sábado, 15 de outubro de 2016

Nancy Fraser e a Crise do Cuidado

A revista Dissent publicou uma edição especial dedicada à teoria feminista. As possibilidades e os limites presentes nas estratégias feministas atuais são apresentadas e discutidas por oito pesquisadoras de diferentes países e tradições teóricas. Dentre as colaborações, a filósofa Nancy Fraser (New School) concedeu uma longa entrevista na qual faz um balanço de sua obra e discute sua ideia de "crise do cuidado", um problema que, segundo Fraser, tem sido gestado pela confluência perversa de uma economia de serviços, de baixa produtividade e com pouca solidariedade entre os trabalhadores e trabalhadoras, e a desregulamentação das relações de trabalho nos regimes neoliberais, o que obriga os responsáveis pela reprodução da família - sobretudo as mulheres -  à dupla jornada de trabalho (trabalho e cuidado).

As análises de Fraser do final dos anos 80 sobre à divisão sexual do trabalho nas sociedades industriais já estão estabelecidas na teoria política contemporânea. Sua crítica aos pressupostos patriarcais presente em movimentos emancipatórios do pós-guerra (como a social-democracia e o Estado de Bem-Estar Social) contribuíram não apenas para fortalecer a teoria feminista como também obrigou as teorias dos regimes de bem-estar social a darem mais espaço para as relações familiares nas dinâmicas distributivas das sociedades industrializadas.

Como teóricos do Estado de Bem-Estar social já demostraram há bastante tempo, nos modelos de bem-estar social conservador, tais como os encontrados em países como Alemanha, Austria, Itália e, em certa medida, o Brasil, a vinculação de benefícios sociais ao trabalho formal "respeitável" dos que "ganham o pão" da família, foi fundada na decisão política consciente de manter os serviços de cuidado "familiarizados", isto é fora das relações protegidas pelo Estado. Fraser demostrou como a lógica da familiarização e, a fortiori, a exploração dos serviços de cuidado feminino encontra-se presente mesmo em movimentos igualitários anti-conservadores. A luta feminista passa, sobretudo, pelo reconhecimentos de formas não remuneradas de trabalho.

Se por um lado a teoria Fraser foi fundamental para colocar em pauta a luta por reconhecimento, por outro, como fica claro em sua entrevista para a ativista feminista Sarah Leonard, o trabalho atual de Fraser consiste em alertar para um novo tipo de confluência perversa entre, de um lado, um certo tipo de feminismo pautado pela demanda de reconhecimento das mulheres em posições de poder e, de outro, a agenda neoliberal de precarização do trabalho. Nancy Fraser retoma o argumento central do seu último livro Fortunes of Feminism, a crise do cuidado nas sociedades ricas. Em linhas gerais, o argumento sustenta que a destruição dos regimes de bem-estar social, e a consequente diminuição do salário real das famílias, aumentou drasticamente a necessidade de trabalho/hora tornando a familia com "duas carreiras" - na qual os dois adultos precisam participar do mercado de trabalho para garantir a reprodução física dos dependentes - a norma e não mais a excessão da reprodução social. O problema, como enfatiza Fraser, está não apenas na precarização global das relações de trabalho, algo relativamente consensual na literatura, mas também na impossibilidade física das mulheres (em geral, as responsáveis pelo cuidado das crianças e idosos) em desempenharem ao mesmo tempo as duas formas de reprodução precarizada: a material e a social.




Today, of course, the family wage ideal is dead. It’s a casualty, on the one hand, of the fall in real wages, which makes it impossible to support a family on a single salary (unless one belongs to the 1 percent); and on the other hand, of the success of feminism, which delegitimized the idea of women’s dependency that was built into the family wage. As a result of this one-two punch, we now have the new norm of the “two-earner family.” Sounds lovely, doesn’t it—assuming you’re not single? Like the family wage ideal, however, this too is an obfuscation. It mystifies the steep rise in the number of hours of paid work now required to support a household, and if the household includes children or elderly relatives or people who are sick or disabled and cannot function as full-time wage earners, then so much the worse. And if it’s a single-parent family, it’s even worse than that. Now add to this that the two-earner ideal is being promoted at a time of cutbacks in state provision. Between the need for increased working hours and the cutback in public services, the financialized capitalist regime is systematically depleting our capacities for sustaining social bonds. This form of capitalism is stretching our “caring” energies to the breaking point. This “crisis of care” should be understood structurally. By no means contingent or accidental, it is the expression, under current conditions, of a tendency to social-reproductive crisis that is inherent in capitalist society, but that takes an especially acute form in the present regime of financialized capitalism

O ponto é importante e sutil. Feministas neoliberais como Hilary Clinton (o exemplo mais acabado dessa posição segundo Fraser) lutariam, corretamente, pela maior visibilidade das mulheres no mundo do trabalho, argumentando que a participação feminina na reprodução material da sociedade é um mecanismo importante de empoderamento das mulheres em relação às formas de dominação familiar. Contudo, ressalta Fraser, essa forma de feminismo acaba sendo conivente, por outro lado, com o desmonte das instituições públicas e universalistas que desoneram os serviços de cuidado necessários à reprodução social. O resultado é um tipo de teoria feminista para o 1% corporativo, enquanto a reprodução social é realizada, cada vez mais nas sociedades ricas, por mulheres imigrantes:
Feminists rejected the ideal of the family wage as an institutionalization of female dependency—and rightly so. But we did so at just the moment when the relocation of manufacturing kicked the bucket out from under the idea economically. In another world, feminism and shifts in industry might not have reinforced one another, but in this world they did. As a result, even though feminist movements did not in any way cause that economic shift, we ended up unwittingly supplying some legitimation for it. We provided some charisma, some ideological ballast to others’ agendas.
But let’s not forget, meanwhile, that there really are neoliberal feminists who are completely on board with this agenda, who represent the 1 percent. Dare I say it looks like we’re about to elect one of them as president of the United States. Neoliberal feminists are feminists, by the way; we can’t say they’re not. But in that strand of feminism we see feminist ideas simplified, truncated, and reinterpreted in market-friendly terms, as for example, when we come to think of women’s subordination in terms of discrimination that prevents talented women from rising to the top. Such thinking validates the entire hierarchical corporate imaginary. It legitimates a worldview that is fundamentally hostile to the interests of the majority of women, indeed of all people throughout the world. And this version of feminism provides an emancipatory veneer for neoliberal predation.

O verdadeiro desafio do feminismo contemporâneo, segundo Fraser, estaria na reformulação de um ideal socialista emancipado dos antigos pressupostos patriarcais que o orientaram nos últimos dois séculos. Uma tarefa que, diante da atual crise do cuidado, permanece tão urgente quanto longe de estar acabada.