domingo, 24 de agosto de 2014

Reforma do Código Penal Brasileiro

A Ilustríssima publicou na semana passada uma extensa matéria sobre a proposta de reforma do Código Penal brasileiro, na qual ouviu algumas das posições por trás do debate. Caso a reforma seja aprovada, ela tornará mais duro o sistema de progressão de penas, ameaçando aumentar ainda mais o contingente carcerário. Dono da quarta maior população carcerária do mundo (atrás apenas dos EUA, da China e da Russia), o Brasil não sabe ao certo o que fazer com seus presos. Duas posições teóricas sobre a natureza da punição legal balizam o debate: prisão como forma de dissuasão e re-socialização, de um lado, e o encarceramento como forma de punição contra infratores das expectativas legais, de outro. 


O Futuro das Masmorras 
Sérgio Kalili

Motivo de orgulho do governo do Espírito Santo, o Centro de Detenção Provisória de Viana 2, na região metropolitana de Vitória, é uma prisão moderna, cópia de unidades norte-americanas. Segue determinações do Depen (Departamento Penitenciário Nacional). Inaugurada há quatro anos para receber presos provisórios, que ainda não tenham sido julgados, já está superlotada, inclusive de condenados. É um exemplo da velocidade com que se constroem presídios e se prende no Brasil. Entre as principais causas do excesso de presos está uma série de leis rígidas, aprovadas a partir de 1990.

A 1.200 km dali, senadores se preparam para votar, em Brasília, o projeto de novo Código Penal, em gestação no Senado desde 2012, com leis que podem tornar a vida dos detentos mais difícil. O senador Vital do Rêgo (PMDB-PB), atual relator do projeto, que ainda pode receber emendas, espera votá-lo em plenário neste semestre.

Em dezembro de 2013, o projeto, elaborado por um grupo de juristas, sofreu modificações e foi aprovado pela Comissão Temporária de Reforma do Código Penal, de onde seguiu para análise na CCJ (Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania), composta pelos mesmos senadores da Temporária. Se não houver surpresas, os fundamentos do futuro código estão postos.

O senador Pedro Taques (PDT-MT), relator da Comissão Temporária e membro da CCJ, afirma em seu relatório que se impõe "ao Estado o dever de legislar no sentido de evitar a impunidade dos agentes criminosos, situação que, especialmente em dias atuais, tem levado à descrença do povo quanto à efetividade do sistema vigente". O objetivo da proposta é reduzir a criminalidade, ao tornar a legislação mais austera. Se aprovada, vai à Câmara.

BOMBA

O jurista e ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior critica o provável aumento no encarceramento resultante do projeto. "É uma bomba-relógio que estoura o sistema penitenciário."

Um dos aspectos que fazem com que a proposta seja considerada dura é a coleção de obstáculos à progressão de pena. Vai ficar mais difícil e demorada a passagem de um preso do regime fechado para o semiaberto, do semiaberto ao aberto e, então, à liberdade, o que elevará a população carcerária. Pode inviabilizar o sistema progressivo --criado para estimular o bom comportamento do preso com a ideia da passagem para regimes mais brandos.

O defensor público Patrick Cacicedo, coordenador do Núcleo de Situação Carcerário da Defensoria de São Paulo, opina que "o coração [do novo código] está na parte geral, aquela que diz como vai ser aplicada a pena, como vai ser a progressão. Nessa parte o endurecimento foi absurdo".

A proposta aumenta o tempo de progressão de quase todos os crimes. Atualmente, com exceção de delitos hediondos ou equiparados, a legislação estabelece, como regra geral, que o encarcerado cumpra um sexto da pena (pouco menos de 17%) antes de seguir para o próximo regime, independentemente de ser réu primário ou reincidente. Se tiver bom comportamento, ao cumprir um sexto da pena no fechado um condenado pode ter direito de subir para o semiaberto, onde cumpre mais um sexto do que resta da pena, para progredir ao aberto, onde passa mais um sexto do que falta --só depois disso ganhará a liberdade.

