terça-feira, 26 de setembro de 2017

Por que estudar a desigualdade?

Por Lucas Petroni

Em uma contribuição especial para o The Guardian, o economista Branko Milanovic (CUNY/LIS) apresentou três grandes motivos, e consequentemente, três grandes áreas de estudos importantes sobre desigualdade econômica fundamentais para pensar a relação distribuição e democracia. Seguindo a sugestão de Milanovic, podemos organizar essas razões em três grandes razões para o estudo da desigualdade:

1. Razões normativas
2. Razões instrumentais
3. Razões políticas

Em primeiro lugar, existem problemas normativos importantes relacionados aos padrões de distribuição de recursos, bem-estar e oportunidades disponíveis em uma sociedade. A desigualdade posicional entre as pessoas em uma sociedade - por exemplo, quanto a sua renda mensal ou ao estoque de riqueza pessoal que possuem - exige entendimento e justificação pública. 

Entender quais desigualdades importam e quais não importam, e, principalmente, como avaliar normativamente o que há de errado com as desigualdades (e se há algo de errado) em uma da sociedade, é um tema central da teoria política contemporânea, desenvolvida por filósofos e filósofas como John Rawls, Robert Nozick, G. A. Cohen, Susan Okin, Richard Arneson, Phillipe Van Parijs, Elizabeth Anderson e John Tomasi (para elencar apenas um conjunto mais ou menos aleatório de pesquisadores(as) com argumentos normativos bem diferentes entre si). Não apenas esse debate reformulou a filosofia política a partir dos anos 60, como ele também foi responsável - diretamente em alguns casos - pela reorientação das principais moralidades políticas em disputa nas nossas sociedades. É difícil imaginar como os principais agrupamentos políticos no nosso espectro ideológico, como o liberalismo progressista, o conservadorismo, o neoliberalismo, o feminismo, o socialismo, etc, poderiam desconsiderar o que foi debatido sobre justiça distributiva ao longo dos últimos 50 anos. Em suma, estudos normativos sobre a desigualdade e justiça distributiva procuram formular e avaliar razões morais que justifiquem, ou não, a existência de desigualdades econômicas, fornecendo com isso critérios para a sua transformação (ver aqui e aqui para tentativas recentes de organização da literatura).

Contudo, existem também razões de natureza instrumental para nos preocuparmos com a desigualdade econômica. Durante muito tempo acreditou-se que uma distribuição desigual de recursos teria um impacto positivo no crescimento econômico, já que tanto os mais pobres como os mais ricos teriam fortes "incentivos" para utilizarem sua força de trabalho de modo produtivo: o medo da miséria absoluta, no primeiro caso, e o medo da perda de status social, no segundo. 

Como o próprio Milanovic afirma em seu artigo, esse não é mais o caso. Em primeiro lugar porque a pergunta sobre o impacto da desigualdade para o crescimento econômico é, hoje, uma pergunta em aberto, e que exige dos economistas que dêem atenção para a dispersão do crescimento entre os diferentes setores da sociedade. Além disso, existem fortes indícios de que a cristalização da desigualdade de oportunidades ao longo do tempo seja um grave obstáculo ao desenvolvimento econômico na base da sociedade. Como o próprio Banco Mundial e o FMI já reconheceram, a despeito de seus políticas na década de 80 e 90, a apropriação desigual dos frutos do crescimento econômico pode ser um empecilho para o crescimento econômico sustentável, de tal modo que  devemos tratar analiticamente a desigualdade e a intermitência de crescimento como dois lados de uma mesma moeda. (No quesito desigualdade de mobilidade social e apropriação desigual de crescimento, a sociedade brasileira é um caso extremo: entre 2001 e 2015, os 10% mais ricos se apropriaram de 61% do crescimento econômico, enquanto a fatia dos 50% mais pobres apropriou-se de apenas 18% desse total).

Finalmente, e ligada às duas últimas razões, existem razões políticas para estudarmos a desigualdade. As relações entre desigualdade e política são importantes para a explicação de tomada de decisões políticas e para entendermos os padrões de conflito social em uma sociedade (tecnicamente, essa seria uma razão instrumental política, em comparação com a razão instrumental econômica apresentada acima, mas mantenho a útil a divisão de Milanovic). As razões políticas para estudarmos a desigualdade tem como base a proposição fundamental de que dinheiro e representação política sempre andaram lado a lado, de modo que interesses distributivos representam um variável importante no escopo das estratégias políticas. Em casos de desigualdade extrema - novamente, o caso brasileiro é paradigmático, mas não apenas ele - é possível estabelecer relações explicativas entre o insulamento das elites políticas e a concentração de renda e riqueza no topo da sociedade.  A decisão da elite política brasileira em manter um dos sistemas tributários mais injustos do mundo, mesmo diante de uma crise fiscal, a abolição de impostos sobre lucros e dividendos do governo FHC (que singulariza o Brasil mesmo entre as economias mais liberais do mundo), e a completa negligência dos direitos fundamentais de populações periféricas no sistema representativo, tornam-se fenômenos políticos bem menos idiossincráticos quando levamos a sério a desigualdade econômico na explicação do funcionamento das nossas instituições políticas. 

