terça-feira, 27 de outubro de 2015

Waldron: Habermas e a tecnocracia européia

Jeremy Waldron (NYU) escreveu uma resenha para a NY Review sobre o último livro de Habermas, Na Esteira da Tecnocracia. Em The Vanishing Europe of Jurgen Habermas Waldron procura reconstruir os compromissos de Habermas em relação ao projeto supranacional europeu ressaltando filósofo alemão identifica como os "déficits democráticos" presente em sua origem e agravado após a crise grega. Contudo, a principal virtude do ensaio é a tentativa de Waldron de mostrar como cada uma das características da concepção as vezes extremamente abstrata e intricada de democracia deliberativa desenvolvida por Habermas encontra uma contraparte prática em sua avaliação das instituições políticas européias. Uma excelente leitura tanto para quem quer entrar em contato com as ideias de Habermas como para reavaliar a dimensão normativa de sua teoria.

[...]

Habermas’s model begins with something that entranced Immanuel Kant and Jean-Jacques Rousseau before him: the idea of self-legislation or political autonomy. In a democracy, laws are supposed to have legitimacy because the people to whom they are addressed are also their authors. Of course, our authorship of the laws that apply to us is offset by layers of institutional structure: elections, representation, majority decision, and the elaborate procedures that parliaments use to debate and enact a bill. Still, all of this is done in our name, and the institutional layers are supposed to be governed by a principle of political equality that gives each of us an equal say, direct or indirect, in the lawmaking process. In the final analysis these procedures are us, making laws for ourselves. 

To this model of people making laws for themselves, Habermas adds three additional layers. First, he frames the democratic process by emphasizing “deliberation.” There are millions of us— hundreds of millions in the EU—diverse and opinionated. We disagree about what laws we need or want. But democracy means not only that we vote on these questions, but that each of us has to face up to all the arguments there are for and against a given measure. In some hands, this element of deliberation is understood in a solitary way—one assembles the reasons in one’s head, so to speak, and reaches a conclusion for oneself about how to vote. But Habermas’s model is irreducibly a matter of dialogue. We make law for ourselves in the company of others—all others who are going to be obligated—and if we are to meet democratic standards we convince ourselves that a given set of laws is necessary, if it is, by listening respectfully to what others say about the interests and values of theirs that are at stake in the matter. 

A second layer concerns Habermas’s idea of rationality and values. When people talk to each other, they are not, as he conceives such conversation, just engaged in instrumental reasoning. They are presenting to each other everything that is important to them about the matters under discussion, including ultimate values and concerns that go way beyond the economic considerations that pervade technocratic thinking [...]  

The third thing that distinguishes Habermas’s model is an insistence that democratic deliberation may be understood entirely in terms of the processes that it involves. Most philosophers come to democratic theory not only with an idealized set of fair political procedures in mind but also with an idealized view about what should count as just or appropriate outcomes of these procedures. In the institutions they advocate—whether it is a system of representation or a constitutional court—they seek some sort of adjustment or compromise between democratic procedures and just outcomes. 


- Waldron: The Vanishing Europe of Jurgen Habermas (NY Review)

domingo, 18 de outubro de 2015

Sobre a declaração de Charles Koch: "Sou um liberal clássico"

Questionado a respeito de seus valores políticos, o polêmico bilionário norte-americano Charles Koch declarou, em uma rara entrevista para a TVque ele se considera "um liberal clássico":


Anthony Mason: "Você não se considera um republicano, certo?"

Charles Koch: "De jeito nenhum. Eu me considero um liberal clássico".

A aparição de Charles Koch no Sunday Morning, um dos programas de TV mais populares dos EUA, faz parte da recente campanha que Charles e seu irmão, o também bilionário David Koch, iniciaram perante a opinião pública norte-americana para tentar mudar a imagem da família e, consequentemente, de seu conglomerado empresarial do ramo do petróleo as Industrias KochPode-se dizer que eles terão muito trabalho pela frente. 

