déficit público, um corolário da segunda. Vejamos cada um dos resultados em sequência.

Em primeiro lugar, os autores mostram que a relação entre abertura economia, de um lado, e crescimento econômico, de outro, é no melhor dos casos uma relação dúbia:

The link between financial openness and economic growth is complex. Some capital inflows, such as foreign direct investment—which may include a transfer of technology or human capital—do seem to boost long-term growth. But the impact of other flows—such as portfolio investment and banking and especially hot, or speculative, debt inflows—seem neither to boost growth nor allow the country to better share risks with its trading partners [....]. This suggests that the growth and risk-sharing benefits of capital flows depend on which type of flow is being considered; it may also depend on the nature of supporting institutions and policies.­

Ou seja, é extremamente difícil afirmar que existe uma correlação de longo prazo entre abertura do mercado nacional ao capital estrangeiro e crescimento econômico duradouro (o tão sonhado "desenvolvimento"). Isso porque, segundo os autores, os custos da instabilidade econômica e cambial e os impactos das crises periódicas nas economias emergentes ultrapassam, na média, os ganhos imediatos do fluxo de capital estrangeiro. Além disso, como já havia sido mostrado por Fuceri e Loungani em outro trabalho, uma abertura financeira sem mecanismos de proteção tende a aumentar a desigualdade econômica o que, por sua vez, também ameaça a perspectiva de crescimento econômico sustentado. 

Isso não significa que a abertura econômica é sempre ruim, já que existem outras boas razões para isso, como, por exemplo, a participação no mercado de tecnologia. Mas o resultado nos leva a reconsiderar seriamente a tese de que a abertura irrestrita dos mercados nacionais (especialmente em países em desenvolvimento) seja uma receita de sucesso para o crescimento econômico de longo prazo. 

O segundo fracasso da agenda neoliberal diz respeito às políticas de austeridade. Por décadas, economistas tem insistido que dívidas públicas elevadas são péssimas para o crescimento econômico mesmo em países com alto grau de consolidação fiscal. Essa é a famosa conclusão dos trabalhos do economista de Harvard Alberto Alesina, segundo a qual, consolidações fiscais são expansionárias  - trabalhos que, diga-se de passagem, ficaram notórios na academia por serem, no mínimo "descuidados" em termos metodológicos (ver aqui um bom artigo sobre as "peripécias" econométricas de Alesina e como elas ajudaram a embasar decisões políticas conservadores nos EUA e na Europa). Alesina está errado. Elas não são expansionárias. Ao contrário: episódios de consolidação fiscal em países ricos foram seguidos, em média, pela queda e não pelo aumento da produção econômica. 

A razão para isso parece ser bem simples: a diminuição drástica do gosto público, a forma privilegiada de reduzir drasticamente o endividamento público, leva a um aumento da desigualdade o que, por sua vez, impede o crescimento econômico sustável:

The increase in inequality engendered by financial openness and austerity might itself undercut growth, the very thing that the neoliberal agenda is intent on boosting. There is now strong evidence that inequality can significantly lower both the level and the durability of growth [...] The evidence of the economic damage from inequality suggests that policymakers should be more open to redistribution than they are. 

Esse ponto é importante e merece ser ressaltado. Normalmente, críticos da ortodoxia econômica tendem a criticar defensores da austeridade ou de políticas de tipo trickle-down por representarem os interesses das elites econômicas preocupadas em manter seu poder econômico em épocas de vacas magras. Talvez isso possa ser o caso. Contudo, precisamos separar isso de uma outra proposição, a saber, o que a teoria da austeridade afirma que faz. Uma teoria só pode ser refutada quando refutada a luz de sua melhor formulação. 

Ao propor a proteção econômica dos mais ricos, defensores da austeridade acreditam que, com isso, estaremos beneficiando a todos e não apenas os mais ricos. Isso porque os lucros dos mais ricos tenderiam a escorrer pela economia abaixo aumentando a quantidade e a qualidade da remuneração dos trabalhadores. 

Ao rejeitar empiricamente essa proposição, o artigo soma-se a outros relatórios igualmente contundentes, como o documento da OECD publicado no ano passado, no qual o think tank das econômicas desenvolvidas reconhece a existência de uma "tendência secular" da diminuição da parcela dos ganhos provenientes do trabalho nas economias do G20. Segundo a OECD, a parcela de remuneração do trabalho diminui, em média, 0,3% ao ano entre 1980 e 2000 em comparação com a remuneração do capital. É verdade que, em termos econômicos, isso não significa necessariamente que as pessoas estão mais pobres nesses países já que isso depende de quantas pessoas obtém seus lucros a partir do capital. Contudo, como sabemos que a propriedade de capital é extremamente concentrada mesmo nas economias mais igualitárias do mundo, isso significa que  os quintis superiores da estrutura social estão se apropriando de uma parcela maior da produção nacional de riqueza em praticamente todos os países ricos do mundo. 

