domingo, 15 de novembro de 2015

Tarantino, Dworkin e porque a vida dos outros importa

Por Lucas Petroni

Associações de policiais ao redor dos EUA estão pedindo o boicote dos filmes do diretor Quentin Tarantino, especialmente contra o seu novo filme, The Hateful Eight, com a estréia prevista para dezembro. Não só os policiais e seus familiares dos estados de Nova Iorque, Califórnia e Philadelphia, mas também parte da mídia conservadora, um diretor do FBI e até mesmo o pai de Tarantino apoiam a iniciativa. A reação foi provocada pela participação do diretor em uma marcha contra a violência policial nos EUA no dia 24 de outubro. "Sou um ser humano com consciência", afirmou Tarantino na ocasião, "e se você acredita que assassinatos estão sendo cometidos então você precisa se levantar contra isso. Eu estou aqui hoje para dizer que estou do lado das vítimas" (veja o vídeo abaixo). 

O principal argumento por trás do pedido de boicote é o de que atos como a marcha contra a violência policial tenderiam a despertar na população um sentimento de ódio contra a polícia e, com isso, colocaria em risco a vida dos policiais. Apenas dois dias antes do protesto, por exemplo, um policial havia sido morto em na cidade de Nova York. O diretor do FBI James Comey foi ainda mais longe e declarou que o escrutínio público sobre a conduta policial nos últimos anos, o chamado "efeito Fergunson", tem contribuído para aumentar a violência no país, já que os policias teriam ficado cada vez mais "cautelosos" em suas condutas contra possíveis suspeitos e os criminosos cada vez mais "audaciosos" sabendo que suas reações vão ser interpretadas como atos legítimos de resistência. Logo, seria preciso controlar melhor quem e o que se fala sobre a polícia nos EUA como matéria de segurança pública. 



Entretanto, ser um jovem ou uma jovem negra nos EUA é bem mais perigoso do que ser um policial. Nos últimos anos, a violência vem crescendo de modo constante e, como o caso do assassinato do jovem desarmado Michael Brown em Fergunson (Missouri) deixou claro para o mundo, o alvo da violência policial tem cor e idade. Segundo a rede Mapping Police Violence, quase 300 cidadãos negros já foram mortos por policiais no país só em 2015 (uma média de 25 mortes por mês desde 2013) e, desse total, em apenas três casos os policiais envolvidos chegaram a ser condenados. A grande maioria das mortes foi tratada apenas como excesso de precaução policial. 

Durante o protesto, integrantes do grupo SayTheirNames e Stop Mass Incarceration leram os nomes das vítimas da violência policial e suas famílias deram seus depoimentos pessoais sobre sua luta por justiça. Nos EUA, grupos como esses representam os primeiros passos da luta contra o uso sistemático da violência policial contra um setor específico da sociedade norte-americana. O grupo Black Lives Matter - algo como A Vida Negra Importa - talvez seja a face mais visível e politicamente importante dos novos movimentos pelas liberdades civis nos EUA. Inicialmente criado por um trio de ativistas negras em 2013 após a absolvição do vigia noturno que matou (aparentemente) por engano o jovem negro Trayvon Martin, o Black Lives Matter conta hoje com milhares de simpatizantes ao redor do país e tem pautado, com maior ou menos sucesso, o tema na esfera pública e nas pré-campanhas eleitorais. Entretanto, dado o teor extremamente controverso da questão racial nos EUA e a defesa da desobediência civil como estratégia legítima de reivindicação pelas lideranças do movimento, até o momento apenas Barack Obama manifestou solidariedade pelo Black Lives Matter e, ainda assim, de modo indireto. Obama firmou que a sociedade norte-americana deveria respeitar "o que o grupo tem a dizer", mas não necessariamente o modo como o tem dito.

