sábado, 29 de outubro de 2016

Workshop: Filosofia e Pobreza (Salzburg, 2017)

O Center for Ethics and Poverty Research da Universidade de Salzburg (Austria) organizará, em junho de 2017, um workshop de filosofia política dedicado ao tema da pobreza e seu impacto na dignidade humana. A submissão de propostas estão abertas até o dia 15 de fevereiro.  O palestrante convidado do evento será H. P. P. Lotter (Johannesburg) autor do livro Poverty, Ethics and Justice (Chicago Press, 2011). O comitê organizador privilegiará trabalhos de pesquisadores e pesquisadoras em início de carreira e que dialoguem diretamente com o livro de Lotter. 


Workshop in Philosophy and Poverty

University of Salzburg, 1 & 2 June 2017
Submission deadline: 15 February 2017
The Centre for Ethics and Poverty Research (CEPR) of the University of Salzburg is happy to announce the call for papers for its 2017 Salzburg Workshop in Philosophy and Poverty. The workshop will be held at the University of Salzburg on 1 & 2 June 2017. H.P.P. [Hennie] is the invited speaker for this workshop
We invite scholars to submit papers on any topic of philosophical inquiry into poverty. Possible topics include poverty as an issue of global or social justice, human rights and poverty, the ethical obligation of poverty alleviation and the design of poverty alleviation measures or philosophical issues in poverty measurement, the conception of poverty and poverty research.
Preference will be given to scholars in the earlier stages of their careers and to papers that are related to the topic of the talk of the invited speaker. In 2017 H.P.P. [Hennie] Lötter will be the invited speaker with a paper on: Poverty and Human Dignity.
The workshop will run over two days and each speaker will have 75 minutes (about 25 minutes for presentation and 50 minutes for discussion). Drafts are shared in advance and speakers can focus on the key points of their paper in the oral presentation. A peer-reviewed publication of selected papers is envisaged in an edited volume on the workshop topic in the Springer Book Series Philosophy and Poverty. We hope that particpiants will consider this option to publish their paper presented at the Workshop.
There is no conference fee. Coffee breaks and two lunches will be covered by the CEPR. Unfortunately we cannot offer any subsidy for travel and accommodation costs, but accommodation at a hotel next to the venue can be offered at a reduced rate.
If you are interested in participating please submit an extended abstract of 750 words ready for blind review via the submission form on the Workshop homepage. Deadline for submissions is 15 February 2017, and decisions will be communicated within two weeks. It is expected that draft versions of the papers are shared two weeks before the workshop.
H.P.P. [Hennie] Lötter is Professor of Philosophy at the University of Johannesburg. Hennie’s research interests are in political philosophy and philosophy of science. He is the author of several articles on poverty, and the monograph “Poverty, Ethics and Justice” (University of Wales Press, 2011). This book has also been subject of two recent symposia in Res Publica (with Darrel Moellendorf, Gillian Brock, and Thaddeus Metz) and the International Journal of Applied Philosophy (with Taddheus Metz, Daryl Glaser, and Tristen Taylor).


Nota de protesto da ANPOF sobre o desmonte da pesquisa acadêmica no Brasil

Durante o último Encontro Nacional de Pós-Graduação em Filosofia em Aracajú (SE), a nova direção da ANPOF divulgou uma carta para a comunidade filosófica brasileira na qual chama atenção para as decisões anti-democráticas do governo Temer em relação ao ensino público brasileiro e o desmonte da estrutura de pesquisa e desenvolvimento científico no país. A carta segue a nota de protesto assinada pelos membros dos comitês assessores do CNPq diante da demanda arbitrária de corte de 30% das bolsas de produtividade concedidas pelo conselho e da intimidação dos pesquisadores e pesquisadoras contrários às decisões arbitrárias do governo Temer. 

A carta pode ser lida na íntegra:


Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia - ANPOF

Carta de Sergipe

Sobre o desmonte da educação e o corte de verbas para a pesquisa e a democracia no Brasil.

A comunidade filosófica brasileira, reunida em Aracaju por ocasião do XVII Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia - ANPOF, vem a público repudiar o modo autoritário e avesso ao diálogo como têm sido tratadas as questões atinentes à Educação e à Pesquisa no Brasil.

Somos radicalmente contrários ao abandono do projeto educacional construído democraticamente nos últimos anos e que pode levar à redução drástica do papel da Filosofia na formação da juventude. É inaceitável que uma Reforma Educacional seja implantada no país a toque de Medida Provisória, na ausência de qualquer discussão pública.

Manifestamos a nossa indignação com o desmonte do Estado brasileiro e com a adoção de políticas que estão em franco desacordo com a plataforma que recebeu a chancela da maioria dos eleitores no pleito presidencial de 2014.

Repudiamos veementemente a subordinação do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação ao Ministério das Comunicações, bem como os cortes no financiamento público da Pesquisa em nível de Pós-Graduação, medidas que revelam falta de compromisso com a produção de ciência e tecnologia no país.  Recebemos com muita apreensão a notícia de provável corte de cerca 30% das bolsas de produtividade em pesquisa do CNPq. Além do mais, os cortes no financiamento das universidades públicas federais invertem a tendência de expansão da estrutura universitária dos últimos anos que, aliada à lei 12.711/2012, permitiu o ingresso de jovens até então alijados do ensino universitário. Reduzindo recursos, inclusive para as políticas de permanência estudantil, a inclusão desses jovens encontra-se seriamente comprometida.