Willian Silva, desembargador e presidente da Comissão de Enfrentamento e Prevenção à Tortura do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, que contribuiu no projeto como consultor, defende a mudança. "Por causa do atual sistema progressivo, o sujeito sabe que, se condenado a 12 anos, não vai ficar 12, vai ficar dois, um sexto. E se for um crime hediondo, vai ficar no máximo quatro anos." Pedro Taques acrescenta: "O fato é que o patamar de um sexto tem gerado --de forma uníssona e reiterada-- o reconhecimento da total sensação de impunidade".

Os senadores extinguiram no projeto a fração de um sexto (17%), menos dura. Pelo texto aprovado na Comissão Temporária, o período mínimo para progredir passa a ser de 25%, um quarto da pena, e vale só para quem não reincidir em crimes dolosos. Se reincidente em delinquência dolosa e/ou se o crime for cometido com violência ou grave ameaça, a fração é maior, um terço (33%).

HOMICÍDIOS

Apesar do endurecimento das leis nos últimos anos, enquanto a taxa de homicídios se estabilizou ou caiu na maior parte do mundo, na América Latina e no Caribe subiu 11%, entre 2000 e 2010, segundo o Relatório Regional de Desenvolvimento Humano de 2013-2014 do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento).O documento diz que um em cada três latino-americanos lidou, em 2012, com algum crime violento. Mais de 30% dos homicídios do mundo ocorrem na América Latina.

Pedro Taques afirma que o projeto "representa um avanço" em relação ao código vigente, por atualizar à sociedade de agora uma legislação criada em 1940 e reformada em 1984. "A pena no direito penal moderno continua sendo uma resposta a uma necessidade de vingança, uma reação passional, apesar de, hoje, de intensidade graduada em relação aos séculos passados. O ato criminoso viola sentimentos comuns à grande média dos indivíduos da mesma sociedade", diz o senador.

O juiz Marcelo Loureiro, coordenador do Mutirão Carcerário do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), não vê eficácia em um código austero. "O tamanho da pena importa pouco na vontade do agente. Aquele que pratica o crime acredita que não será punido. O Estado precisa acabar com a impunidade, e não se preocupar em aumentar penas."
O esforço do Mutirão Carcerário não acompanha a velocidade do aprisionamento. Desde 2008, o mutirão analisou 400 mil processos e concedeu mais de 80 mil benefícios, como progressão de pena e direito a trabalho externo, além de libertar 45 mil detentos que haviam cumprido pena mas seguiam encarcerados. "Uma prisão superlotada não recupera ninguém", observa Loureiro. "É importante que o Estado dê um tratamento correto para que essa pessoa retorne ao convívio social."

Mesmo com o aumento do ritmo de construção de presídios o país continua tendo muito mais detentos do que vagas. Em 1994, eram 511 unidades (Instituto Avante Brasil); em 2012, 1.478 (Depen). No ano passado, 550 mil presos se espremiam em 309 mil vagas (Depen). Neste ano, 567,6 mil ocupam 357,2 mil vagas (CNJ).

O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, chegou a afirmar que preferiria morrer a cumprir pena nos presídios brasileiros, que qualificou de "masmorras medievais".

O deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL-RJ), presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio, se diz familiarizado com as irregularidades. "Entro em prisões há 20 anos, desde que dava aula em cadeias. Colocamos lá quem queremos esquecer. Se a lei é cumprida ou não, pouco importa. O problema no Brasil é a confusão entre justiça e vingança."

Segundo Roy Wamsley, do anuário online World Prison Brief, nas últimas duas décadas o crescimento da população carcerária brasileira só foi superado pelo do Camboja, que passou de 1.981 presos, em 1994, para 15.404, em 2011, um aumento de mais de 700%.



CAOS

É notória a situação de caos no sistema carcerário brasileiro, que registra com frequência greves de agentes, decapitações e presídios comandados por presos. Em Pedrinhas (MA), desde o ano passado houve mais de 60 homicídios. Na penitenciária de Alcaçuz (RN), em 2012, outros 20 mortos. Em Presidente Venceslau (SP), cinco pessoas foram decapitadas em 30 horas de rebelião em 2005. No Urso Branco (RO), houve 27 mortos em 2002. Mais de 200 presos morreram de janeiro de 2013 até hoje em 24 Estados (Alagoas, Bahia e Rondônia não informaram os números à Folha). Assim como em Rondônia, Rio Grande do Norte e São Paulo, o governo do Maranhão prometeu resolver o problema construindo unidades modernas como Viana (ES).