Em relação ao problema da brutalidade policial a experiência brasileira é muito similar. Talvez com uma importante diferença, ou melhor, agravante: que além de sistemática e racial a violência policial tende a ser também muito mais letalEntre 2002 e 2012, estima-se que cerca de 11.200 cidadãos tenham sido mortos por resistirem a prisão e até setembro deste ano, as polícias do Rio de Janeiro e São Paulo já mataram, cada uma delas, mais de 400 pessoas. Ou seja, mais de um EUA de violência policial para cada polícia estadual. Um caso emblemático da violência policial no país, para mantermos a comparação, mas infelizmente negligenciado pela mídia brasileira, ocorreu no começo do ano no bairro de Cabula em Salvador quando 12 jovens foram executados pela polícia militar do estado. Todos os policiais responsáveis pelas mortes foram absolvidos e contaram com o apoio público do secretário de segurança e da bancada da bala do estado: "Eu defendo muito a vida dos meus policias e isso é o que importa", afirmou Maurício Barbosa, Secretário de Segurança Pública da Bahia. Os familiares das vítimas criaram o grupo Mães de Cabula como uma forma de continuarem a lutar pelos direitos de seus filhos e irmãos assassinados e, principalmente, para tentar mostrar para a sociedade brasileira que, ao contrário da declaração do secretário, a vida dos outros também importa. a reação contra a declaração de Tarantino também não é estranha em terras brasileiras. Também como nos EUA, a defesa dos direitos das vítimas da polícia tende a ser associada, no Brasil, a uma forma de apologia indireta ao crime. 

É muito provável que o aumento da desse tipo de ocorrência nos EUA tenha como causa o aumento galopante da desigualdade econômica no país e que a já segregada sociedade norte-americana esteja as voltas não só com mais desempregados e jovens sem perspectivas de integração como também uma polícia branca assustada e bem menos preparada do que antes. As antigas cidades suburbanas estão se tornando cada vez mais parecidas com Ferguson e New Haven (cidades notórias tanto pelas taxas de criminalidade como pela tensão racial).

É verdade que podemos debater se os mecanismos explicativos endossados pelos apoiadores do boicote, e as conjecturas sociológicas aventadas acima, são confirmados ou não pelos dados que dispomos. Entretanto, para além dessas questões mais imediatas de explicação causal, debates como esses servem para pensarmos mais substantivos enfrentados por qualquer democracia, como, por exemplo, saber se temos (ou não) o direito individual de nos posicionarmos contra a injustiça mesmo quando a fonte da injustiça são as instituições legais os as forças de segurança que deveriam promovê-la. Notemos que tanto no caso das ameaças a Tarantino como em uma corrida de taxi pela cidade de São Paulo, aqueles que se colocam contra a defesa dos direitos das vítimas da polícia normalmente não chegam a por em questão (com exceções) a ideia de que todos temos os mesmos direitos ou até mesmo que é justo ou desejável que a polícia cometa crimes. O argumento é fundado, ao contrário, nas consequências negativas que esse tipo de defesa pode acarretar para a sociedade como um todo. Como explicou o diretor do FBI, os policiais ficarão cada vez mais cautelosos e os criminosos cada mais mais corajosos.





A questão difícil de ser enfrentada é saber se temos, ou não, o direito de desafiarmos a lei quando entende-se que direitos, nossos ou os dos outros, estão sendo ameaçados, ou não estão sendo devidamente respeitados, mesmo que as consequências disso tragam algum tipo de custo social. Temos, por exemplo, o direito de recusar publicamente  uma decisão de um tribunal em todos os sentidos legítimo? Podemos contestar a justiça em nome da... justiça? Nos deparamos com essa situação de muitos modos diferentes. Decisões politicamente válidas são consideradas injustas quando amparadas em uma legislação moralmente errada (como, por exemplo, a escravidão ou o apartheid). Em outros casos, as regras podem ser justas mas a sua aplicação não o é. Talvez o corporativismo das forças policiais ou um sistema de justiça exclusivo para esse tipo de crime, estimule a impunidade. Além disso, como determinar se as razões em questão são válidas ou não? Nada impede que as pessoas reivindiquem um direito de desobediência a partir de razões espúrias, como é o caso, por exemplo, dos norte-americanos que se recusam a aceitar que o presidente Barack Obama seja um cidadão norte-americano. Por um lado problemas como esses fazem parte da vida política normal de uma democracia, por outro, eles são extremamente difíceis de serem formulados com precisão quando estamos todos exaltados. 

Um argumento clássico, e até hoje extremamente influente, entre aqueles que defendem uma moralidade política fundada na igualdade de direitos, pode ser encontrada no filósofo do direito norte-americano Ronald Dworkin. Em seu ensaio Levando os Direitos à Sério, publicado originalmente 1970 e, oito anos depois, como um livro homônimo, Dworkin procurou defender a legitimidade dos movimentos pelos direitos civis nos EUA a partir da natureza do princípio moral que sustentava a sua causa, a saber, que as pessoas possuem direitos morais, como o de serem tratas com igual consideração e respeito pelas leis, e que, do ponto de vista desses direitos, a legislação segregacionista é moralmente injusta. Se isso é verdade, então, consequentemente, os movimentos tem razão ao demandaram que a legislação vigente seja radicalmente alterada.  Formulando de outro modo, Dworkin se propôs a responder a pergunta: temos o direito de infringir a lei ou política democrática caso essa lei seja injusta do ponto de vista moral?