Na verdade, e esse é um ponto importante também para o artigo da F&D, a redução dos lucros na do trabalho na economia implicam que uma melhora no crescimento econômico não se traduzirá diretamente no aumento da renda dos trabalhadores, já que os ganhos passam a ser proporcionalmente canalizados pelos proprietários. Essa já uma realidade nos EUA pós-crise de 2009: ainda que o lucro corporativo em 2015 já tenha superado os níveis pré-crise, o que significa oficialmente o fim da recessão, a renda do norte-americano médio (um trabalhador) continua estagnada. Ou seja, mesmo que a ortodoxia neoliberal tenha, de fato, contribuído para a retomada do crescimento econômico (algo que os autores põem em suspeita), ela não estaria sendo capaz de beneficiar os trabalhadores, o que contradiz frontalmente os encantos políticos do neoliberalismo.

Em outras palavras: proteger economicamente os mais ricos no curto prazo não beneficia os mais pobres no longo prazo. Podemos provar então que a política austeridade não faz aquilo que ela própria afirma que faz.

Além dos argumentos propriamente econômicos, temos pelo menos duas outras boas razões para levar o artigo a sério. Primeiro, como já foi apontado anteriormente, o simples fato da maior publicação do FMI ter reconhecido a palavra neoliberalismo é algo digno de nota. Como sabemos, na política o poder de nomear os fatos importa bastante.

Finalmente, temos o caso brasileiro. É preciso notar nem tudo o que foi dito até aqui pode ser aplicado imediatamente ao Brasil, devido a dificuldade de consolidação fiscal pela qual passamos (os resultados do artigo procuram por em questão a ideia de austeridade em momentos normais da economia). Contudo, não é preciso ser um gênio da economia para perceber que 10 entre 10 economistas na folha de pagamento da família Marinho acreditam piamente nas duas teses atacadas pelo artigo de Ostry & ali.

Na verdade, a grande conclusão do artigo (pelo menos para este leitor brasileiro) é justamente a de que qualquer processo de consolidação fiscal deveria minimizar os impactos sobre os grupos economicamente menos favorecidos da sociedade, exatamente o contrário do que defende o consenso macroeconômico da direita brasileira, segundo a qual a consolidação fiscal no país passa necessariamente pelo empobrecimento imediato dos 90% de baixo da pirâmide social.

[F]iscal consolidation strategies—when they are needed—could be designed to minimize the adverse impact on low-income groups. But in some cases, the untoward distributional consequences will have to be remedied after they occur by using taxes and government spending to redistribute income. Fortunately, the fear that such policies will themselves necessarily hurt growth is unfounded 

A miséria não é o preço a se pagar pelo progresso econômico. Ao contrário, é a prova do seu fracasso. Se de fato temos um dever urgente de reestruturar nossa dívida pública (uma tese tão sujeita ao debate como qualquer outra) então talvez devamos fazer isso contra os 10%. Um ajuste fiscal em nome da justiça histórica e, agora segundo o próprio FMI, em nome da própria economia


Leituras:

- Ostry, Loungani & Furceri: "Neoliberalism: Oversold?" (F&D)

- Furceri & Loungani: "Capital Account Liberalization and Inequality" (IMF Working Paper)

- Krugman: How the case for austeriry has crumbled (NY Review)


quinta-feira, 7 de julho de 2016

Chamada: Ação, Agência e Responsabilidade (UNISINOS)

O Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNISINOS realizará seu encontro anual de filosofia entre os dias 25 e 28 de outubro. O evento terá como tema "Ação, Agência e Responsabilidade" e terá como palestrante convidados/as David Copp (Davis), Stelio Virvidakis (Atenas) e João Brum Torres (UCS). A programação completa pode ser encontrada no link abaixo.


O Colóquio Filosofia Unisinos é um evento anual, destinado aos alunos da pós-graduação e da graduação em filosofia da Unisinos, bem como é destinado aos acadêmicos de outras IES do Estado do Rio Grande do Sul e do Brasil. O tema da décima nona edição será: Ação, Agência e Responsabilidade. Queremos investigar quais as condições necessárias que um agente deve possuir para poder se atribuir responsabilidade moral a ele. E isso quer dizer: em que medida o agente deve estar em controle da própria ação para ele poder ser tomado como moralmente responsável. Os temas correlatos serão: livre-arbítrio, ação voluntária, controle de regulativo e de direcionamento, determinismo, indeterminismo e compatibilismo. Procuraremos integrar as pesquisas na área da filosofia, especialmente em história da filosofia, com o direito e a neurociência a fim de possibilitar um atualizado estado da arte sobre a questão.