O complexo capixaba, inaugurado em 2010, com seis unidades, tenta deixar para trás outro palco de horrores. A nova prisão foi construída sobre os alicerces da antiga Casa de Custódia de Viana, onde, a partir de 2004, houve vários assassinatos e ao menos dez esquartejamentos --o último deles em 12 de março de 2009, quando um jovem de 23 anos morreu no dia em que entrou. Naquele ano, a Casa de Custódia atingiu superlotação máxima, 1.213 homens onde cabiam 360, segundo o Conselho Estadual de Direitos Humanos. Assim como hoje em Pedrinhas e em outras detenções superlotadas, o presídio capixaba era controlado internamente pelos presos. Agentes penitenciários vigiavam, do lado de fora, os pavilhões.

Em 2013, a nova Viana já estava superlotada, abrigando 1.284 presos em 864 vagas. Pelo ritmo do encarceramento no Estado, a cada quatro meses seria necessária uma nova unidade com 400 vagas.
A princípio, o futuro código não afetará processos antigos. Por isso, a consequência sobre o ritmo do encarceramento deverá ser sentida de maneira gradativa. O secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, Marivaldo de Castro Pereira, afirmou, baseado em um estudo preliminar, com as leis rigorosas do projeto do Senado, o número de presos deve subir. "Pode haver aumento do contingente entre 45% e 87%."

TRANCA PAGA

Trancafiado no Centro de Detenção de Viana, Fábio Martins, 31, reincidente em crime doloso, foi condenado a oito anos em regime fechado por furto qualificado. Pelo código atual, teria direito de progredir ao semiaberto após um ano e quatro meses, um sexto da pena.

Se fosse condenado na vigência do projeto do Senado, o detento precisaria cumprir um terço, ou seja, dois anos, antes de pedir pela progressão. De qualquer maneira, mesmo tendo direito à progressão Fábio segue no regime fechado. "Paguei minha tranca. Pode perguntar à direção [do presídio], sou preso de boa conduta. Não sei por que estou aqui." Há dois anos e meio ele dividia uma das celas, de 12 m², construída para quatro pessoas, com outras seis. Aqueles que não dormem nas camas se ajeitam no chão. Ao fundo, uma pia e uma privada de metal. Do lado de fora, chuveiros para um banho de 90 segundos contados.

São sete galerias, seis delas com dois andares. As três maiores têm 48 celas. Os exaustores não dão conta do calor no verão. O prédio de concreto lembra filmes americanos nos quais, ao comando do agente, as portas das celas se abrem automaticamente. A cada 15 dias, os detentos podem receber visitas em uma das 12 janelas de acrílico dos parlatórios. Falam por interfone, sem contato físico --de vez em quando, alguns ganham permissão para abraçar familiares numa pequena praça. A vigilância fica a cargo de 28 agentes por plantão, 80 câmeras e 70 monitores.

PENA COMPLETA

O defensor Bruno Shimizu, do Núcleo de Sistema Carcerário da Defensoria de São Paulo, reforça as consequências do novo projeto. "Dobrar o lapso para a progressão, em casos de reincidência e violência ou grave ameaça, significa que em todas as ocorrências de roubo, o condenado vai cumprir praticamente a pena inteira no fechado, mesmo nas menos graves, que representam 80% dos roubos, naquelas sem lesão, sem arma, em que o sujeito puxa uma bolsa, pega um celular."

Condenado a três anos e seis meses de prisão, em São Paulo, em 2011, Jonathan dos Santos, na época com 18, teria destino diferente se a nova lei vigorasse. Com um amigo, invadiu uma residência para roubar um laptop. Na fuga da polícia, bateram a moto em uma árvore. Jonathan teve uma perna amputada. Durante os três meses em que os dois aguardaram o julgamento presos, Jonathan diz ter recebido pouca atenção médica. Chegou à audiência em cadeira de rodas, confessou a tentativa de roubo e foi condenado.