O ápice desse processo de desmonte do Estado é a proposta da PEC-241, que prevê o congelamento de investimentos nacionais em saúde e educação pelos próximos 20 anos. Essa medida está sendo aprovada de maneira apressada e provocará impactos devastadores, levando ao sacrifício das condições elementares de vida das camadas mais pobres da população.

Finalmente, condenamos a repressão violenta que tem se abatido sobre aquelas e aqueles que se manifestam publicamente contra políticas e medidas educacionais antidemocráticas, inclusive as que atacam diretamente o Ensino Médio. A democracia requer liberdade de manifestação e não sobrevive quando professoras, professores e estudantes não são ouvidos e respeitados, mas reprimidos e silenciados.

Sergipe, 21 de outubro de 2016.

domingo, 23 de outubro de 2016

Caminhos para uma sociedade igualitária

O filósofo inglês Martin O'Neill (York) ministrou uma palestra na Universidade de York acerca dos fundamentos econômicos da política de predistribuição, em particular o papel da teoria do economista James Meade e sua obra de 1964, Eficiência, Igualdade e Propriedade Econômica (em uma tradução livre do original em inglês), para o chamado movimento predistributivo. Martin O'Neill é uma das principais vozes de um grupo de autores e autoras que vêem na ideia de predistribuição um passo necessário na luta contra a desigualdade e um princípio impossível de ser ignorado por partidos e movimentos de esquerda no século XXI. Lembremos, por exemplo, que outro autor fundamental para pensarmos as possibilidades do socialismo nas democracias contemporâneas, o francês Thomas Piketty, afirma em sua obra O Capital no Século XXI que sua pesquisa deveria ser entendida como uma continuação da obra de Meade.

Em sua curta palestra, O'Neill traça um paralelo convincente entre, de um lado, a desigualdade econômica no começo do século XXI e o prognóstico sombrio proposto por Meade na década de 60 a respeito do futuro da composição da riqueza social em sociedades industriais. Segundo Meade, não se deveria esperar (tal como foi esperado no entanto) que a divisão entre os ganhos do trabalho e o retorno do capital mantivesse a proporção relativamente igualitária encontrada nos países europeus pós-Segunda Guerra (cerca de 2/3 para o trabalho e 1/3 para o capital). Deveríamos esperar, ao contrário, uma tendência secular de diminuição global da remuneração do trabalho vis à vis o aumento da automação da produção. Em uma economia de uso intensivo de capital, com pouca demanda por trabalho não-qualificado na indústria, a grande parte dos indivíduos sem propriedade terá que lutar entre si por empregos precarizados no setor de serviços - no caso, serviços para os proprietários do capital produtivo.          

Isso significa que, consequentemente, deveríamos esperar também o crescimento da desigualdade econômica nas sociedades ricas. É interessante notar que essa conclusão, por exemplo, foi corroborada em parte pela OECD em 2015 com um relatório sobre o papel do trabalho na composição econômica dos países ricos. O estudo menciona também, ainda que de modo independente, uma "tendência secular" da diminuição dos ganhos provenientes do trabalho que, em média, teria diminuindo 0,3% ao ano entre 1980 e o ano 2000 nos países membros da OECD vis à vis a remuneração do capital. Além disso, Meade tinha perfeita consciência que uma economia fundada no capital, e não mais no trabalho, possui efeitos indesejáveis para as demais esferas da vida democrática, tal como, por exemplo, a obsessão de milionários em converter seu poder econômico em poder político e a pauperização de trabalhadores não-qualificados. Como afirma Meade:

Most discussions about the social and economic problems which will arise in an automated world run in terms of the rise in real output and real income per head of the population. What, we ask, shall we all do with our leisure when we need to work only an hour or two a day to obtain the total output of real goods and services needed to satisfy our wants? But the problem is really much more difficult than that. The question which we should ask is: What shall we all do when output per man-hour of work is extremely high but practically the whole of the output goes to a few property owners, while the mass of the workers are relatively (or even absolutely) worse off than before?  

Qual a solução diante desse cenário distópico? Aqui reencontramos a ideia de predistribuição recuperada pelos trabalhos de O'Neill. Meade formula e "testa" diferentes modelos socioeconômicos a partir de seu potencial em enfrentar essa tendência. Dois resultados chamam nossa atenção. Em primeiro lugar, Meade reconhece os limites de propostas centradas apenas na proteção do trabalho, como, por exemplo, o fortalecimento de sindicatos, ou apenas na taxação e redistribuição da renda. Isso porque se o diagnóstico da tendência estrutural para o aumento da composição do capital estiver correto, tornar o trabalho excessivamente caro seria, ao mesmo tempo, indesejável frente à competição internacional com países não-igualitários, e ineficiente, dado que o crescimento proporcional da renda do capital permaneceria muito superior a do trabalho. A clivagem fundamental no cenário de Meade não se dá entre rendimentos elevados e rendimentos baixos, mas sim entre rendimentos do capital e rendimentos do trabalho.

