Quando paramos para refletir sobre as eleições municipais de 2016 chegamos a uma conclusão paradoxal. Por um lado, a maioria dos analistas e editoriais afirmam que os resultados eleitorais nas prefeituras e câmaras municipais são explicados, em grande medida, pelo chamado "fator da corrupção" na escolha do candidato ou candidata. Por outro, quando verificamos os dados eleitorais descobrimos que a explicação hegemônica encontrada nos meios de comunicação não pode ser verdadeira.
Afinal, se o fator corrupção fosse verdadeiro, como explicar, por exemplo, que o PP, partido que conta com mais de 30 políticos investigados na Lava Jato, ou o próprio PMDB, notório pelo envolvimento de suas lideranças em praticamente todos os esquemas de corrupção desde a redemocratização (incluindo, claro, a própria Lava Jato) tenham aumentado sua representação nas prefeituras brasileiras? Ou que apenas uma mulher foi eleita no primeiro turno em uma capital (justamente, do PMBD)? Ou ainda que o número de candidatos milionários cresceu à revelia de candidaturas que representam outros setores sociais? (Para não entrar no mérito, evidentemente, das distorções das próprias candidaturas: apenas 8% dos candidatos se declarou negro. Mas isso é assunto para outro post). A grande mídia brasileira gostaria de nos convencer que a concluir que a corrupção no Brasil é majoritariamente feminina, pobre e praticada por partidos de esquerda e que, ao contrário, a responsabilidade na gestão pública é típica de homens brancos proprietários.
O exemplo serve para ilustrarmos duas lições sobre a relação entre mídia e democracia. Primeiro, que o custo da informação em sociedades complexas é extremamente elevado mesmo para quem se importa com política. Narrativas moralistas e simplificações da realidade são atalhos cognitivo inevitáveis quando temos que comunicar em grande escala. Em segundo lugar, que não podemos falar em opinião pública independentemente do mercado de informação no qual ela ganha forma. Se, como no nosso exemplo, o fator corrupção importa para explicar o voto (um problema em aberto) então seria preciso ter em mente que estamos falando da percepção da corrupção e que essa depende da forma como a informação política é vendida na sociedade. Podemos explicar a discrepância ideológica entre corruptos por meio da dupla seletividade operada na cobertura da crise política brasileira: penalização sistemática da representação progressista e absolvição silenciosa da representação conservadora.
Inevitavelmente, qualquer "fato" político passa por uma série de seleções e enquadramentos que, por sua vez, são influenciados pelas disputas políticas e econômicas presentes no próprio campo midiático. A mídia reapresenta a política, mas ela também é a política. O enquadramento seletivo e as desigualdades de acesso à esfera pública são fenômenos presentes em qualquer democracia conhecida. Contudo, a formatação da opinião pública por empresas privadas ganha uma dimensão trágica no contexto brasileiro, no qual a propriedade dos meios de comunicação e a estrutura de comunicação de nível nacional são extremamente concentradas. Caso não consigamos pluralizar a informação e garantir a entrada e permanência de novas vozes no mercado de informação, corremos o risco de criarmos um sistema político no qual temos representação pública, mas accountability privado.
Sabemos de tudo isso. A grande dificuldade, na verdade, não é reconhecê-la, mas sim transformá-la. Precisamos pensar (ou, se preferir, imaginar) o que pode ser feito a esse respeito. Se a esquerda está morrendo na arena política (outra questão em aberto), então parte disso pode ser explicado pela incapacidade de lideranças progressistas em oferecer um projeto sistemático e de longo prazo para combatermos problemas estruturais da sociedade brasileira, tal como o oligopólio dos meios de comunicação no país.
O pesquisador Renato Francisquini (UFSC) procurou contribuir para esse projeto com seu artigo Democracia e Sistema Midiático: uma proposta de regulação, publicado no dossiê sobre opinião pública e política dos cadernos Perseu Abramo. No artigo, Francisquini defende um modelo específico de regulação do mercado de informação brasileiro orientado por um ideal de liberdades equitativas de expressão entre os participantes de uma democracia.