Nos EUA, o nome Koch é indissociável dos negócios escusos do ramo do petróleo mas também, sobretudo desde a eleição de Barack Obama, da interferência das grandes fortunas privadas no sistema político do país. Donos da segunda maior empresa privada dos EUA e com um patrimônio avaliado em torno de 43 bilhões de dólares - para cada um dos irmãos - o dinheiro dos Koch tem influenciado direta e indiretamente a agenda pública norte-americana. 

De modo direto, os irmãos representam a face mais visível do imenso lobby do petróleo em Washington (e na Fox News supostamente) atuando contra a regulação comercial e ecológica de combustíveis fósseis. Recentemente descobriu-se, por exemplo, que as Indústrias Koch junto com outra gigante do petróleo, a Exxom Mobil, financiaram o trabalho de grupos de cientistas ditos "negacionistas", isto é acadêmicos que rejeitam a tese do aquecimento global. Os resultados dessas pesquisas ajudaram a embasar os relatórios republicanos contrários às leis de regulação de emissão de gás carbônico no congresso. Além disso, a participação dos Koch nas campanhas eleitorais é de conhecimento comum nos EUA: os irmãos K. esperam gastar pelo menos 300 milhões de dólares em financiamento legal com o próximo candidato republicano. Por meio de grupos ligados ao Tea Party eles despejaram dinheiro nas cinco pré-candidaturas republicanas, com um importante  exceção: Donal Trump. O também bilionário Trump, esse do ramo da construção civil, disse publicamente que não irá aceitar dinheiro e, consequentemente, se recusou a ser, em suas palavras, mais uma "marionete" dos Koch.

Entretanto, a faceta mais interessante dos Koch talvez esteja em sua atuação indireta no mainstream político do país. Desde a eleição de Obama os irmãos K. tem assumido o papel de grandes mecenas do pensamento conservador nos EUA e, como veremos, além dele. Eles foram os principais idealizadores do prestigiado think tank conservador CATO Institute e de uma rede de associações engajadas na defesa das liberdades individuais e da promoção do livre-mercado e do repúdio à ação do Estado na economia, tais como a Atlas Economic Research Foundation e a Students for Liberty (a última iniciou uma campanha nacional entre os estudantes, após mais uma série de assassinatos em massa nas escolas, defendendo o direito incondicional de portar armas contra o que acreditam ser uma tentativa deliberada do governo dos EUA de enfraquecer os cidadãos frente ao governo). A criação do Tea Party, uma facção de extrema-direita dentro do partido Republicano,  talvez seja a face mais visível e, certamente, estridente do mecenato dos irmãos K. 

A rede dos Koch parece ter chegado também à America Latina e, especialmente, ao Brasil. É fato conhecido, por exemplo, que os irmãos apoiam os esforços dos movimentos pró-impeachment do governo Dilma (ver aqui e aqui a respeito da reconfiguração ideológica da nova direita no Brasil). Algumas das lideranças do Movimento Brasil Livre passaram pelos quadros de formação de lideranças da Atlas e a própria versão nacional dos Estudantes pela Liberdade é uma filial da matriz norte-americana. Além disso, tal como ocorre com a Fox News nos EUA, a Rede K. tem se esforçado para criar quadros na imprensa brasileira por meio do Instituto Millenium.

Teorias da conspiração a parte, gostaria de voltar à declaração de Charles K a respeito de ser, ou não ser, um liberal clássico. No terreno das ideologias políticas a declaração é relevante. Com ela Charles K. está dizendo: "sou um liberal clássico e não um republicano convencional". Trata-se de uma tentativa de separar os ideais defendidos pela Franquia K. do conservadorismo (tradicional) norte-americano. O último é mais voltado para o que podemos chamar de visão "grande América", seja ela militar ou econômica, e para a manutenção da ordem social e da unidade nacional do que propriamente para a defesa dos valores de livre-mercado e da maximização das oportunidades sociais. Se um conservador norte-americano apoia leis contrárias ao matrimônio entre pessoas do mesmo sexo, ou leis mais duras contra a criminalidade, é de se esperar que um liberal clássico como Koch rejeite ambas as propostas em nome da proteção incondicional das liberdades individuais. 


