domingo, 10 de março de 2013

Marco Feliciano e a Comissão de Direitos Humanos

Os pesquisadores Renato Franceschini e San Romanelli enviaram uma carta aberta à Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Nacional sobre a polêmica nomeação, ocorrida nesta semana, do deputado e pastor Marco Feliciano (PSC) para a presidência do órgão (por apenas um voto de diferença). Parte da carta foi publicada na edição de hoje do Estado de São Paulo

A seguir leia a carta na íntegra. 


A Comissão de Direitos Humanos e Minorias e a defesa das liberdades iguais

 Renato Francisquini e San Romanelli Assumpção

Está em discussão na imprensa e na esfera pública brasileiras a recente nomeação do deputado Marco Feliciano (PSC-SP) para a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados.
A indicação do deputado se deu a partir da articulação política, tradicional no Legislativo brasileiro, por meio da qual são distribuídos os cargos de presidente e vice-presidente, bem como os participantes de cada Comissão. De acordo com esta lógica, as posições são distribuídas em consonância com a representatividade de cada partido nas Casas.
Parece-nos que tal indicação, que em outras circunstâncias seria apenas corriqueira, ganhou relevância por duas razões. A primeira delas, de natureza propriamente política, está relacionada ao fato de que o PT, que tradicionalmente considerava esta uma Comissão prioritária, abriu mão de seu comando em favor da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CREDM) – segundo o Deputado Doutor Rosinha (PT-PR), por considerar que esta última ganhará primazia por conta da discussão acerca da compra de caças para a Força Aérea Brasileira.
A segunda, de natureza substantiva, relaciona-se ao fato de o deputado Marco Feliciano (1) ter defendido publicamente e através de propostas legislativas restrições aos direitos da população LGBT, (2) ter se expressado publicamente de forma racista e (3) ter formulado propostas de restrição à liberdade de culto das religiões afro-brasileiras. Referimo-nos aqui ao seu posicionamento contra a pensão para companheiros conjugais LGBT – que é claramente uma restrição dos benefícios sociais iguais e universais a que todos têm direito –; à sua afirmação de que “Africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé” e que “A maldição de Noé sobre Canaã (o neto) toca seus descendentes diretos, os africanos”; e de sua proposta de proibição de rituais religiosos que envolvam sacrifícios de animais – que se refere, no Brasil, às religiões afro-brasileiras, com as quais várias das igrejas evangélicas brasileiras possuem problemas sérios de tolerância.


Pois bem, considerando que a CDHM é uma comissão parlamentar que visa defender direitos universais e inalienáveis de que todos são portadores, e que, portanto, é uma comissão que deve representar a todos igualmente, indagamos: deveria um parlamentar que afirma publicamente que nem todos os seres humanos são iguais e que defende projetos que restringem direitos de algumas minorias políticas assumir a presidência desta comissão? O que nos perguntamos aqui, do ponto de vista de todos os brasileiros, de todos os matizes ideológicos e políticos, é: esta nomeação seria adequada?
Decerto que o mandato deste parlamentar é legítimo do ponto de vista da democracia e do Estado de Direito, afinal, ele foi eleito e todos devem ter o direito de se candidatar e de ter seus candidatos eleitos, sem discriminação quanto às suas preferências políticas, ideológicas ou religiosas. Contudo, do ponto de vista da razão pública de um Estado democrático de Direito, este deputado, embora legitimamente eleito, seria adequado para representar todos os brasileiros em seus direitos universais iguais e inalienáveis?
O caso da CDHM é de especial relevância por ser esta a comissão voltada para a defesa de direitos universais iguais assentados na dignidade humana, dos quais ninguém, maioria ou minoria, pode ser alienada. O paradoxo está no fato de que, embora de natureza especial pelo que está em sua pauta, a CDHM tem status idêntico às demais e está sujeita às mesmas vicissitudes do jogo político do nosso presidencialismo de coalizão. Dessa forma, ela pode tanto ser controlada pelos defensores da universalidade da liberdade ou pelos que afirmam, baseados em qualquer concepção religiosa, filosófica ou moral, que não são todos iguais em liberdade perante o Estado brasileiro.
Vejamos isso mais de perto, perguntando-nos o que significa sermos um Estado democrático de Direito, defensor simultaneamente da democracia e dos direitos e liberdades humanos. Os direitos humanos são humanos porque são universais, porque pertencem a todos em nome da dignidade humana de que todos somos portadores, independentemente de sexo, gênero, sexualidade, religião, cor, raça, etnia, classe social, origem social, local de nascimento ou qualquer outro qualificador daquilo que somos em nossas diferenças e particularidades. Quais valores políticos devemos honrar em uma Comissão de Direitos Humanos e das Minorias de um país que é signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948 e de inúmeros outros tratados de direitos humanos, e de um país que pode se orgulhar de ter construído uma das constituições que mais fortemente afirmam e defendem os direitos e liberdades das pessoas? Que obrigações ético-políticas nossa Constituição e os tratados de direitos humanos que assinamos nos impõem enquanto Estado democrático de Direito e enquanto civilização?
Básica e fundamentalmente, temos a obrigação ético-política de respeitar o que a DUDH trata como a “dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis” e como o fato moral de que “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos”,  “sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”. Esta é a própria essência do ideal de direitos humanos que dá sentido à existência de uma Comissão de Direitos Humanos e Minorias.
Essa essência ética é incontestavelmente assumida em nossa Constituição Federal (CF), que estabelece como um de seus fundamentos “a dignidade da pessoa humana” e como um de seus fins “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Isso é incontestável, uma vez que a CF estabelece, em seu Artigo 5º, que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”,
Todos esses princípios – invocações de textos fundamentais do projeto brasileiro de nação democrática e inclusiva – indicam que, enquanto membros de uma comunidade política que crê que todos os seres humanos são livres e iguais, devemos defender que a CDHM não deve ser presidida por qualquer pessoa que, em suas afirmações públicas, expresse posições homofóbicas ou racistas, como é o caso do Deputado Marco Feliciano.
Enquanto país que almeja ser igualitário e justo, devemos defender, em nome das liberdades de consciência, de expressão e de religião, que o referido parlamentar possui pleno direito a expressar, cultivar e defender suas crenças, mesmo que estas afirmem que as pessoas não são todas iguais e não possuem direitos e liberdades iguais. É legítimo que, em nome da igualdade e liberdade política devidas a todos, os cidadãos possam eleger candidatos com posições políticas anti-igualitárias. Mas, em nome dos mesmos princípios, com os quais o Brasil se comprometeu em tratados internacionais e na sua própria Constituição, devemos defender que não está qualificado para tal posição um deputado cujas posições publicamente declaradas indicam que a sua gestão à frente da Comissão, responsável por discutir e legislar sobre os direitos humanos e das minorias, será contrária aos ideais de igualdade e de liberdade igual para heterossexuais e não heterossexuais, e de igualdade e liberdade igual para brancos e não-brancos. Esta não é uma Comissão na qual é tolerável que a defesa do uso do poder coletivo democrático seja feita a partir de argumentos contrários ao próprio ideal de tolerância liberal.