Rúrion Melo (USP) publicou um texto no blog Direito e Sociedade do Estadão no qual procura entender o atual retrocesso da agenda progressista no país. Tanto o enfraquecimento do governo Dilma no congresso como a recente aliança da chamada "bancada BBB" (boi, bala e bíblia) colocam um obstáculo político não apenas as já magras possibilidade de mudanças estruturais nos próximos anos como tem sido capaz de pautar, ela própria, os principais debates ocorridos na democracia brasileira - como é o caso da redução da maioridade penal e da criminalização da (alegada) intolerância contra maiorias (como a "cristofobia" e a "heterofobia"). Contra a política da representação, argumenta Rúrion, precisamos da política da contestação.
A vaga conservadora e seus críticos
Rúrion Melo
Da
redemocratização para cá, com o suor de muita discussão pública e persistência
dos movimentos sociais, muitos direitos foram conquistados, iniciou-se um
deslocamento decisivo na redistribuição de renda e lutou-se por reconhecimento
(questões de gênero, de raça, de sexualidade, entre outras). O avanço
certamente ainda é insatisfatório, mas mostrou que a pressão por uma vida mais
democrática abria possibilidades sociais e institucionais pelas quais valia a
pena lutar. Se a ditadura significou um grande passo para trás, tentamos fazer
com que a redemocratização, dali em diante, representasse dois para frente.
Com a
disputa atual de poder, a dominação do sistema político vem acompanhada de um
recuo perceptível de temas considerados progressistas e com amplo apelo na
opinião pública. A recente queda de braço no Congresso Nacional tem mostrado
que a direção desse jogo de forças político está rumando em sentido bastante
conservador. Eduardo Cunha e Renan Calheiros, representantes escancarados de
pautas culturais e políticas tradicionais (para não dizer retrógradas), surgem
como protagonistas do momento, apoiados pelos interesses das bancadas BBB
(bíblia, boi e bala).
O ensaio do
movimento conservador atual feito pelo legislativo, que está então mais para um
passo para frente e dois para trás, apresenta um leque considerável de
assuntos. Da “cura gay” ao estatuto da família, do ensino religioso nas escolas
públicas à PEC da redução da maioridade penal, sentimos o que penso ser apenas
uma pitada daquilo que eles ainda gostariam de impor à sociedade brasileira.
Deixando de lado o fato, aparentemente impensável, de que os BBB’s insistem em
querer presidir precisamente as comissões de direitos humanos nos mais variados
níveis (do federal ao municipal), também são intérpretes de reações surpreendentes:
a defesa em prol da família, da tradição e da propriedade, capaz de sempre
mobilizar milhares de pessoas, tem sido acompanhada de suas patológicas
repressões contra o que chamam de “heterofobia” ou mesmo “cristofobia”.
Soma-se a
isso que os escândalos do Mensalão e do Petrolão recolocaram no centro do
debate público o tema da corrupção. Atmosfera propícia para dar uma guinada à
direita nos princípios da ética na política. Como consequência, a onda
moralizante (que é uma forma de expressão cultural e política entre outras)
forjou uma aparente unidade às manifestações recentes. Que fique claro. As
críticas ao governo, seja ele qual for, são necessárias e muito bem vindas, mas
as razões das críticas não são sempre as mesmas, e isso muda tudo. No caso das
críticas conservadoras, é digno de nota que elas pretendem lançar mão de
justificações que, em princípio, valeriam inquestionavelmente para “todos”.
Logo, incitam sempre temas vagos como família, violência, valores religiosos,
ética, civismo, nação, patriotismo etc. Os conservadores realmente acham que
vão às ruas em nome de todos (da pátria amada Brasil!), atuando no espaço
público como se suas pautas e visões de mundo valessem para cada um de nós. Mas
não perceberam (ou melhor, perceberam e ficaram bem preocupados) que o país tem
sido disputado e criticado há muitos anos por diversos grupos sociais. As
razões das críticas, ainda bem, são diferentes e, muitas vezes, opostas.
E as vozes
opostas continuam nas ruas, apesar de tudo. Pois o que há de alentador não
reside nas expectativas do sistema político, mas em uma esfera pública que
congrega diariamente no Brasil dezenas de manifestações abertamente contrárias
a essa vaga conservadora. Mesmo as mídias de massa não têm conseguido esconder
tais manifestações, as quais evidentemente têm desaguado para as comunicações
alternativas propiciadas, sobretudo, pela internet. Das revoltas e
manifestações mais difusas até àquelas mobilizações mais organizadas na
sociedade civil, ainda é possível ter a sensação de que a disputa pela
democracia fará parte da formação da opinião. Isso significa que a sociedade
procura estar presente tanto nas mais variadas dimensões da auto-organização
social como também junto às instituições formais, tentando influenciar
processos legislativos e se posicionando de maneira crítica diante das decisões
do judiciário. Tal presença é ainda mais evidente no caso de pautas
democráticas históricas (além das questões de justiça distributiva, há o
feminismo, o antirracismo,
o movimento LGBT, associações de direitos humanos).
Apesar das
aparências de recente ativismo legislativo, o Congresso Nacional tem assumido
uma postura prepotente e ideologicamente intimidadora. O resultado, como de
costume, é fazer com que os apelos moralizantes substituam a política. Afinal,
despolitização e conservadorismo se retroalimentam. Os debates levados a cabo
pelos congressistas são absurdos, obscurantistas e preconceituosos. De que
maneira então eles respondem às demandas dos movimentos sociais quando são
pressionados, tal como tem ocorrido? Além da prepotência e do preconceito, no
limite, com cassetete e spray de pimenta. De resto, Eduardo Cunha,
principalmente, precisa mobilizar sua influência e poder políticos para
assegurar a agenda moralizante, de olho ainda na rejeição definitiva do aborto
e da liberação das drogas. Neste ponto, não é somente a sociedade que ainda
poderá o incomodar, mas também o STF.
Portanto,
apostar na democracia significa disputar os direitos, significa poder se
contrapor a definições impostas de maneira conservadora acerca do que seja a
família, a mulher, a sexualidade e o “adolescente infrator”. Caso contrário,
produziremos leis ilegítimas. A esfera pública tende a barrar assim minorias
excluídas que não querem nem deveriam ser silenciadas. O aprofundamento da
nossa democracia depende fundamentalmente das vozes e da participação cada vez
maior dos atingidos por tais questões e leis. A vaga conservadora só poderá se
afirmar definitivamente vitoriosa caso se esgotem as resistências. Por sua vez,
considerando que as experiências de desrespeito, exclusão, opressão e
discriminação não desaparecerão da nossa vida assim tão facilmente, não
faltarão também motivações para a luta por parte daqueles que compõem hoje
nossa real oposição.
Rúrion Melo
é professor de Ciência Política da USP e pesquisador do CEBRAP. Escreve sobre
teoria crítica, direito e democracia, abordando temas relacionados à esfera
pública, movimentos sociais e lutas por reconhecimento.