A proposta de Meade é muito mais radical: precisamos coletivizar a remuneração do capital. Existe uma diferença fundamental - mas pouco notada - entre a composição do capital na economia, isto é, qual a fatia da produção econômica advém do emprego do capital, e a propriedade ou poder de decisão (duas relações diferentes) desse capital. Caso a economia se torne capital-intensiva isso não significa, a rigor, que a sociedade será mais ou menos igualitária. Desigualdade depende dos instrumentos de controle e propriedade sobre esse capital. Evidentemente, nas sociedades que conhecemos a propriedade de capital é extremamente concentrada - a ponto de ser menor do que 5% entre os 50% mais pobres mesmo nas sociedades ricas e 0% em países em desenvolvimento como o Brasil. Logo, Meade defende que, ao invés de apenas redistribuir os ganhos crescentes do emprego do capital na produção, deveríamos também predistribuí-lo por assim dizer garantindo que os indivíduos tenham acesso a esse capital e produzam, eles próprios, sua remuneração. 

A grande vantagem da proposta de Meade é, como enfatiza O'Neill, a dupla possibilidade de coletivização:  pública e privada. A solução clássica do socialismo (também defendida por Meade em sua obra, é importante enfatizar) é a socialização de parte dos meios de produção e dos recursos naturais. Isso pode ser realizado, por exemplo, na forma de fundos soberanos como o fundo do petróleo norueguês que, segundo O'Neill conta com 1% de todas as ações do mundo. Um fundo soberano poderia pagar uma espécie de "dividendo social" para todos os membros da sociedade, aumentando a renda do trabalho não qualificado. Contudo, Meade explora a possibilidade de mecanismos privados de dispersão de capital, como uma dotação básica de capital para todos os cidadãos e cidadãs (hoje chamada de capital básico incondicional) via abolição da herança. Para aqueles e aquelas que conhecem a filosofia política de John Rawls, esse é o principal argumento normativo por trás da defesa de uma democracia de cidadãos proprietários tal como apresenta em Uma Teoria da Justiça e Justiça como Equidade: Uma Reformulação (ver aqui uma edição especial da revista Diacrítica sobre o tema).

Ainda que tenhamos muito o que conquistar e, principalmente do Brasil pós-golpe de 2016, muito o que lutar para manter as proteções históricas do trabalho e os mecanismos redistribuitivos civilizatórios conquistados a duras penas, uma esquerda que não consiga pensar os desafios igualitários do acumulo de capital estaria, segundo os teóricos da predistribuição, fadada à irrelevância. No momento em que precisamos repensar os fundamentos da esquerda brasileira sobretudo, como tem sido bastante debatido, sua matriz econômica, talvez esse seja o momento para darmos mais espaço para a luta pela predistribuição. 




Political philosopher Martin O’Neill investigates the idea that market reforms could be used to encourage a more equal distribution of economic power and rewards. He shows how debate about the idea of ‘predistribution’ connects to the neglected work of the Nobel prize-winning economist James Meade, who championed the idea of what he called a ‘property-owning democracy’. Meade's theory was conceived as a stage in the development of social democracy beyond the welfare state and has relevance for today’s political debates about creating a more equal and just society.


- Martin O'Neill & Thad Williasom: "The Promisse of Pre-distribution"

- James Meade: Efficiency, Equality and the Ownership of Property

- Property-Owning Democracy (Diacrítica)


segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Livro: Rawls, Political Liberalism and Reasonable Faith

Paul Weithman (Notre Dame) acaba de publicar o livro Rawls, Political Liberalism and Reasonable Faith, no qual reúne seus trabalhos sobre a filosofia política de John Rawls. O fio condutor da obra é o papel que a religião pode desempenhar em uma sociedade justa e como essa questão permeia os escritos rawlsianos como um todo. O livro conta com artigos que tratam desde a tese de graduação de Rawls antes da II Guerra - ocasião na qual Rawls teria perdido sua a fé cristã após visitar, como soldado aliado, uma Hiroshima arrasada pela bomba - até a  célebre formulação da ideia de razão pública e a possibilidade de cidadãos e cidadãs desenvolverem uma '"fé razoável", isto é, compatível com as demandas de justificação de uma autoridade política justa. 

Recentemente, Weithman chamou a atenção da comunidade de estudiosos de Rawls com uma proposta interpretativa de unificação da obra de Rawls levando a sério a proposta de uma concepção essencialmente política de justiça, em oposição a concepção de filosofia política como, meramente, filosofia moral aplicada (um resumo dessa interpretação pode ser encontrada abaixo no capítulo 5). Com o livro Weithman defendeu uma "virada política" na forma de interpretar o contratualismo rawlsiano notando, por exemplo, a continuidade e a importância que o problema da estabilidade na adesão aos princípios de justiça representa para o contratualismo desde Uma Teoria da Justiça. Nesse sentido, Weithman faz parte dos estudiosos de Rawls que rejeitam a interpretação segundo a qual em sua obra tardia, especialmente O Liberalismo Político de 1993, Rawls teria reformulado de modo significativo os objetivos de sua teoria da justiça. Para Weithman, o principal objetivo de Rawls sempre foi responder a pergunta: como podemos viver autonomamente dadas as restrições impostas pela sociedade contemporânea e pelos limites da razão?

Alguns dos capítulos do livro podem ser encontrados nos links abaixo.