O juiz fixou o regime aberto, por considerar que ele não tinha condições de saúde para cumprir pena na cela. Pelo projeto do Senado, que proíbe o aberto para roubo, por ser um crime de violência e grave ameaça, o magistrado estaria impedido de tomar tal decisão. Roubo, disparo de arma de fogo e homicídio simples se enquadram nessa categoria e abarcam 32% de todos os presos no país, segundo dados de 2012 do Depen.

O projeto não muda a progressão de pena para crimes hediondos --mas aumenta a lista de ilícitos nessa categoria. Entre as novas modalidades estão a redução de uma pessoa à condição análoga à de escravo, racismo, tráfico de seres humanos e de órgãos, corrupção ativa e passiva e crimes contra a humanidade.

A reincidência rende aumento de punição em todos os crimes, na nova proposta. Se há reiteração em delito "praticado com violência ou grave ameaça", como roubo, o condenado precisa cumprir metade da penitência para progredir, bem mais do que um sexto (17%) que hoje vale mesmo para quem volta a delinquir.

Isadora Fingermann, coordenadora institucional do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), afirma que, se a proposta passar, na prática "o sistema progressivo acaba". Segundo a advogada, "apesar de hoje a lei prever a progressão com um sexto, há varas de execuções, como a de Guarulhos, em que um pedido demora de um ano e meio a dois. Depois, o preso permanece de seis a oito meses no fechado, aguardando uma vaga no semiaberto. É o cumprimento integral no fechado, na prática".

O procurador regional da República Luiz Carlos Gonçalves, relator do grupo de juristas que preparou o anteprojeto de código à Comissão Temporária de Reforma do Código no Senado, defende o endurecimento. "O problema não é o projeto. Se for pensar assim, enquanto a Justiça for lenta, não altero a lei penal."

REINCIDÊNCIA

A reincidência é alta no Brasil. O ex-ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) César Peluso e o ministro Gilmar Mendes, da mesma corte, estimam que, de cada dez presos, sete sejam reincidentes. A pesquisa "Crime, Segurança Pública e Desempenho Institucional em São Paulo", coordenada por José de Jesus Filho, assessor jurídico da Pastoral Carcerária, realizada com a FGV, a Universidad Nacional de Tres de Febrero (Argentina) e a ONU, apurou no ano passado que 49,4% dos presidiários no Estado haviam sido condenados anteriormente.

Segundo a proposta do Senado, a informação da reincidência deve constar na ficha de um condenado por dez anos (o dobro do que o código vigente determina).

O futuro código restringe o início do cumprimento de pena no regime aberto. Se atualmente condenados a quatro anos ou menos podem começar a cumprir pena no regime aberto, segundo a nova proposta só os condenados a dois anos ou menos teriam esse direito. De acordo com o texto no Senado, para ter direito ao aberto o crime não pode ter sido praticado com violência e grave ameaça.

No aberto, o preso trabalha durante o dia e dorme em casas de albergado (estabelecimentos de segurança mínima). Caso não haja vaga nesses albergues, o que é comum --existem apenas 64 no país-- o juiz decide se envia o sentenciado para casa (em prisão domiciliar) ou se o retém no regime anterior até que surja lugar.

Entre os mais atingidos pelas novas regras, estão aqueles enquadrados em tentativa ou consumação de roubo simples --a ação, por exemplo, de empurrar a vítima, ou imobilizá-la, ou agredi-la, ou ameaçá-la para pegar uma bolsa. Aqui, a pena mínima é de quatro anos, acima dos dois anos estabelecidos pelo futuro código para o início no aberto.

Também seriam afetados condenados em tentativa ou infração de homicídio privilegiado, quando "o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob domínio de violenta emoção, logo seguida de injusta provocação". Casos em que a lei atual permite o início no aberto.

A proposta amplia a penalidade para um condenado por homicídio privilegiado. Eleva a pena mínima de seis para oito anos, o que põe a chance de redução da pena a pouco mais de cinco anos, acima do limite para começar no aberto até pela lei atual. De acordo com Miguel Reale Júnior, "o projeto cria tantas hipóteses para homicídio qualificado que nenhum deixará de ser qualificado. E aí a pena mínima é de 12 anos".

Pedro Taques defende o aumento nas penas. "É importante não perdermos de vista que o homicídio ainda é o pior dos crimes. Seja simples ou qualificado, é inegável o fato de que é, em si, dotado de hediondez."