Essa nova agenda de pesquisa apresentada por Milanovic, mas subscrita por muitos(as) outras(as) pesquisadores(as), como Anthony Atkinson, Thomas Piketty, Marc Ravillion, Kate Pickett, Jacob Hacker, Paul Pierson, Larry Bartels, Martin O'Neill, etc., alterou o próprio modo como pensamos   natureza das democracias contemporâneas. Se o sucesso igualitário das democracias liberais no pós-guerra arrefeceu o pessimismo marxista sobre a compatibilidade entre democracia e capitalismo, o crescimento acelerado da desigualdade nos países ricos nas últimas décadas também nos obriga a questionar o velho senso comum de que democracias de maioria possuem mecanismos inerentes de distribuição de renda. 

O Brasil também tem contribuído para o fortalecimento dessa agenda de pesquisa. Para além dos pólos de produção acadêmica já estabelecidos no país, como o IPEA, é preciso destacar aqui os projetos de pesquisa agregados entorno do livro Trajetórias da Desigualdade, organizado pelo CEM/USP, e o grupo de pesquisa da UNB coordenado por Marcelo Medeiros.





É sobretudo com base nas pesquisas recentes produzidas nesses centros que a Oxfam montou seu relatório anual de 2017, entitulado A distância que nos une. O quadro da igualdade social brasileira apresentado no documento é desolador. A despeito de conquistas sociais importantes, como a retirada de mais de 28 milhões de pessoas da pobreza e a redução de disparidades em indicadores agregados, como o GINI, o relatório é enfático: vivemos uma barbárie distributiva. 

Mantido o ritmo médio de redução anual da desigualdade de renda desde 1988 (algo extremamente otimista para os próximos anos), calcula-se que levaríamos 35 anos para alcançar os níveis de desigualdade do Uruguai, e 75 os do Reino Unido. Além da apropriação desigual do crescimento econômico das últimas décadas (mencionado acima), o relatório também destaca a persistência da acumulação de renda entre os mais ricos no Brasil. Segundo as estimativas mais otimistas, o 1% mais rico do país (pessoas renda média per capita de mais de 40 mil reais por mês) apropria-se de cerca de 25% da renda nacional anual. Mesmo entre os 10% mais favorecidos e o restante da população descompasso é enorme: os 10% mais ricos (renda média per capita de mais de 4.500 reais por mês) ganham 38 vezes mais do que a renda dos 10% mais pobres. 

Outras variáveis importantes da desigualdade, por vezes negligenciados no debate público,  também são abordadas pelo relatório, como a desigualdade de riqueza (propriedade e ativos financeiros) e de acesso a serviços públicos. Estima-se, por exemplo, que, junta, a metade de baixo da população brasileira possui apenas 3% da riqueza privada do país, e que as seis pessoas mais ricas do Brasil levariam 36 anos para acabar com a sua riqueza gastando 1 milhão de reais por dia. Não apenas a concentração de renda no topo manteve-se consistente ao longo da última década como também triplicamos o número de bilionários e elevamos a concentração fundiária no campo. São padrões distributivos como esses que explicam porque, daqueles países que temos dados disponíveis, o Brasil é o país que mais concentra renda no 1% mais rico da sociedade e, de uma lista de 143 países, ele é décimo país mais desigual do mundo. Como conclui o relatório: vivemos em estado de desigualdade econômica extrema.

Nesse contexto, as pesquisas sobre desigualdade, sejam elas normativas ou empíricas, que tomem a desigualdade em seu valor moral intrínseco ou que a trate como uma variável instrumental, que relacionem seus efeitos à política partidária ou a vida social em geral, são fundamentais. Sem as contribuições dos últimos anos, o aumento da compreensão sobre o fenômeno no Brasil foi considerável. Não podemos mais fazer grandes afirmações sobre a estrutura social brasileira sem passar por essa discussão. Na verdade, devemos nos perguntar por que estudamos tão pouco a desigualdade e seus efeitos (e aqui refiro-me, principalmente, aos nossos filósofos e teóricos políticos). As três razões identificadas por Milanovic são cruciais para qualquer discussão séria sobre o futuro da democracia brasileira. Como o relatório da Oxfam nos obriga a concluir, a escolha de objetos de pesquisa nas ciências sociais com base em predileções pessoais, ou modas acadêmicas, é um luxo que não pode ser justificado no Brasil.







Lucas Petroni é pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).