For over twenty years, Paul Weithman has explored the thought of John Rawls to ask how liberalism can secure the principled allegiance of those people whom Rawls called 'citizens of faith'. This volume brings together ten of his major essays (including one new unpublished essay), which reflect on the task and political character of political philosophy, the ways in which liberalism does and does not privatize religion, the role of liberal legitimacy in Rawls's theory, and the requirements of public reason. The essays reveal Rawls as a thinker deeply engaged with political and existential questions that trouble citizens of faith, and explore how - in firm opposition to political realism - he tries to show that the possibility of liberal democracy and the natural goodness of humanity are objects of reasonable faith. The volume will be of interest to political philosophers, political theorists, moral theologians, and religious ethicists.


Introduction

Part I. The Undergraduate Thesis:


Part II. From Theory to Political Liberalism:


Part III. Public Reason and its Role:

6. Citizenship and public reason
7. Inclusivism, stability and assurance

Part IV. Rawls, Realism and Reasonable Faith:

9. Law of peoples and Christian realism
10. Does justice as fairness have a religious aspect


sábado, 15 de outubro de 2016

Nancy Fraser e a Crise do Cuidado

A revista Dissent publicou uma edição especial dedicada à teoria feminista. As possibilidades e os limites presentes nas estratégias feministas atuais são apresentadas e discutidas por oito pesquisadoras de diferentes países e tradições teóricas. Dentre as colaborações, a filósofa Nancy Fraser (New School) concedeu uma longa entrevista na qual faz um balanço de sua obra e discute sua ideia de "crise do cuidado", um problema que, segundo Fraser, tem sido gestado pela confluência perversa de uma economia de serviços, de baixa produtividade e com pouca solidariedade entre os trabalhadores e trabalhadoras, e a desregulamentação das relações de trabalho nos regimes neoliberais, o que obriga os responsáveis pela reprodução da família - sobretudo as mulheres -  à dupla jornada de trabalho (trabalho e cuidado).

As análises de Fraser do final dos anos 80 sobre à divisão sexual do trabalho nas sociedades industriais já estão estabelecidas na teoria política contemporânea. Sua crítica aos pressupostos patriarcais presente em movimentos emancipatórios do pós-guerra (como a social-democracia e o Estado de Bem-Estar Social) contribuíram não apenas para fortalecer a teoria feminista como também obrigou as teorias dos regimes de bem-estar social a darem mais espaço para as relações familiares nas dinâmicas distributivas das sociedades industrializadas.

Como teóricos do Estado de Bem-Estar social já demostraram há bastante tempo, nos modelos de bem-estar social conservador, tais como os encontrados em países como Alemanha, Austria, Itália e, em certa medida, o Brasil, a vinculação de benefícios sociais ao trabalho formal "respeitável" dos que "ganham o pão" da família, foi fundada na decisão política consciente de manter os serviços de cuidado "familiarizados", isto é fora das relações protegidas pelo Estado. Fraser demostrou como a lógica da familiarização e, a fortiori, a exploração dos serviços de cuidado feminino encontra-se presente mesmo em movimentos igualitários anti-conservadores. A luta feminista passa, sobretudo, pelo reconhecimentos de formas não remuneradas de trabalho.

Se por um lado a teoria Fraser foi fundamental para colocar em pauta a luta por reconhecimento, por outro, como fica claro em sua entrevista para a ativista feminista Sarah Leonard, o trabalho atual de Fraser consiste em alertar para um novo tipo de confluência perversa entre, de um lado, um certo tipo de feminismo pautado pela demanda de reconhecimento das mulheres em posições de poder e, de outro, a agenda neoliberal de precarização do trabalho. Nancy Fraser retoma o argumento central do seu último livro Fortunes of Feminism, a crise do cuidado nas sociedades ricas. Em linhas gerais, o argumento sustenta que a destruição dos regimes de bem-estar social, e a consequente diminuição do salário real das famílias, aumentou drasticamente a necessidade de trabalho/hora tornando a familia com "duas carreiras" - na qual os dois adultos precisam participar do mercado de trabalho para garantir a reprodução física dos dependentes - a norma e não mais a excessão da reprodução social. O problema, como enfatiza Fraser, está não apenas na precarização global das relações de trabalho, algo relativamente consensual na literatura, mas também na impossibilidade física das mulheres (em geral, as responsáveis pelo cuidado das crianças e idosos) em desempenharem ao mesmo tempo as duas formas de reprodução precarizada: a material e a social.




Today, of course, the family wage ideal is dead. It’s a casualty, on the one hand, of the fall in real wages, which makes it impossible to support a family on a single salary (unless one belongs to the 1 percent); and on the other hand, of the success of feminism, which delegitimized the idea of women’s dependency that was built into the family wage. As a result of this one-two punch, we now have the new norm of the “two-earner family.” Sounds lovely, doesn’t it—assuming you’re not single? Like the family wage ideal, however, this too is an obfuscation. It mystifies the steep rise in the number of hours of paid work now required to support a household, and if the household includes children or elderly relatives or people who are sick or disabled and cannot function as full-time wage earners, then so much the worse. And if it’s a single-parent family, it’s even worse than that. Now add to this that the two-earner ideal is being promoted at a time of cutbacks in state provision. Between the need for increased working hours and the cutback in public services, the financialized capitalist regime is systematically depleting our capacities for sustaining social bonds. This form of capitalism is stretching our “caring” energies to the breaking point. This “crisis of care” should be understood structurally. By no means contingent or accidental, it is the expression, under current conditions, of a tendency to social-reproductive crisis that is inherent in capitalist society, but that takes an especially acute form in the present regime of financialized capitalism