III Colóquio Internacional Sistema Deliberativo e Mídia

O Grupo de Pesquisa em Mídia e Esfera Pública da UFMG convida a todos e todas para o III Colóquio Internacional sobre Deliberação e Mídia que acontecerá entre os dias 4 e 6 de novembro. O evento reunirá pesquisadores das áreas de ciência política e comunicação com o intuito de debater o papel da mídia na estruturação da esfera pública democrática. Entre os palestrantes confirmados estão Peter Dahlgren (Lund), John Parkinson (Griffith), Leonardo Avritzer (UFMG) e Ricardo Fabrino (UFMG). 

Agradeço a Renato Francisquini pelo envio do evento.



O III Colóquio Internacional: Sistema Deliberativo e Mídia Interconectada abordará a perspectiva sistêmica como agenda de pesquisa que têm guiado os estudos recentes num esforço de compreender a deliberação como um amplo processo social. Durante três dias, pesquisadores do Brasil, da Alemanha, Suécia, Suíça, Austrália e dos Estados Unidos estarão em Belo Horizonte para discutir questões teóricas e empíricas e  os novos desafios metodológicos dessa abordagem

Existem muitos estudos sobre o papel dos media na estruturação da esfera pública. No entanto, essas pesquisas raramente dialogam com a abordagem sistêmica de deliberação. Quais os papéis que diferentes tipos de media –  a comunicação de massa, a Internet e as redes sociais – exercem em debates públicos? Como acontece a mediação de arenas discursivas distintas? Quais as oportunidades e os constrangimentos  que os media oferecem para conectar as partes de um sistema  deliberativo? Quais as interseções entre práticas deliberativas e não deliberativas? Como observar e apreender a deliberação em configurações micro e macro?


Coordenadora:

Rousiley C. M. Maia
Universidade Federal de Minas Gerais
 
Grupo de Pesquisa em Mídia e Esfera Pública
Universidade Federal de Minas Gerais


Programação Completa


Mais informações:


Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - FAFICH/UFMG
Av. Antônio Carlos, 6627

Campus Pampulha - Sala 1031 - 1º andar
CEP: 31270-901 - Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

emeufmg@gmail.com
Tel: 31 3409-3031

Bolsa de pesquisa no Safra Center for Ethics (Harvard)

Estão abertas as inscrições para as bolsas de pesquisa 2016-2017 no Edmund Safra Center for Ethics da Universidade de Harvard. O centro de pesquisa, ligado a Kennedy School,  é dedicado ao fomento de pesquisas ligadas às áreas de ética e filosofia política, com foco em questões públicas contemporâneas.  O tema de pesquisa privilegiado nesta edição será Diversidade, Justiça e Democracia. Normalmente são oferecidas duas modalidades de bolsas para alunos que não sejam de Harvard: fellows-in-residence (para pós-doutores ou recém-professores) e graduate fellowships (para doutorados em andamento). Mais informações sobre os critérios de elegibilidade e os prazos de envio de propostas podem ser encontradas nos links abaixo: 