Antes de reconstruir o argumento defendido por Dworkin algumas considerações preliminares são importantes. Quando utilizamos a noção de "direito moral" ou de um direito "incondicional" é preciso atentarmos para o fato que estamos falando de uma prerrogativa individual não apenas contra um governo ou um Estado - o que parece relativamente simples de entender - mas também contra o próprio sistema jurídico. Em países com forte tradição constitutional como o Brasil tendemos a associar direito incondicional com as prerrogativas individuais descritas na constituição ou carta de direitos e, por essa razão, associamos direito incondicional com direito constitutional. Nada poderia ser mais equivocado segundo aqueles que defendem a existência de direitos morais. É verdade que uma constituição tem como um dos seus principais objetivos o reconhecimento de direitos e princípios que, devido a sua importância, devem permanecer protegidos ou insulados da política convencional. Contudo, se existem direitos morais, então a constituição seria apenas mais uma instituição social dentre outras e a interpretação legal dos direitos que ela de fato oferece não coincidir necessariamente com os direitos que deveriam ser reconhecidos do ponto de vista moral. Um sistema judiciário amparado em uma constituição pode falhar tanto na garantia de direitos morais como também no estabelecimento dos direitos morais corretos. Ou seja, para teorias como a de Dworkin, o problema da desobediência civil é uma questão de princípio moral e a proteção ou não desse princípio é aquilo que torna as instituições legítimas ou ilegítimas, e não o contrário.

Se temos o direito moral de nos expressar contra a injustiça, então não há nada que a coletividade possa fazer contra isso que não seja errado do ponto de vista moral. Em muitos casos as pessoas usarão esse direito de modo espúrio ou arbitrário ou ainda de modo a infringir outros direitos. O argumento de Dworkin consiste em mostrar que um governo pode ter boas razões para interferir nesse direito quando necessário. O ponto é que ao fazer isso (mesmo que por razões aceitáveis) ele não pode deixar de violar um direito moral ao fazê-lo. Para entendermos o que isso significa basta examinar os dois tipos mais comuns de argumentos conservadores contra a incondicionalidade do direito de desobediência. (Deixemos de lado o problema comum, mas não necessariamente moral, da hipocrisia, isto é, quando recusamos o direito dos outros apenas porque o nosso encontra-se plenamente garantido).

O primeiro argumento conservador, que podemos chamar de "agonista", procura mostrar que não temos o direito incondicional de desafiar a lei em casos de injustiça patente na medida em que existem dois direitos igualmente importantes em disputa: o direito individual de desafiar a legalidade, de um lado, e o direito da maioria de ter as leis cumpridas. O problema, como mostra Dworkin, é que o argumento é falacioso: se existem direitos pessoais então não podemos atribuir, ao mesmo tempo, um direito difuso "à maioria". O que temos na melhor das hipóteses é um conflito de interesses (que não deixa de ser importante) ou ainda uma violação de outro direitos individuais (como no caso de manifestações que colocam em risco a vida de um espectador). Os detalhes aqui são importantes e precisam ser ponderados caso a caso. Mas apenas por um deslize verbal podemos falar em um direito da maioria em ter as leis respeitadas. É importante notar que o mesmo argumento é usado constantemente nas doutrinas de segurança nacional e no chamado combate contra o terrorismo: o direito (da maioria?) à segurança (da sociedade?) é superior ao direito individual à privacidade ou à expressão ou até mesmo ao direito individual à segurança.