O ponto é importante e sutil. Feministas neoliberais como Hilary Clinton (o exemplo mais acabado dessa posição segundo Fraser) lutariam, corretamente, pela maior visibilidade das mulheres no mundo do trabalho, argumentando que a participação feminina na reprodução material da sociedade é um mecanismo importante de empoderamento das mulheres em relação às formas de dominação familiar. Contudo, ressalta Fraser, essa forma de feminismo acaba sendo conivente, por outro lado, com o desmonte das instituições públicas e universalistas que desoneram os serviços de cuidado necessários à reprodução social. O resultado é um tipo de teoria feminista para o 1% corporativo, enquanto a reprodução social é realizada, cada vez mais nas sociedades ricas, por mulheres imigrantes:
Feminists rejected the ideal of the family wage as an institutionalization of female dependency—and rightly so. But we did so at just the moment when the relocation of manufacturing kicked the bucket out from under the idea economically. In another world, feminism and shifts in industry might not have reinforced one another, but in this world they did. As a result, even though feminist movements did not in any way cause that economic shift, we ended up unwittingly supplying some legitimation for it. We provided some charisma, some ideological ballast to others’ agendas.
But let’s not forget, meanwhile, that there really are neoliberal feminists who are completely on board with this agenda, who represent the 1 percent. Dare I say it looks like we’re about to elect one of them as president of the United States. Neoliberal feminists are feminists, by the way; we can’t say they’re not. But in that strand of feminism we see feminist ideas simplified, truncated, and reinterpreted in market-friendly terms, as for example, when we come to think of women’s subordination in terms of discrimination that prevents talented women from rising to the top. Such thinking validates the entire hierarchical corporate imaginary. It legitimates a worldview that is fundamentally hostile to the interests of the majority of women, indeed of all people throughout the world. And this version of feminism provides an emancipatory veneer for neoliberal predation.

O verdadeiro desafio do feminismo contemporâneo, segundo Fraser, estaria na reformulação de um ideal socialista emancipado dos antigos pressupostos patriarcais que o orientaram nos últimos dois séculos. Uma tarefa que, diante da atual crise do cuidado, permanece tão urgente quanto longe de estar acabada.


sábado, 8 de outubro de 2016

Desigualdades: Pensando o Conceito (CEM)

Na próxima terça-feira, o Centro de Estudos da Metrópole (CEM) promove um seminário dedicado ao conceito de desigualdade e como ele tem sido pensando e medido em diferentes áreas da ciência social. O programa do evento conta com alguns dos principais pesquisadores e pesquisadoras sobre o tema na academia brasileira, como o antropólogo Gabriel Feltran (UFSCAR), as cientistas políticas Marta Arretche (USP) e Célia Lessa (UFF), o sociólogo Marcelo Medeiros (IPEA) e o teórico político Álvaro de Vita (USP). O evento é aberto ao público.

O CEM tem se dedicado nos últimos anos a entender as diferentes dimensões da desigualdade social no Brasil e como esses padrões mudaram (se mudaram) nas últimas décadas. Recentemente, alguns dos principais resultados do centro foram publicados em um formato de divulgação científica pela Oxfam Brasil em seu dossiê Cade Vez Mais Desigual?



Seminário CEM - Centro de Estudos da Metrópole
Desigualdades: pensando o conceito


No dia 11 de outubro de 2016 (terça-feira), o Centro de Estudos da Metrópole (CEM/Cepid) promove na Cidade Universitária, o seminário que reúne intelectuais motivados tanto por reflexões normativas quanto por estudos empíricos para discutir suas concepções sobre o conceito de desigualdade social e sobre as métricas para analisar seu comportamento. 

Resumo: a desigualdade social ganhou grande centralidade no debate acadêmico e político. O tema, porém, tem sido abordado através de múltiplas dimensões, diferentes conceitos e métricas. O fato é que há muitas maneiras de julgar e medir a desigualdade. Mais que isto, medidas estão associadas a orientações normativas sobre redistribuição. O estudo da desigualdade de renda esgota o problema ou há outras dimensões a considerar? 

A universalização do acesso a serviços públicos é suficiente para a redução das desigualdades? A inclusão das dimensões raciais, de gênero e de participação política são requerimentos essenciais do ideal normativo de redução da desigualdade? Este seminário pretende reunir intelectuais motivados tanto por reflexões normativas quanto por estudos empíricos para discutir suas concepções sobre o conceito de desigualdade social e sobre as métricas para analisar seu comportamento. 

Programa

9h00 - Abertura - Gabriel Feltran (CEM/UFSCar) 
MESA 1 – MEDIDAS DA DESIGUALDADE

9h30 - Limitaciones del número promedio en el estudio de las desigualdades y de su producción espacial  - Francisco Sabatini (PUC/Chile) 
O índice Gini, como ocorre com outros números promédio, conduz a resultados contraditórios - Gini, por exemplo, a desigualdades vinculadas a mobilidade social. Para resolver essas contradições é necessário considerar os aportes da "adolescência urbana" e do "efeito bairro", entre outros fenômenos associados a nível de segregação residencial, na produção das desigualdades ou da equidade social.

