segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Souza: A Tolice do Pensamento Social Brasileiro

Em uma controversa entrevista para a Folha de S. Paulo, o sociólogo e atual presidente do IPEA, Jesse de Souza (UFF), criticou duramente a presença de teorias culturalistas no debate público brasileiro e defendeu as principais teses do seu novo livro A tolice da inteligência brasileira. De acordo com Souza, uma teoria conservadora de matriz culturalista teria colonizando as discussões sobre as instituições políticas no Brasil. Tal interpretação seria especialmente cara entre a classe média revoltada e estaria sendo diariamente reforçada pela cobertura da grande mídia das crises econômicas e políticas no país.

De acordo com essa visão, o patrimonialismo nos negócios públicos, a dificuldade de separação entre público e privado e, principalmente, a suposta dificuldade em respeitar o regime da lei no país, seriam traços essenciais da nossa identidade. As razões para isso variam conforme o expositor: ora ela é explicada por meio das características particulares da nossa colonização, ora encontra respaldo nas raízes histórico-religiosas do país. O fato é que, em geral, tais narrativas acabariam por reafirmar a mesma conclusão: a inferioridade relativa das instituições políticas no país em comparação com outras sociedades culturalmente mais propícias à democracia do que a brasileira. Uma das implicações dessa interpretação é a conclusão segundo a qual, a verdadeira culpa pelo suposto atraso político brasileiro deve ser procurada nos elementos menos educados do país.




A força do elitismo conservador não chega a ser uma novidade entre a inteligência nacional. A tese específica e teoricamente interessante do trabalho de Souza, no entanto, é a ligação estabelecida pelo autor entre essa forma particular de autocompreensão da organização social brasileira e o assim chamado cânone do pensamento social brasileiro. Teóricos neoculturalistas encontrariam em autores clássicos como Sérgio Buarque de Holanda e Raimundo Faoro o suporte intelectual necessário para continuarem a reproduzir tais interpretações e seus consequências normativas elitistas mesmo contra a produção mais recente nas ciências sociais. É importante notar que o problema para Souza não é apenas que tais argumentos são empiricamente falsos - algo razoavelmente trivial - mas também que eles são perfeitamente compatíveis com a manutenção da exploração das vantagens sociais pelos grupos historicamente privilegiados pela cooperação social no país. O corolário do argumento pode ser colocado da seguinte forma: dada a cultura atrasado do brasileiro, quanto mais gente participar da política, seja no governo seja por meio do voto, pior serão as consequências sociais. 

Como afirma Souza:

O patrimonialismo só sobrevive como um conceito que quer dizer alguma coisa em um contexto que pressupõe o complexo de vira-lata do brasileiro. Essa é a questão principal. É só porque se imagina, candidamente, que existam países onde não há a apropriação privada do Estado para fins particulares –os EUA para os liberais brasileiros seriam esse paraíso– que se pode falar de patrimonialismo como particularidade brasileira.
Imagine a meia dúzia de petroleiras americanas, que mandavam no governo Bush filho, atacando o Iraque, com base em mentiras comprovadas, pela posse do petróleo. E com isso matando milhões de pessoas e desestabilizando a região até hoje com consequências funestas que todos vemos.
Quer melhor exemplo de apropriação privada do Estado para fins de lucro de meia dúzia sem qualquer preocupação com as consequências? [...] Minha tese é a de que, no Brasil, o patrimonialismo serve para duas coisas bem práticas:
1) A primeira é demonizar o Estado como ineficiente e corrupto e permitir a privatização e a virtual mercantilização de todas as áreas da sociedade, mesmo o acesso à educação e à saúde, que não deveria depender da sorte de nascer em berço privilegiado;
2) Serve como uma espécie de "senha" de ocasião para que o 1% que controla o dinheiro, a política (via financiamento privado de eleições) e a mídia em geral possa mandar no Estado mesmo sem voto. Não é coincidência que tenha havido grossa corrupção em todos os governos, mas apenas com Getúlio, Jango, Lula e Dilma, governos com alguma preocupação com a maioria da população, é que a "senha" do patrimonialismo tenha sido acionada com sucesso. Somos ou não feitos de tolos?
Em linhas gerais teorias, ou melhor dizendo, esquemas conceituais culturalistas (termo esse mais preciso, uma vez que não se trata, na maior parte dos casos, de um conjunto plenamente coerente de premissas e regras de inferência) condenaria a política à ineficiência e à corrupção, por oposição as forças virtuosas do mercado e família. Ludibriados pelas meias verdades e pela confusões analíticas do pensamento social brasileiro, a classe média acabaria aceitando sem grandes problemas duas características - essas sim - verdadeiramente idiossincráticas de nossa democracia: uma das maiores taxas de juros do mundo e a inexplicável tolerância em relação à crueldade com que tratamos os sub-cidadãos no Brasil. 

Na entrevista Souza chega a propor um interessante contrafactual para testarmos teses culturalistas como a proposta pelo antropólogo Roberto DaMatta. Se a hierarquia social no Brasil fosse de fato fundada nas relações inter-pessoais, e não no acesso privilegiado aos benefícios sociais trazidos pela apropriação injusta do capital social, então deveríamos esperar a separação entre privilégio social, de um lado, e capital econômico de outro. Contudo, como afirma Souza:

[o] leitor que nos lê conhece alguém com acesso a relações pessoais com pessoas poderosas sem, antes, ter capital econômico ou capital cultural? Se o leitor conhecer, então DaMatta tem razão na sua tese do jeitinho.

Não precisamos ir muito longe nos dados sobre a desigualdade social para rejeitarmos essa hipótese.

Independentemente de eventuais disputadas políticas, podemos afirmar que a obra de Jesse consolida-se como parte de uma tendência mais ampla nas ciências sociais brasileiras preocupada em oferecer uma revisão crítica de algumas das antigas teses recebidas sobre o desenvolvimento histórico das instituições políticas no país (e na America Latina de modo geral). A obra de Jesse Souza representa também um excelente motivo para repensarmos a incrível falta de criatividade intelectual da produção em ciência social no país, sempre voltada às grandes interpretações de autores pretéritos e distante dos problemas imediatos produzidos pelas sociedades democráticas.