- Fellows-in-residence



The Edmond J. Safra Center for Ethics at Harvard University invites applications for the Fellows-in-Residence program under the direction of Professor Danielle Allen. The program brings together a small group of Fellows to work closely over the course of the year on pressing issues in ethics. The majority of Fellows will be selected in relation to an annual theme, but in each year some “open” slots will be reserved for applicants working on any issue in ethics. In each year, the goal will be to craft a cohort in which “thematic” fellows and “open” fellows will all find valuable intellectual partnerships to support and spur their work. For the 2016-17 academic year, the theme at the Edmond J. Safra Center for Ethics will again be Diversity, Justice, and Democracy. The purpose of this theme is to explore how to achieve fair and just forms of democratic life in conditions of significant demographic diversity.
More than 200 years into the modern experiment with democratic forms of rule, democratic aspirations continue to founder on the rocks of racial and ethnic hierarchies, and other patterns of domination constructed on social categorizations of difference. In the case of the U.S., African American disadvantage continues to be entrenched, fifty years after the Civil Rights Act of 1964 transformed the legal landscape; Latino disadvantage has also emerged as a pressing problem as has a low level of political engagement among Asian Americans. In Europe, we are witnessing the resurgence of the far-right, in response to dramatic demographic diversification, occurring simultaneously with economic instability. Civil war related to ethnic violence has devastated many African countries in recent years. India has the world’s largest affirmative action program and yet to cross caste and religious lines in marriage is to open oneself and one’s family to abuse and often murder by the locally dominant. These are just a small set of examples of the hard problems that currently define the political and ethical landscape of democracy in contexts of diversity.
The question of how to achieve fair and just forms of democratic life in conditions of significant demographic diversity must be tackled afresh, from the ground up. Importantly, pursuing answers to this question requires uniting normative and positive, or ethical and empirical, forms of expertise, through multi-disciplinary partnership. The ethics of diversity also intersect with important work in all of the professional schools. Conversations around this theme that unite faculty in the arts and sciences with faculty in the professional schools would be productive. And, of course, issues pertaining to the ethics of diversity constantly generate tensions for university campuses themselves. The theme should provide a context for advancing a research-based understanding of how college campuses too can do better at the ethics of diversity.
Eligibility: A broad range of researchers is invited to submit proposals to become residential Fellows. Tenured and untenured faculty are invited to participate. Postdoctoral applications are encouraged, as well as proposals from researchers in industry, government, or NGOs seeking sabbatical time to pursue research directly relevant to ethical issues. Applicants from any discipline or professional field will be considered. Each applicant should propose an individual research and/or writing project. Applicants must have a PhD, professional degree, or a minimum of 5 years of equivalent professional experience. The Fellowships are open to all regardless of citizenship.
Deadline: The deadline date for receipt of applications for projects beginning September 2016 is December 1, 2015.
Questions? Email us at applications@ethics.harvard.edu.

To ensure that progress in teaching and research in ethics will continue into the future, the Center trains younger scholars who are prepared to dedicate their careers to the study of practical ethics in a wide variety of subjects. The Graduate Fellowships in Ethics were established in 1990 with the support of the American Express Foundation, and subsequent gifts from Mrs. Lily Safra and Mr. Eugene P. Beard. This early expansion of the Center's mission provided a unique opportunity for graduate students writing dissertations or engaged in major research on topics in practical ethics. More than one hundred Graduate Fellowships have been awarded to Harvard-enrolled graduate and professional students.
In 2010, a generous gift from Mrs. Lily Safra endowed the Edmond J. Safra Graduate Fellowships in perpetuity, ensuring that the Center's role in training younger scholars and developing future leaders in ethics will continue as long as Harvard enduresThe Edmond J. Safra Graduate Fellowship program is directed by Professor Eric Beerbohm.

Emily Bromley, Graduate Fellowships Coordinator
Email: emily@ethics.harvard.edu

The application deadline for Graduate Fellowships beginning in September 2016 is November 16, 2015.
 Decisions will be sent by February 15, 2016.

Questions may be directed to emily@ethics.harvard.edu

domingo, 11 de outubro de 2015

As eleições norte-americanas são justas?

Por Lucas Petroni

É incontestável que a composição da sociedade norte-americana passa por uma transformação sem precedentes. O número absoluto de falantes de espanhol já é maior nos EUA do que na Espanha, a quantidade de mulheres solteiras nunca foi tão grande e o monopólio da família monogâmica está sendo colocada em questão por novas formas de relacionamento homoafetivo - recentemente a suprema corte no país decretou que leis estaduais contrárias ao casamento gay são inconstitucionais. Entretanto, a depender do funcionamento do seu sistema eleitoral, pouca coisa irá mudar nos próximos 4 anos seja quem for que venha ocupar a vaga na casa branca.

Segundo uma excelente matéria de capa do NY Times - matéria que nos lembre que, se os efeitos da concentração da mídia nos EUA são ruins, no Brasil eles são catastróficos para o debate público - apenas 158 famílias norte-americanas foram responsáveis, até o momento, por mais da metade do financiamento eleitoral da corrida presidencial no país (176 milhões de dólares aproximadamente) considerando ambos os partidos. Ou seja, 158 famílias tradicionais, monogâmicas, falantes de inglês e brancas ("nenhuma é negra", a matéria não deixa de frisar) de um universo de 120 milhões de unidades familiares já decidiram em alguma medida algumas das principais questões políticas na pauta do próximo presidente ou presidenta. 