BESTEIRA

Em uma das quatro salas de aula de Viana, entre 15 colegas, estudam Jessi Assis, 49, condenado por homicídio simples, e, ao seu lado, acusado de homicídio qualificado, Josias Souza, 31. Jessi foi condenado a oito anos e dois meses de prisão. Conta que vendeu um revólver a um vizinho e ficou de receber depois. Quando passou para pegar o dinheiro, o homem quis desfazer o negócio. "Foi aí que apareceu um indivíduo, roubando a arma entre a mão dele e a minha. O rapaz tava com ele. Acabei cometendo uma besteira."

Como cumpriu um ano e meio de prisão pelo assassinato do cúmplice do comprador da arma, Jessi pode pedir progressão para o semiaberto. Alternativa que deixaria de ter com o novo código, já que poderia ser enquadrado em alguma das novas qualificadoras do projeto, como a que diz que é homicídio qualificado se cometido "com uso de arma, artefato bélico ou acessório de uso proibido ou restrito". A pena aumentaria para 12 ou até 30 anos. A progressão de um sexto subiria para dois quintos da pena, pois homicídio qualificado é crime hediondo.

O processo de Josias corre na Justiça. Era meeiro na zona rural próxima a Colatina (ES). Conta que o proprietário o mandou embora e não queria lhe pagar. A resposta à sua súplica, diz ele, foi: "Filho de macaco se trata com banana". Josias relata que pediu respeito e levou um soco. "Acertei uma facada nele. Minha esposa estava com barrigão... Sei que o que fiz é caso de Justiça. Quero pagar."

O juiz aceitou a acusação de homicídio qualificado, por motivo torpe, sem que a vítima, atacada pelas costas, tivesse chance de reagir, e proferiu que o réu fosse a júri. Mas, se a versão de Josias for a verdadeira, seu caso deveria ser tratado como homicídio privilegiado, por ele ter reagido "sob domínio de violenta emoção, logo em seguida de injusta provocação". Poderia ter iniciado a pena no semiaberto ou aberto, como possibilita a legislação atual. Em março deste ano, após dois anos e sete meses aguardando julgamento, Josias pôde deixar a cadeia, em liberdade provisória, beneficiado por um habeas corpus.

EXAME

A volta da obrigatoriedade do exame criminológico para todas as infrações, que consta do projeto, pode ser mais um entrave à progressão. O laudo, feito a pedido do Judiciário, avalia se o preso "merece" ou não progredir. Parte do princípio de que psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais podem mensurar se um indivíduo tende a cometer outro crime ou fugir após conseguir a liberdade condicional ou o semiaberto. A progressão, assim, pode ser negada mesmo que o apenado já tenha cumprido a pena e possua bom comportamento.

Dúvidas sobre a efetividade e a demora, muitas vezes de mais de um ano na obtenção do laudo, levaram à extinção de sua obrigatoriedade em 2003. Na época, 80 mil apenados, em condições de receber a progressão ou a liberdade, aguardavam o exame. Em 2010, o Conselho Federal de Psicologia proibiu psicólogos de aplicar o exame.

A solução que o projeto oferece é que o juiz possa decidir sem o laudo se este não ficar pronto em 60 dias. O procurador Gonçalves defende o exame. "Recentemente, um sujeito que estuprava e matava crianças foi posto em liberdade sem esses cuidados [sem o exame]. O que ele fez? Estuprou e matou de novo."

O defensor Bruno Shimizu considera que o prazo de 60 dias pode levar um magistrado a barrar a progressão. "O juiz vai falar: Como não deu para fazer o exame, não vou deferir a progressão"." A defensora paulista Juliana Belloque, que participou do grupo de juristas do anteprojeto e foi voto vencido, também é contra. "Prazo no processo e na execução penal é algo que costuma ser descumprido. A lei diz que todo processo precisa ter audiência de instrução e julgamento em 60 dias, e as pessoas estão há um ano esperando essa audiência presas."

"SEMIFECHADO"

Marcelo Freixo escolheu o presídio semiaberto Vicente Piragibe, em Bangu, para conversar com presos sobre a proposta --muitos dos presos não estariam ali se o código proposto pelo Senado estivesse em vigor.