10h00 – Problemas fundamentais da mensuração das desigualdades - Marcelo Medeiros (IPEA) [ via skype ]
A apresentação discute problemas fundamentais da mensuração da desigualdade: a definição de desigual e a definição das distribuições sociais. Argumenta que a solução do problema depende de uma teoria de justiça.

10h30 - Medidas de desigualdade e concepções de bem-estar - Marta Arretche (CEM/USP)
A apresentação retomará o debate das ciências sociais no século XX para argumentar que medidas de desigualdade não são neutras. Em vez disto, toda mensuração da desigualdade está baseada em preferências normativas (implícitas ou explícitas) sobre quais devem ser os componentes do bem-estar e em quais níveis de redistribuição são desejáveis. A apresentação defenderá que noções de bem-estar que vão além da dimensão renda e que promovam patamares básicos para uma vida decente devem orientar a construção de medidas de desigualdade. 

11h - Debate

12h - Intervalo - almoço


MESA 2 – DIMENSÕES DA DESIGUALDADE

14h30 - Desigualdades urbanas e segregação - Eduardo Marques (CEM/USP)
A apresentação discutirá as relações entre segregação residencial e desigualdades sociais na cidade. Para uma parte da literatura urbana clássica, os padrões de segregação representam uma expressão espacial das desigualdades sociais. Partindo de uma crítica dessa premissa, a apresentação define segregação como separação espacial de grupos sociais em espaços relativamente homogêneos e distantes entre si. Para especificarmos o lugar da segregação em todo esse campo conceitual, é necessário separar a espacialização das desigualdades sociais - a distribuição no espaço de desigualdades de raça e gênero, por exemplo, das facetas espaciais das desigualdades - quando elementos associados ao espaço se mostram conectados propriamente com a produção e reprodução das desigualdades.

15h - Mercado de solo, estrutura urbana e desigualdade  - Pedro Abramo (IPPUR)
A desigualdade social é um conceito polifônico e abarca uma conjunto amplo de dimensões que se refletem tanto nos processos da sua produção como na sua métrica. A apresentação que propomos sublinha uma dimensão particular da produção da desigualdade que é a relação entre o acesso a terra urbana e a forma da estrutura urbana resultante do funcionamento do mercado fundiário e imobiliário urbano. Propomos uma taxonomia do mercado de solo urbano em dois grandes sub-mercados (formal e informal) e discutimos as suas características gerais e como surge uma forma urbana particular que se articula com as desigualdades sócio-espacias e a distribuição desigual dos equipamentos e serviços. 

15h30 - Emprego, serviços sociais públicos e desigualdade no Brasil - Celia Lessa (UFF)
Há muito boas razões para expandir serviços sociais públicos no Brasil. A comunicação se concentra em razões de natureza instrumental, apresentando resultados de pesquisa empírica sobre um canal por meio do qual a expansão de serviços públicos sociais pode contribuir para a redução das desigualdades, o mercado de trabalho. 

16h00 - Justiça e igualdade - Álvaro de Vita (USP)
A concepção rawlsiana de justiça social oferece uma interpretação sobre a forma de igualdade que é normativamente apropriada para uma sociedade democrática. Essa interpretação pode ser criticada não somente por concepções não igualitárias de justiça como também por posições alternativas no campo do próprio igualitarismo. O contraste entre uma dessas posições, a do enfoque da capacidade de Amartya Sen e Martha Nussbaum, e a justiça rawlsiana será examinado.

16h30 - Debate

17h15 - Sínteses preliminares - Gabriel Feltran (CEM/UFSCar)
17h30 - Encerramento 


Informações gerais
Quando11 de outubro de 2016 (terça-feira), das 9 às 17h30
OndeSala 14, Prédio da Filosofia e das Ciências Sociais, FFLCH-USP
Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária.

Aberto a todos os interessados sem necessidade de inscrição prévia

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Mídia e democracia: o que pode ser feito?

Quando paramos para refletir sobre as eleições municipais de 2016 chegamos a uma conclusão paradoxal. Por um lado, a maioria dos analistas e editoriais afirmam que os resultados eleitorais nas prefeituras e câmaras municipais são explicados, em grande medida, pelo chamado "fator da corrupção" na escolha do candidato ou candidata. Por outro, quando verificamos os dados eleitorais descobrimos que a explicação hegemônica encontrada nos meios de comunicação não pode ser verdadeira. 

Afinal, se o fator corrupção fosse verdadeiro, como explicar, por exemplo, que o PP, partido que conta com mais de 30 políticos investigados na Lava Jato, ou o próprio PMDB, notório pelo envolvimento de suas lideranças em praticamente todos os esquemas de corrupção desde a redemocratização (incluindo, claro, a própria Lava Jato) tenham aumentado sua representação nas prefeituras brasileiras? Ou que apenas uma mulher foi eleita no primeiro turno em uma capital (justamente, do PMBD)? Ou ainda que o número de candidatos milionários cresceu à revelia de candidaturas que representam outros setores sociais? (Para não entrar no mérito, evidentemente, das distorções das próprias candidaturas: apenas 8% dos candidatos se declarou negro. Mas isso é assunto para outro post). A grande mídia brasileira gostaria de nos convencer que a concluir que a corrupção no Brasil é majoritariamente feminina, pobre e praticada por partidos de esquerda e que, ao contrário, a responsabilidade na gestão pública é típica de homens brancos proprietários.