Parece uma loucura? Pode ser pior. 

Dessas 158 famílias de milionários (reparem no gênero masculino) 130 apoiam a campanha republicana, contra apenas 20 democratas, e, juntas, elas dão um sentido literal ao que os sociólogos chamam de feudalismo constitucional, i. e. o processo de insulamento político dos mecanismos de mudança institucional contra adversários de fora do sistema. Várias dessas famílias são literalmente vizinhas: oito delas vivem em um mesmo bairro em Houston e duas na mesma rua em uma ilha-condomínio na Flórida. 





Não resta muita dúvida de que a influência da riqueza privada nas doações de campanha foi exacerbada por uma polêmica decisão da Suprema Corte do país em 2010, a chamada Citizens United vs. FEC, na qual ficou decidido que a primeira emenda à constituição (de 1791), proíbe que o Estado regule o quanto associações privadas, sindicatos e, principalmente, corporações podem participar do processo eleitoral. Nesse sentido as corporações, e as famílias que as controlam, deveriam ser entendidas como uma "pessoa".

Ronald Dworkin, um dos filósofos do direito mais importantes do século XX,  costumava se referir à Citizens United simplesmente como a "decisão devastadora" (ver aqui a troca de argumentos entre Dworkin e o advogado pró-decisão Floyd Abrams). Para entender o porquê da devastação, basta um pouco de matemática elementar: alguém como o bilionário do mercado financeiro Kenneth Griffin já doou cerca de 300 mil para os republicanos. A quantia por si só pode parecer exorbitante e com certeza ela aumentará a partir do ano que vem quando os democratas entrarem na corrida. Contudo, de acordo com os cálculos da agência de orçamento do congresso norte-americano, ela representaria apenas 22 dólares caso vertêssemos a fortuna mensal de 62 milhões de Griffin nos termos do orçamento médio de uma família norte-americana. O peso desproporcional da quantidade de recursos disponíveis para serem gastos no sistema político torna discutível o princípio de igualdade de oportunidades políticas entre os cidadãos. Supostamente em nome da liberdade de expressão, os juízes decidiram que 120 milhões de famílias não terão muita chance de pautar a agenda dos presenciáveis e que o montante de dinheiro privado na política norte-americana tem o direito de permanecerem opaco ao poder público. 

Mas poderíamos nos perguntar: não estaríamos exagerando um pouco o argumento? O que nos garante que as tais 158 famílias não estariam defendendo os interesses dos norte-americanos em geral, ao apoiarem (supostamente) bons governos? 

Em primeiro lugar, o papel do dinheiro privado nas campanhas é problemático tendo em vista não apenas a mudança de composição social mas também a recente escalda da desigualdade (ilustrada abaixo). Considerando que grande parte do lobby nesse caso trata justamente de impor limites à expansão de programas sociais e a diminuição de impostos no topo da pirâmide, tudo indica que os eleitores não devem esperar grandes mudanças de atitude do governo.




Além disso, e talvez mais importante, o resultado é trágico na medida em que reforça uma concepção amplamente assumida pelo senso comum a respeito dos eleitores norte-americanos mas que, quando analisada mais de perto, não se sustenta. Acredita-se que o eleitor ou eleitora médios não acreditem que o aumento da desigualdade seja um problema, ou ainda, que todo norte-americano é, em alguma sentido, "contra" o Estado de bem-estar social.

Isto é, talvez os eleitores simplesmente não queiram (democraticamente falando) aquilo que vim supondo desde o início: mudar os rumos do país. Contrariando essa concepção uma excelente pesquisa de 2013 conduzida pelo Pew Research Center mostrou que 66% dos norte-americanos acreditam que a desigualdade econômica teria aumentando nos 5 anos anteriores e que 61% acreditam que o sistema econômico do país favorece, sistematicamente, os mais ricos em detrimento dos mais pobres (55% dos republicanos entrevistados afirmaram que o sistema econômico era equitativo entre todos enquanto 75% dos democratas e 63% dos independentes afirmaram que ele favoreceria os mais ricos). 