O Piragibe foi o eleito do deputado por duas de suas características: a superlotação (2.324 detentos para 1.200 vagas) e a fama de não permitir aos detentos alguns de seus direitos, como a autorização de saída para trabalhar ou visitar a família. A maioria cumpre pena como se estivesse no fechado. Por isso, os presidiários e o CNJ, que esteve ali em 2011, apelidaram o Piragibe de "semifechado".

Para o deputado, os juízes usam a morosidade da Justiça para segurar o apenado: "O magistrado cria obstruções, pede [exame] criminológico, que não deveria mais pedir e, na prática, não concede a visita. Há o medo de fuga, de um crime com visibilidade".

Muitos no Piragibe têm algum benefício vencido. Walbert Vitoriano, que cumpriu seis dos oito anos por tráfico, ilustra outro impacto que o projeto poderá causar. Há sete meses, o detento aguarda a concessão do livramento condicional, que lhe daria liberdade imediata. O novo projeto extingue o livramento condicional.

A lei hoje diz que o juiz pode conceder o livramento ao preso condenado a dois ou mais anos em regime fechado após o cumprimento de mais de um terço da pena, desde que não reincidente em crime doloso e com bons antecedentes. Caso remitente, o encarcerado precisa cumprir mais da metade. Se sentenciado por crime hediondo, deve passar mais de dois terços na prisão antes de pedir o livramento. A prerrogativa é vedada àqueles reincidentes em infrações dessa gravidade. Se o preso em condicional cometer uma penalidade antes da data final da sentença, além de perder o benefício, perde o tempo da pena decorrido fora da cadeia.

O procurador Gonçalves defende o fim do livramento. "O sistema de progressão e do livramento concorrem entre eles, com um detalhe: se a pessoa em livramento delinquir, volta a cumprir toda a pena. Além disso, você a joga na rua no dia seguinte. A progressão tem uma gradação. Vale a pena coexistirem ou é melhor aperfeiçoar a progressão e deixá-la como incentivo ao bom comportamento?".
O caso de Marcela Batista, que desde agosto de 2008 cumpria oito anos e 20 dias por roubo na penitenciária do Butantã, em São Paulo, mostra como o livramento e a progressão nem sempre servem aos mesmos propósitos.

Marcela poderia ter progredido em 2010, mas seu pedido não foi apreciado. Em maio de 2012, teve um bebê. É comum em penitenciárias paulistas a mãe ficar com o filho por seis meses para amamentação. Depois disso, agentes tiram a criança e, se ninguém da família se dispuser a cuidar dela, a colocam para adoção. Para impedir isso no caso de Marcela, a Defensoria fez um pedido de extensão da amamentação por prazo mínimo de dois anos.

Após cumprir mais da metade da pena no regime fechado, sem progressão, Marcela recebeu o livramento em dezembro de 2012. Com a reforma do código, continuaria presa ou talvez progredisse para o semiaberto, separada da criança.

Shimizu levantou o número de pessoas em livramento e em regime aberto na capital paulista hoje e fez as contas do impacto do projeto. Concluiu que só na cidade seriam quase 30 mil pessoas a mais presas. "Seria necessária a construção de mais 70, 80 presídios." Ele frisa que a maior parte dos presos que perderiam benefícios pelo novo código são pessoas sentenciadas por furtos, crimes patrimoniais ou pequenos traficantes. "O juiz não dá o livramento quando o crime é grave. Vai criar um colapso no sistema."

"A realidade é que as penas de curta ou média duração são cumpridas quase que integralmente no fechado, porque não dá tempo de progredir. O que salva esses condenados é o livramento", opina Belloque.

FRACASSO

Segundo Miguel Reale Júnior, projetos de penas duras aplicadas como resposta à criminalidade fracassaram nos EUA, onde a população carcerária quadruplicou entre 1980 e 2009. Hoje esse tipo de proposta vem sendo abandonada no país. Fernando Delgado, professor da Clínica de Direitos Humanos da Universidade Harvard e colaborador da ONG Justiça Global, corrobora. "O Brasil, infelizmente, segue em direção a políticas penais falidas."