O exemplo serve para ilustrarmos duas lições sobre a relação entre mídia e democracia. Primeiro, que o custo da informação em sociedades complexas é extremamente elevado mesmo para quem se importa com política. Narrativas moralistas e simplificações da realidade são atalhos cognitivo inevitáveis quando temos que comunicar em grande escala. Em segundo lugar, que não podemos falar em opinião pública independentemente do mercado de informação no qual ela ganha forma. Se, como no nosso exemplo, o fator corrupção importa para explicar o voto (um problema em aberto) então seria preciso ter em mente que estamos falando da percepção da corrupção e que essa depende da forma como a informação política é vendida na sociedade. Podemos explicar a discrepância ideológica entre corruptos por meio da dupla seletividade operada na cobertura da crise política brasileira: penalização sistemática da representação progressista e absolvição silenciosa da representação conservadora. 

Inevitavelmente, qualquer "fato" político passa por uma série de seleções e enquadramentos que, por sua vez, são influenciados pelas disputas políticas e econômicas presentes no próprio campo midiático. A mídia reapresenta a política, mas ela também é a política. O enquadramento seletivo e as desigualdades de acesso à esfera pública são fenômenos presentes em qualquer democracia conhecida. Contudo, a formatação da opinião pública por empresas privadas ganha uma dimensão trágica no contexto brasileiro, no qual a propriedade dos meios de comunicação e a estrutura de comunicação de nível nacional são extremamente concentradas. Caso não consigamos pluralizar a informação e garantir a entrada e permanência de novas vozes no mercado de informação, corremos o risco de criarmos um sistema político no qual temos representação pública, mas  accountability privado

Sabemos de tudo isso. A grande dificuldade, na verdade, não é reconhecê-la, mas sim transformá-la. Precisamos pensar (ou, se preferir, imaginar) o que pode ser feito a esse respeito. Se a esquerda está morrendo na arena política (outra questão em aberto), então parte disso pode ser explicado pela incapacidade de lideranças progressistas em oferecer um projeto sistemático e de longo prazo para combatermos problemas estruturais da sociedade brasileira, tal como o oligopólio dos meios de comunicação no país. 

O pesquisador Renato Francisquini (UFSC) procurou contribuir para esse projeto com seu artigo Democracia e Sistema Midiático: uma proposta de regulação, publicado no dossiê sobre opinião pública e política dos cadernos Perseu Abramo. No artigo, Francisquini defende um modelo específico de regulação do mercado de informação brasileiro orientado por um ideal de liberdades equitativas de expressão entre os participantes de uma democracia.

Se assumimos que um regime democrático é caracterizado por sua responsividade aos interesses e demandas de seus participantes e que a pluralidade de valores é uma característica irredutível de uma sociedade democrática, na medida em que cidadãos e cidadãs valorizam a livre-expressão de suas opiniões e valores,  então a única estrutura dos meios de comunicação compatível com a democracia é aquela que garanta esses dois pressupostos normativos fundamentais: responsividade e pluralismo. Historicamente, Francisquini identifica dois modelos teóricos antagônicos de regulação que prometem atender a esses dois pressupostos: o modelo comercial e o modelo estatal. 

Segundo o modelo comercial, tanto a responsividade como o pluralismo são alcançados por meio de um "livre-mercado de ideias", isto é, um sistema midiático no qual o Estado e a política partidária se abstêm da produção e distribuição de informação, deixando-as à cargo de grupos de interesse organizados que, com o tempo, passam a ser estruturados na forma de empresas privadas de comunicação. Uma esfera pública responsiva e plural é protegida por meio de um mecanismo de mercado: o alcance e qualidade de uma manifestação particular, perspectiva ou mesmo a cobertura de um fato, são determinadas pelo "investimento" que os agentes do mercado de informação estão dispostos a fazer para obtê-las. Pesquisas de opinião pública e audiência são indicadores cruciais para orientar a competição entre as empresas pela atenção e fidelidade dos expectadores, o que, por sua vez, levaria à busca constante por fontes de informação mais confiáveis e de melhor qualidade. Na verdade, a "regulação" proposta pelo modelo comercial é uma mistura de desregulação, em relação ao Estado, e proliferação, em relação as diferentes empresas de comunicação. 

Os limites do modelo comercial são conhecidos. Em primeiro lugar, as condições de competição no mercado de ideas estão longe de serem perfeitamente competitivas. As posições iniciais se mostram, ao contrário, radicalmente desiguais quando reconstruímos as origens históricas dos sistemas de concessão. No Brasil, por exemplo, os principais grupos de comunicação atuais foram criados, ou apoiados, pela força das armas e pelo dinheiro do regime militar, o que viola a regra de ouro do sistema de mercado: empresas ruins deveriam falir. Além disso, devemos nos perguntar se um sistema de preço é a melhor forma de distribuir informação na sociedade. Basta o público não querer pagar por um tipo de manifestação ou por uma perspectiva presente na sociedade para que ela seja banida da esfera pública. 