Nunca poderíamos inferir desse fato que os eleitores concordem quanto as causas desse aumento ou, mais importante para fins eleitorais, quais são as melhores forma de reverter esse processo. Contudo, estima-se que 2/3 dos norte-americanos gostariam que as fortunas acima de 1 milhão de dólares fossem melhores taxadas enquanto 6 em cada 10 são a favor de mais intervenção política na redução da desigualdade social. Os EUA estão longe de serem um paraíso socialista em termos de expectativas - é verdade - mas uma atenção mais criteriosa fornece uma imagem bem diferente do país daquela apresentada nos editoriais de telejornais da rede Globo. Aqui também se luta por justiça social.

Em resumo: caso alguém queira mudar as coisas nos EUA, talvez seja melhor negócio conseguir um convite para uma festa de aniversário em River Oaks ou Indian Creek do que escrever um livro ou montar um comitê. Esqueça o trabalho chato de mobilizar pessoas em nome de uma causa ou de lutar por ideais. O cofre das campanhas tem endereço.

O único problema é que para chegar até festa você provavelmente terá que ser homem, falar inglês, ter estudado nas universidades de elite e - sobretudo - ser branco.


Leituras:

- Ny Times: Buying Power - From only 158 Families, Half the Cash in the '16 Race

terça-feira, 6 de outubro de 2015

A risada de Judith Butler

Por Lucas Petroni

A filósofa norte-americana Judith Butler (Berkeley) esteve recentemente no Brasil como convidada principal do I Seminário Queer: Cultura e Subversões das Identidades organizado pela Revista Cult e pelo Sesc. A conferência de Butler pode ser conferida abaixo. A passagem de Butler é não apenas uma boa notícia para os vários grupos de pesquisa dedicados aos estudos de gênero e identidade no país, para os quais a obra de Butler é um referencial teórico incontornável, mas também um capítulo nas batalhas pela inclusão das discussões sobre gênero e sexualidade na grade curricular convencional e dos debates sobre o estatuto da família. A presença de Butler no país foi motivo de protesto por um pequeno grupo de ativistas conservadores de São Paulouma batalha logicamente compreensível, mas que surpreendente dada à dificuldade e o caráter especializado dos trabalhos de Butler.


(Judith Butler durante o Occupy NY em 2011)

A principal contribuição de Butler para a filosofia política certamente foi sua teoria de gênero - e da identidade pessoal de modo geral - como performance, isto é, como algo construído por meio de nossas interações pessoais ao longo das nossas trajetórias de vida, em oposição à visão clássica e amplamente assumida tanto na filosofia clássica como em nosso dia a dia de que nossa identidade pessoal é apenas a expressão exterior de uma verdade interior mais fundamental e, portanto, mais importante para fins normativos do que nossas eventuais auto-atribuições. Ser "homem" parece ser algo mais importante, segundo a visão tradicional, do que "ser feliz" ou "ser pobre", para usarmos um exemplo banal. Para Butler, contudo, a "feminilidade" de alguém (notar: "alguém", e não uma "mulher") é tão contingente e socialmente construída por meio de ações e intenções quanto as categorias "pobre" ou "feliz" o são.

Ser pobre, para ficarmos com esse exemplo, exige como condição de possibilidade uma relação historicamente determinada entre possuidores e não-possuidores, além, é claro, de instituições socialmente compartilhadas, como a propriedade privada e o direito, que só podem funcionar caso ambos os pólos da relação consigam entender as suas regras de funcionamento. Com o gênero teríamos a mesma situação: não faz sentido para Butler concebermos gênero como uma identidade subjacente, natural a cada um de nós, a espera de ser "descoberta" seja pelo uso adequado da razão ou por categorias sociais bem compreendidas.