A população carcerária brasileira, que é a quarta do mundo (depois de EUA, China e Rússia) quase quintuplicou entre 1992 e 2012; saltou de 114,3 mil para 549,5 mil, segundo dados do ICPS (Centro Internacional para Estudos de Prisão). E continua crescendo. Neste ano, já são 567,6 mil detentos. Somando as pessoas em prisão domiciliar, o número chega a 715,6 mil, de acordo com o CNJ. Se os 373,9 mil mandados de prisão em aberto fossem cumpridos, o total saltaria para mais de um milhão.

Após anos de políticas carcerárias pesadas aos cofres públicos, sem relação clara com a redução da violência, americanos e europeus tentam diminuir suas populações atrás das grades. Estudos descrevem uma relação limitada entre cadeia e segurança. Steven D. Levitt, economista da Universidade de Chicago, e William Spelman, especialista em políticas públicas da Universidade do Texas, avaliam em seus trabalhos que a cada 10% de aumento no número de encarcerados, há uma queda de 2 a 4% na criminalidade. Spelman acredita que é uma redução restrita dado o tamanho do gasto financeiro e do custo social.

Os gastos e a limitação aumentam na proporção em que a população carcerária cresce. Por exemplo, em 2003, Califórnia e Nebraska tinham índices de criminalidade similares, de cerca de 4.000 delitos por 100.000 moradores, segundo o Departamento de Justiça. Para reduzir a violência em 2% a 4%, a Califórnia, com uma população prisional de 162,6 mil presos teria que encarcerar mais 16 mil pessoas. Nebraska, com 3,9 mil, precisaria colocar na cadeia outros 400. Com a média americana de gastos por preso em US$ 22.650 por ano, na época, a Califórnia gastaria US$ 355 milhões a mais que Nebraska.

No Brasil, estudos apontam que a cada 10% na elevação do encarceramento há uma redução de 0,5% em homicídio (Ipea/2013). Luiz Octávio Coimbra, coordenador do Observatório de Segurança Hemisférica da OEA (Organização dos Estados Americanos), calculou, com base nos dados do Ipea: "Para reduzir a taxa de mortes intencionais no Brasil (27 por 100 mil habitantes) até chegar à média mundial (7/100 mil), deveríamos [...] botar na cadeia mais de 2 milhões de brasileiros".

Segundo a CPI do Sistema Carcerário, de 2009, o custo médio mensal por detento equivaleria a R$ 1.300. Além de ser uma prática custosa ao Estado, a opção pelo aumento do encarceramento não garante a diminuição da violência --estudos nos EUA apontam que pode ocorrer o contrário.

REFLEXOS

Raymond V. Liedka, da Universidade de Oakland, Anne Morrison Piehl, da Universidade de Nova Jersey, e Bert Useem, da Universidade de Purdue, analisaram dados dos 50 Estados americanos, mais a capital federal, de 1970 a 2000, e perceberam que a criminalidade sobe após o aprisionamento atingir entre 325 e 492 detidos por 100.000 habitantes.

O que pesquisadores como a socióloga americana Dina R. Rose e o professor Todd R. Clear, da Universidade de Nova Jersey, concluíram é que o superencarceramento destrói laços sociais e familiares. Adultos mandados à cadeia deixam de criar, educar e sustentar suas crianças. Comunidades pobres se tornam miseráveis.

Em 2012, a média brasileira de presos, segundo o Depen, era de 287 por 100.000 habitantes. Alguns Estados, no entanto, chegaram ao limite comentado na pesquisa citada, ou o ultrapassaram. No Paraná, o encarceramento atingiu 340 presos por 100 mil habitantes; em Mato Grosso, 371; em Roraima, 395; no Espírito Santo, 419. Em seguida vêm Brasília (447), São Paulo (463), Mato Grosso do Sul (499), Rondônia (516) e, no topo, o Acre (521).

Entre 1990 e 2005, a criminalidade caiu nos EUA. No entanto, Spelman e outros pesquisadores mostraram que o encarceramento foi responsável por apenas 25% da queda. Os 75% restantes seriam reflexos de investimentos em educação, policiamento, aumento no poder aquisitivo da população, envelhecimento populacional, redução do desemprego e da taxa de urbanização. Levitt identificou que, a cada 10% de aumento no policiamento de uma cidade, há redução de 11% nos crimes violentos e de 3% nos delitos à propriedade.