O segundo argumento, que podemos chamar de "realista" - entendido no sentido de realpolitik - afirma que para além dos direitos e interesses presentes em uma sociedade, o Estado possui o direito de exigir que suas leis sejam respeitadas e tal direito é uma razão independente para acatarmos suas diretrizes. Ou seja, mesmo que, por exemplo, os policiais da Bahia tenham se livrado injustamente da punição ou que os jovens negros estejam sendo aterrorizados pela polícia, disso não se segue que possamos colocar em questão a legitimidade dessas decisões, porque toda lei, para além da seu objetivo, conta também com o dever de ser respeitada. Nesse caso o problema é que caso o Estado tenha a prerrogativa moral de exigir que suas leis seja respeitadas apenas pelo fato de serem as suas leis então estaríamos justificando a distribuição de direitos e liberdades individuais por meio de um critério consequencialista, mas não incondicional. Segundo o critério consequencialista, teríamos liberdade pessoal apenas na medida em que o próprio Estado, ou a maioria, considere que elas causam mais benefícios coletivos do que problemas. Se isso é verdade, então não existem direitos morais já que por definição eles são prerrogativas individuais contra o arbítrio do Estado. Isso não significa dizer -  mais uma vez - que reivindicações de direitos são fácies de serem resolvidas nem que a plena garantia de direitos pessoais não tragam um custo social. O ponto de Dworkin é mostrar que no caso dos movimentos pelas liberdades civis nos anos 60 nos EUA, ou na luta de hoje contra a violência policial, esse é um custo que precisa ser pago por todos.



                                              Tarantino durante o RiseUpOctober - NYC

O problema da desobediência civil nos mostra que ou bem temos direitos incondicionais apenas pelo fato de seremos cidadãos ou, na verdade, não existem direitos incondicionais e, portanto, estamos sujeitos a cedê-los todas as vezes em que o governo ou as cortes decidirem que isso seja justificado.

É no contexto dessa discussão que Dworkin formula sua célebre distinção entre (a) princípios normativos orientados para resultados, normalmente utilizados pelo Estado na busca pela promoção e conciliação de interesses, e (b) princípios normativos fundados em direitos que, por serem incondicionais, não dependem do resultado das nossas ações e, portanto, servem para fundamentar nossas reivindicações contra princípios orientados para resultados (nesse sentido direitos funcionariam como "trunfos pessoais" contra a sociedade na figura de linguagem emprega por Dworkin). Princípios fundados em direitos partem do pressuposto de que existem modos de tratar uma pessoa que "são inconsistentes com o seu reconhecimento enquanto um membro pleno da comunidade humana" e que, portanto, apenas por causa disso "tais tratamentos tornam-se profundamente injustos". Se o reconhecimento dos direitos é uma exigência necessária para a proteção da dignidade pessoal ou do nossa condição como pessoas merecedores de mesma consideração e respeito, então é fundamental não apenas proteger o direito do outro - seja, na forma do direito de desobediência contra a injustiça e no direito de não ser vítima da violência policial - como também proteger esse direito incondicionalmente, custe o que custar.

A despeito da importância dos argumentos de Dworkin, movimentos como tais como o SayTheirNames, Black Lives Matter e as mães de Cabula, levantam uma segunda questão em relação ao papel de direitos que teorias estritamente deontológicas como a de Dworkin não conseguem dar conta.

Se é verdade que todos possuímos os mesmos direitos e que precisamos estar dispostos a reconhecê-los, também é verdade que em uma democracia o próprio ato de reinvindicação dessa igualdade importa. Grupos como esses estão dizendo diretamente para nós que algo precisa ser feito e que novas formas de respeito mútuo entre iguais precisam ser construídas. Isto é, trata-se também de uma atribuição de responsabilidade sobre aqueles e aqueles que partilham (e as vezes se beneficiam) uma mesma estrutura social. Ao dizerem os nomes dos seus filhos e filhas, as mães de Cabula ou da Louisiana estão dizendo, para nós, como iguais, que temos o dever de escutá-las. Corretamente, o filósofo Joel Feinberg identificou essa segunda dimensão normativa como sendo a dimensão referente ao valor - e não apenas à natureza - dos direitos pessoais. Para Feinberg, os direitos são importantes não apenas porque nos protegem mas também porque a própria ação de reinvidicá-los nos permitem reafirmar, entre iguais, a partilha de um mesmo ponto de vista moral:

[d]ireitos não devem ser confundidos com presentes ou favores geralmente motivados por pena ou amor e para os quais o sentimento de gratidão é a única resposta apropriada. Um direito é algo que [uma pessoa] pode posicionar-se sobre, algo que pode ser demandado ou insistido de alguém sem constrangimento nem vergonha. Quando nos falta um direito falamos em indignação e quando ele é plenamente reconhecido, não existe razão para gratidão [...] (Social Philosophy pp. 58-59). 

O ato de reivindicar nos obriga a reconhecer que são pessoas quem portam esses direitos. Colocando de outro modo: se a natureza dos direitos morais nos ajudam a entender porque o direito dos outros importa, o valor moral de reinvidicá-los nos permite entender porque a vida dos outros também deveria importar.

- Civil Desobediente (Stanford Encyclopedia)