Se assumimos que um regime democrático é caracterizado por sua responsividade aos interesses e demandas de seus participantes e que a pluralidade de valores é uma característica irredutível de uma sociedade democrática, na medida em que cidadãos e cidadãs valorizam a livre-expressão de suas opiniões e valores, então a única estrutura dos meios de comunicação compatível com a democracia é aquela que garanta esses dois pressupostos normativos fundamentais: responsividade e pluralismo. Historicamente, Francisquini identifica dois modelos teóricos antagônicos de regulação que prometem atender a esses dois pressupostos: o modelo comercial e o modelo estatal.
Segundo o modelo comercial, tanto a responsividade como o pluralismo são alcançados por meio de um "livre-mercado de ideias", isto é, um sistema midiático no qual o Estado e a política partidária se abstêm da produção e distribuição de informação, deixando-as à cargo de grupos de interesse organizados que, com o tempo, passam a ser estruturados na forma de empresas privadas de comunicação. Uma esfera pública responsiva e plural é protegida por meio de um mecanismo de mercado: o alcance e qualidade de uma manifestação particular, perspectiva ou mesmo a cobertura de um fato, são determinadas pelo "investimento" que os agentes do mercado de informação estão dispostos a fazer para obtê-las. Pesquisas de opinião pública e audiência são indicadores cruciais para orientar a competição entre as empresas pela atenção e fidelidade dos expectadores, o que, por sua vez, levaria à busca constante por fontes de informação mais confiáveis e de melhor qualidade. Na verdade, a "regulação" proposta pelo modelo comercial é uma mistura de desregulação, em relação ao Estado, e proliferação, em relação as diferentes empresas de comunicação.
Os limites do modelo comercial são conhecidos. Em primeiro lugar, as condições de competição no mercado de ideas estão longe de serem perfeitamente competitivas. As posições iniciais se mostram, ao contrário, radicalmente desiguais quando reconstruímos as origens históricas dos sistemas de concessão. No Brasil, por exemplo, os principais grupos de comunicação atuais foram criados, ou apoiados, pela força das armas e pelo dinheiro do regime militar, o que viola a regra de ouro do sistema de mercado: empresas ruins deveriam falir. Além disso, devemos nos perguntar se um sistema de preço é a melhor forma de distribuir informação na sociedade. Basta o público não querer pagar por um tipo de manifestação ou por uma perspectiva presente na sociedade para que ela seja banida da esfera pública.
Já no modelo regulatório fundado no Estado, agências públicas seriam responsáveis por diversificar os tipos e a abrangência das manifestações, bem como impedir a concentração privada dos meios de comunicação. Isso poderia ser feito de dois modos. Diretamente, através da criação de uma sistema público de comunicação (no estilo BBC e TV Cultura), ou indiretamente, por meio de um sistema público de concessões e incentivos fiscais. Ainda que, como Francisquini procura demostrar, a produção direita de informação seja apenas uma parte menor do modelo estatal, os riscos desse modelo de regulação para o accountability político são óbvios: existe o risco permanente do uso estratégico dos canais de informação contra a oposição.