Período do Evento: 25/28 de outubro
Período de Submissão: 9 de agosto a 17 de outubro
Envio de Resumo de para o email:
O Resumo deve ter de 1.000 a 2.000 caracteres (com espaço), com título, nome do autor, instituição e 3 palavras-chave

sábado, 2 de julho de 2016

List & Valentini: Liberdade como Independência

Christian List e Laura Valentini, ambos pesquisadores da London School of Economics, publicaram na última edição da Ethics um artigo sobre as diferentes definições de liberdade política na teoria política contemporânea (o artigo pode ser consultado abaixo). De modo simplificado, liberais e republicanos disputam o significado da liberdade a partir da diferença entre interferência e dominação. 

Para autores liberais, como Isaiah Berlin, o valor político da liberdade é melhor entendido quando definimos liberdade como a não-interferência nas ações dos indivíduos, qualquer que seja a fonte e as motivações por trás dessa interferência. Isso não significa, claro, que toda forma de interferência seja igualmente ruim (a lei é, ao mesmo tempo, uma forma de interferência sistemática sobre nossas ações e plenamente justificada), mas apenas que mesmo quando plenamente justificada, uma interferência nas decisões individuais continua sendo uma interferência. Para os liberais, pessoas livres são agentes que não encontram obstáculos efetivos para a realização de suas ações. 

Já para autores republicanos, como Philip Pettit, o verdadeiro valor da liberdade residiria em seu papel na luta contra formas de dominação social - daí o famoso slogan neorrepublicano da liberdade como não-dominação. Para garantir que uma relação não seja opressiva, que, por exemplo, um grupo não domine as ações de outro, precisamos garantir que não haja interferência sobre suas ações (tal como no modelo liberal) mas, além disso, que não exista também a possibilidade dessa interferência. Relações de dependência são formas típicas de falta de liberdade nas quais não existe necessariamente uma interferência efetiva nas ações do dependente. Republicanos insistem que a liberdade exige a garantia de não sermos sujeitos ao controle arbitrário de alguém mais poderoso do que nós e que, portanto, pessoas livres são aquelas que tomam suas decisões em contextos não-opressivos.

Além de uma reconstrução detalhada desse debate, o artigo de List & Valentini tem um objetivo propositivo: os autores procuram oferecer uma solução para disputa entre as duas concepções de liberdade a partir da ideia de "liberdade como independência". Para os autores, a tradição republicana acerta em exigir não apenas a não-interferência efetiva como condição para a liberdade, mas também a garantia de que tais decisões sejam tomadas em contextos de independência em relação a outras pessoas. Não poderíamos afirmar, por exemplo, que alguém prestes a morrer de inanição tome uma decisão "livre" ao aceitar uma formas de trabalho aviltante. Independência nesse caso significa não ser dependente de quem controla os recursos materiais necessários para a sobrevivência material. 

Contudo, segue o argumento, a tradição liberal estaria certa ao menos em relação a dificuldade em definir o que conta como formas de interferência "arbitrária" ou "não-arbitrária" sobre alguém - motivo pelo qual os liberais optam por um critério muito mais amplo do que conta como interferência, deixando de lado a causa dessa interferência. Isto é, a liberdade como independência, ao contrário da liberdade republicana, não depende de ideal político particular, como o autogoverno popular, de tal modo que ela possa funcionar também em outros contextos de liberdade. Além disso, List & Valentini procuram manter em sua formulação aquilo que poderíamos chamar de "desconfiança liberal" em relação às leis: mesmo leis totalmente legítimas, justificadas pela soberania popular, promovem uma forma de interferência em nossas ações.

Bem sucedido ou não, o objetivo da liberdade como independência de List & Valentini é manter uma definição "robusta" de liberdade sem termos que aceitar um critério, na opinião dos autores, excessivamente moralizante de opressão.


- List & Valentini: Freedom as Independence (Ethics)

Abstract: Much recent philosophical work on social freedom focuses on whether freedom should be understood as noninterference, in the liberal tradition associated with Isaiah Berlin, or as nondomination, in the republican tradition revived by Philip Pettit and Quentin Skinner. We defend a conception of freedom that lies between these two alternatives: freedom as independence. Like republican freedom, it demands the robust absence of relevant constraints on action. Unlike republican, and like liberal freedom, it is not moralized. We showcase the virtues of this conception and offer a novel map of the logical space in which different conceptions of freedom are located.