Já no modelo regulatório fundado no Estado, agências públicas seriam responsáveis por diversificar os tipos e a abrangência das manifestações, bem como impedir a concentração privada dos meios de comunicação. Isso poderia ser feito de dois modos. Diretamente, através da criação de uma sistema público de comunicação (no estilo BBC e TV Cultura), ou indiretamente, por meio de um sistema público de concessões e incentivos fiscais. Ainda que, como Francisquini procura demostrar, a produção direita de informação seja apenas uma parte menor do modelo estatal, os riscos desse modelo de regulação para o accountability político são óbvios: existe o risco permanente do uso estratégico dos canais de informação contra a oposição. 

Resta saber, então, qual seria a melhor solução para a regulação da mídia. Como disse, Francisquini rejeita o dualismo convencional entre os modelos e propõe uma terceira forma de compreender as relações necessárias, porém problemáticas, entre Estado, mercado e esfera pública. Influenciado pelo ideal de democracia deliberativa formulado por autores como Joshua Cohen (Stanford) e Leonardo Avritzer (UFMG), Francisquini defende que a melhor forma de assegurar os ideais deliberativos presentes em uma esfera pública plural e responsiva é por meio da democratização das próprias estruturas responsáveis pela regulação pública do mercado de informação. Ao invés de demandar que o Estado faça a regulação, seria preferível encontrar formas de possibilitar uma maior participação dos atores da própria esfera civil nos próprios espaços decisórios responsáveis pela criação dos marcos legais da área. Não se trata, portanto, nem de impedir a ação estatal a todo custo, nem de intervir no conteúdo comunicativo do mercado de informação, mas sim de regulá-lo à luz das diferentes demandas e valores presentes na sociedade.  Como afirma o autor:

De acordo com essa visão, a deliberação pública entre iguais aparece como um ideal a ser alcançado, mas também como o meio mais adequado para promovê-lo. Aparece como um programa político, portanto, a promoção de estruturas nas quais os cidadãos possam participar mais diretamente das decisões coletivas, inclusive daquelas que dizem respeito às próprias estruturas de deliberação. Assim, as formas de regulação, com o intuito de promover um sistema mediático mais apropriado à discussão pública e uma dinâmica institucional pautada por essa ideia de democracia, não seriam nem as do livre mercado nem as do Estado como agente. Antes, elas seriam discutidas e definidas em fóruns públicos temáticos, conferindo efetividade aos direitos de expressão e comunicação. Seriam três as características fundamentais destas arenas públicas: 1) elas devem permitir e encorajar contribuições que reflitam experiências e temáticas que não ocupam a agenda pública tradicional; 2) devem possibilitar a avaliação disciplinada e cuidadosa das propostas que ora venham a examinar mediante uma forma de deliberação que englobe valores políticos fundamentais; e 3) devem promover ocasiões regulares e institucionalizadas de participação dos cidadãos nos processos de decisão coletiva (p. 100). 

No modelo deliberativo, as demandas sociais, ao mesmo tempo, informam o livre-mercado de informação e os fóruns e conselhos de políticas de comunicação, sejam elas diretas, na forma de canais públicos e comunitários, ou indiretas, como conferências temáticas. Isso não significa, necessariamente, que a participação da sociedade civil na organização de um marco regulatório comum seria isenta de problemas, que ela estivesse imune, por exemplo, às desigualdades de participação produzidas pelo mercado. O ponto, tal como entendo o argumento, é que ao incluirmos mais uma forma de participação, um tipo de representação na qual os agentes não se identificam imediatamente nem com os interesses do mercado nem com as da burocracia, abriríamos espaço para formas experimentais de organização das demanda sociais e com um potencial emancipatório muito superior ao da burocracia estatal. 

Ainda que o modelo deliberativo possa, de fato, orientar nossas expectativas de transformação da esfera pública no país e que o trabalho de Francisquini cumpra o papel de orientação prática dos esforços de transformação, acredito que dada a situação dramática em que vivemos não devemos abrir mão de nenhum dos modelos abordados pelo texto. Explico.

É importante notar que, ao contrário do que poderíamos esperar, nenhum dos dois modelos regulatórios convencionais (repito: nenhum dos dois modelos) está próximo da realidade brasileira. Poderíamos imaginar que temos algum tipo de regulação comercial-competitiva no Brasil. Mas isso não é verdade. Mesmo as consequências do modelo de livre-mercado de ideias seriam revolucionárias diante do poder de mercado injusto somos coagidos a aceitar diariamente durante o nosso café da manhã. O Grupo Globo e suas afiliadas, por exemplo, controlam sozinho quase 70% do mercado interno de TV brasileiro. Além disso, boa parte das empresas possuem suas sedes (e, portanto, seus interesses) no eixo Rio-São Paulo, o que tende a excluir por completo interpretações alternativas da realidade brasileira. O que quero dizer é que mesmo os defensores xiitas do livre-mercado deveriam estar do nosso lado na luta contra a dominação dos meios de comunicação.

Visto que o discurso da regulação tende a ser apresentado como um tipo de censura ao livre mercado de informação, talvez pudéssemos nos esforçar mais na formação de coalizões entre diferentes posicionamentos. Mesmo uma proposta simples de pluralização comercial e de combate às práticas monopolistas já seria uma conquista radical na curta histórica da nossa esfera pública.