Desse modo, por exemplo, formas de opressão contra as mulheres não ocorreriam a despeito de suas identidades, isto é, porque violam suas identidades morais enquanto seres humanos, mas sim na medida em que tais atribuições identitárias impõem uma identidade não reconhecida as mulheres e, com isso, constrangendo as inúmeras possibilidades de auto-realização pessoal - obrigando-as, por exemplo, a exercerem um papel social fixo, tal como a maternidade monogâmica e heterssexual, que não gostariam de exercer. Butler resume de modo claro essa ideia em sua entrevista para a Ilustríssima ao afirmar que, em seu entendimento, 

"[A]lgumas pessoas [temem] que 'gênero' signifique que não haja leis naturais que regulem a divisão entre sexos. Elas querem leis naturais para estabelecer a questão de gênero para elas [ênfase acrescida]. [...] Enquanto alguns entendem que vidas podem ter várias trajetórias de gênero e sexuais, os que temem gênero querem que haja só uma vida. E querem que ela seja fixada por Deus ou por lei natural. Todo o resto é caos amedrontador, e com frequência escolhem o ódio como forma de lidar com seus medos". 

Se o feminismo na filosofia política pode ser definido, de modo muito geral, como a tarefa premente de dar um sentido normativo para a auto-representação das mulheres nas sociedades contemporâneas sem reduzir a "feminilidade" (ou a "masculinidade", etc.) à elementos naturais, com sua teoria da performatividade Butler elevou as exigências da contestação identitária a um grau mais elevado. A biologia não é a única forma essencialismo em jogo: a própria dicotomia identitária entre os gêneros masculinos e femininos pode ser outra essencialização igualmente opressora. Para usarmos um slogan forte adotado por um teórico queer francês inspirado por Butler: entre uma mulher e uma drag queen a única diferença que importa é o comprimento do salto




Caso aceitemos a tese de Butler segundo a qual não existem identidades anteriores àquelas nas quais somos constrangidos a nos expressar em sociedade, podemos entender o que significa uma "política de identidades". Por definição, se não existem identidades anteriores à política, então todo ato de reivindicação identitária coloca em questão (i) o modo como construímos coletivamente nossas categorias identitárias ao longo da história e (ii) as diversas formas potenciais de silenciamento e exclusão trazidas quando as re-atualizamos (um terceiro ponto a ser explorado seria nos perguntar se toda forma de reivindicação identitária pressupõe um "outro" a quem devemos nos opor, mas deixemos de lado essa questão por um momento). Essa é a razão pela qual a concepção de gênero de Butler precisa valorizar positivamente tanto a performance como formas socialmente marginalizadas (portanto, potencialmente contestatórias) de identidade. 


sábado, 3 de outubro de 2015

Concurso de Filosofia Política (UFMS)

O Centro de Ciências Humanas e Sociais da UFMS abriu uma vaga para professor adjunto na área de Ética e Filosofia Política no curso de Filosofia (Licenciatura). O edital completo e os pontos do concurso podem ser encontrados no link abaixo. As inscrições podem ser feitas no site da UFMS e o prazo para as inscrições termina no dia 21/10


quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Soluções liberais alternativas para a desigualdade econômica

A Revista Leviathan publicou uma tradução que fiz do artigo Alternative Liberal Solutions to Economic Inequality do teórico inglês Stuart White (Oxford). O artigo original já havia sido comentado no blog (ver o link acima) e ganhado repercussão na plataforma openDemocracy. A tradução conta com uma rápida apresentação sobre a relevância do texto: mesmo sendo um artigo de divulgação, ele explora possibilidades normativas factíveis de transformação de relações de desigualdade bem como chama nossa atenção para um conjunto de teorias liberal-igualitárias até hoje ausentes tanto no debate acadêmico como no debate público brasileiro. 

Espero que gostem!

(Agradeço a Stuart White pela concessão do artigo e a Alessandro Pinzani pelas sugestões valiosas)

- Soluções liberais alternativas para a desigualdade econômica (Leviathan)

Resumo:

Trazidos a tona pelos movimentos de contestação à desigualdade econômica após a crise de 2008, direitos de participação nas decisões econômicas da sociedade, direito ao capital e à renda básica incondicional encontram sua formulação teórica em uma longa tradição política liberal alternativa ao mainstream político e econômico neoliberal. Autores como John Stuart Mill, James Meade e John Rawls defenderam propostas radicais de transformação das relações de produção por meio de mecanismos de cogestão e da instauração de uma “democracia de cidadãos proprietários”. A união entre teoria e prática do liberalismo alternativo pode ser uma solução igualitária importante diante do aumento da desigualdade econômica nas democracias econômicas.