Resta saber, então, qual seria a melhor solução para a regulação da mídia. Como disse, Francisquini rejeita o dualismo convencional entre os modelos e propõe uma terceira forma de compreender as relações necessárias, porém problemáticas, entre Estado, mercado e esfera pública. Influenciado pelo ideal de democracia deliberativa formulado por autores como Joshua Cohen (Stanford) e Leonardo Avritzer (UFMG), Francisquini defende que a melhor forma de assegurar os ideais deliberativos presentes em uma esfera pública plural e responsiva é por meio da democratização das próprias estruturas responsáveis pela regulação pública do mercado de informação. Ao invés de demandar que o Estado faça a regulação, seria preferível encontrar formas de possibilitar uma maior participação dos atores da própria esfera civil nos próprios espaços decisórios responsáveis pela criação dos marcos legais da área. Não se trata, portanto, nem de impedir a ação estatal a todo custo, nem de intervir no conteúdo comunicativo do mercado de informação, mas sim de regulá-lo à luz das diferentes demandas e valores presentes na sociedade. Como afirma o autor:
De acordo com essa visão, a deliberação pública entre iguais aparece como um ideal a ser alcançado, mas também como o meio mais adequado para promovê-lo. Aparece como um programa político, portanto, a promoção de estruturas nas quais os cidadãos possam participar mais diretamente das decisões coletivas, inclusive daquelas que dizem respeito às próprias estruturas de deliberação. Assim, as formas de regulação, com o intuito de promover um sistema mediático mais apropriado à discussão pública e uma dinâmica institucional pautada por essa ideia de democracia, não seriam nem as do livre mercado nem as do Estado como agente. Antes, elas seriam discutidas e definidas em fóruns públicos temáticos, conferindo efetividade aos direitos de expressão e comunicação. Seriam três as características fundamentais destas arenas públicas: 1) elas devem permitir e encorajar contribuições que reflitam experiências e temáticas que não ocupam a agenda pública tradicional; 2) devem possibilitar a avaliação disciplinada e cuidadosa das propostas que ora venham a examinar mediante uma forma de deliberação que englobe valores políticos fundamentais; e 3) devem promover ocasiões regulares e institucionalizadas de participação dos cidadãos nos processos de decisão coletiva (p. 100).
No modelo deliberativo, as demandas sociais, ao mesmo tempo, informam o livre-mercado de informação e os fóruns e conselhos de políticas de comunicação, sejam elas diretas, na forma de canais públicos e comunitários, ou indiretas, como conferências temáticas. Isso não significa, necessariamente, que a participação da sociedade civil na organização de um marco regulatório comum seria isenta de problemas, que ela estivesse imune, por exemplo, às desigualdades de participação produzidas pelo mercado. O ponto, tal como entendo o argumento, é que ao incluirmos mais uma forma de participação, um tipo de representação na qual os agentes não se identificam imediatamente nem com os interesses do mercado nem com as da burocracia, abriríamos espaço para formas experimentais de organização das demanda sociais e com um potencial emancipatório muito superior ao da burocracia estatal.
Ainda que o modelo deliberativo possa, de fato, orientar nossas expectativas de transformação da esfera pública no país e que o trabalho de Francisquini cumpra o papel de orientação prática dos esforços de transformação, acredito que dada a situação dramática em que vivemos não devemos abrir mão de nenhum dos modelos abordados pelo texto. Explico.
É importante notar que, ao contrário do que poderíamos esperar, nenhum dos dois modelos regulatórios convencionais (repito: nenhum dos dois modelos) está próximo da realidade brasileira. Poderíamos imaginar que temos algum tipo de regulação comercial-competitiva no Brasil. Mas isso não é verdade. Mesmo as consequências do modelo de livre-mercado de ideias seriam revolucionárias diante do poder de mercado injusto somos coagidos a aceitar diariamente durante o nosso café da manhã. O Grupo Globo e suas afiliadas, por exemplo, controlam sozinho quase 70% do mercado interno de TV brasileiro. Além disso, boa parte das empresas possuem suas sedes (e, portanto, seus interesses) no eixo Rio-São Paulo, o que tende a excluir por completo interpretações alternativas da realidade brasileira. O que quero dizer é que mesmo os defensores xiitas do livre-mercado deveriam estar do nosso lado na luta contra a dominação dos meios de comunicação.
Visto que o discurso da regulação tende a ser apresentado como um tipo de censura ao livre mercado de informação, talvez pudéssemos nos esforçar mais na formação de coalizões entre diferentes posicionamentos. Mesmo uma proposta simples de pluralização comercial e de combate às práticas monopolistas já seria uma conquista radical na curta histórica da nossa esfera pública.
Visto que o discurso da regulação tende a ser apresentado como um tipo de censura ao livre mercado de informação, talvez pudéssemos nos esforçar mais na formação de coalizões entre diferentes posicionamentos. Mesmo uma proposta simples de pluralização comercial e de combate às práticas monopolistas já seria uma conquista radical na curta histórica da nossa esfera pública.