Marta Arretche (USP), cientista político e coordenadora do Centro de Estudos sobre a Metrópole (CEM), foi entrevistada pelo jornal El País a respeito dos impactos da retração econômica no processo histórico de desigualdade social no Brasil. Segundo a pesquisadora, nada nos garante que a queda do PIB terá como consequência necessária o aumento radical da diferença entre a renda do trabalho não qualificado e o restante da sociedade. Se por um lado o desemprego prejudica o trabalhador ou trabalhadora com baixa escolaridade, por outro, o país conta hoje, segundo Arretche, com uma rede de proteção social até então inédita em nossa história política. Além disso, duas das principais ferramentas de combate à desigualdade econômica nas últimas décadas - aumento real do salário mínimo e os programas de combate a pobreza extrema - permanecem, até o momento, em funcionamento. Em resumo: ainda que sempre tentadoras, inferências fáceis sobre o futuro precisam ser temperadas com doses fartas de metodologia empírica e rigor analítico antes de serem vendidas como conhecimento.
Contudo, alerta Arretche, não devemos subestimar o papel da "superposição de vantagens" - quando os indivíduos com maior renda e riqueza possuem também a melhor escolaridade e acesso privilegiado aos serviços públicos - na organização da política democrática no país. Isto é, pobreza no Brasil não é apenas falta de renda mas também a falta de acesso à infraestrutura básica de serviços públicos enquanto riqueza, por sua vez, significa além de dinheiro, acesso privilegiado a esses mesmos serviços. Desigualdade econômica e exclusão social andam lado à lado. O fato de sermos uma das democracias com maior concentração de renda do mundo faz com que, de um lado, o pagamento por serviços básicos seja um desafio intransponível para um número enorme de cidadãos e, de outro, faz com que os cidadãos privilegiados pela superposição de vantagens resistam ao custeio do processo de inclusão por meio do Estado, uma vez que já se encontram "incluídos" nos benefícios da cooperação social.
Marta Arretche organizou recentemente o livro Trajetórias da Desigualdade (UNESP, 2015) (veja aqui uma entrevista com a autora), no qual diferentes dimensões da desigualdade no Brasil são sistematizadas e apresentadas por diferentes grupos de especialistas. A obra é considerada, com toda justiça, uma das publicações de ciência social mais importantes das últimas décadas.
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P. Por que o acesso aos serviços é importante para a redução da desigualdade?
R. Um dos componentes centrais do bem-estar dos indivíduos é ter acesso a serviços básicos. Lamentavelmente, o país na década de 80, e em particular no início do processo de redemocratização, tinha indicadores sociais muito ruins. Os índices de cobertura de serviços de saúde, educação, saneamento básico, água, energia elétrica, eram piores do que nos outros países da América Latina menos ricos do que o Brasil em termos de PIB per capta e renda per capta. Isso significa que a tarefa para as gerações que governaram o país sob o regime democrático era muito grande porque era um país caracterizado não apenas por uma intensa desigualdade entre indivíduos, mas também por uma elevada desigualdade entre regiões e por uma superposição de vantagens entre indivíduos. Em 1980, 80% dos 5% mais pobres não tinham nenhum desses serviços. Nós chamamos de superposição de vantagens, ou seja, aquele que tem melhor renda, também tem a melhor escolaridade, melhor acesso a serviços e, portanto, tem uma cesta de condições de vida bastante completa do ponto de vista das condições básicas de existência. Ao passo que os indivíduos nos estratos inferiores de renda também não tinham acesso a água, esgoto, energia. Eles tinham uma superexposição de desvantagens. O que aconteceu no processo de democratização brasileiro, que é parte do problema que estamos vivendo hoje, é um progressivo processo de inclusão dos muito pobres a esses serviços muito essenciais e muito básicos.
P. E por que isso é parte do problema vivido hoje?
R. Porque isso tem um custo. Os 20% mais pobres têm uma renda muito baixa e grande parte do que eles recebem tem que ser subsidiado por diversos mecanismos, seja pelo tesouro, seja por tarifas cruzadas nas diferentes políticas... Isso tem um custo fiscal. Nada disso sai de graça, é financiado. E a população com incapacidade de pagamentos de serviços básicos é muito numerosa no Brasil, o que é outra forma de dizer que a concentração da renda é muito alta. Alguém tem que pagar por isso. Se não é possível aumentar impostos, porque há revoltas sistemáticas contra a taxação no Brasil, o resultado é um déficit fiscal. Se você aumenta o acesso a serviços para os muitos pobres, e os muito pobres são um contingente expressivo da população, e não é possível aumentar impostos porque há uma barreira para isso e as outras soluções possíveis, que seriam o endividamento, a inflação ou os recursos do petróleo, estão fechadas, o déficit fiscal será uma consequência.