segunda-feira, 20 de julho de 2015

Peter Singer: Por um altruismo mais eficaz

Imaginemos que Susana, uma professora aposentada com recursos moderados, decida legar suas economias para a fundação sem fins lucrativos que cuida dos belíssimos jardins do museu Metropolitan em Nova York em um ato repentino de altruísmo. Imaginemos agora um brilhante aluno recém formado de filosofia chamado Mateus que, após refletir cuidadosamente, decida largar a academia para seguir uma carreira convencional no mercado financeiro (sim, aparentemente isso é possível nos EUA) com todos os benefícios e o prestígio decorrentes do emprego mas com uma diferença: dedicando 10% de seu rendimento mensal para salvar a vida de crianças em países pobres. Qual dentre as duas escolhas é a mais correta? 

A primeira vista estaríamos lidando com duas ações igualmente "altruístas". Tanto Susana como Mateus privilegiam o bem comum, cada a um a seu modo. Qualquer tentativa de priorização por meio de critérios objetivos acabaria revelando apenas as preferências diferentes, nesse caso igualmente legítima, de cada um dos doadores.

Para o filósofo e ativista Peter Singer (Princeton) perguntas como essa não apenas possuem uma resposta correta como reconhecer esse fato é urgente para mudarmos o mundo. Em seu ensaio The Logic of Effective Altruism, publicado no último fórum de discussões da Boston Review, Singer desafia a proposição convencional segundo a qual a filantropia deveria atender apenas "às escolhas do coração", de natureza subjetiva, oferecendo um argumento utilitarista para justificar a filantropia (ver abaixo sua Ted Talk com legendas em espanhol).

Voltemos ao exemplo anterior. Segundo Singer, um altruísta eficaz deveria seguir o exemplo de Mateus - doar parte de seus recursos de Wall Street para salvar crianças pobres - e não de Susana -  preservar algumas belas flores do Metropolitan - por dois motivos. Em primeiro lugar porque o alvo da filantropia de Mateus produzirá mais bem-estar agregado no mundo do que o de Susan. Nem a soma do prazer de todos os nova-iorquinos juntos equivaleria ao valor da sobrevivência de um criança em necessidade. De um ponto de vista utilitarista, portanto, nem todas as formas de altruísmo são igualmente legítimas: algumas produzirão consequências melhores do que outras.




Contudo - e eis o ponto principal do argumento de Singer - Mateus doa com a razão, e não com o coração. Isto é, ao maximizar o efeito de cada dólar recebido doando-o para  os esforços sistemáticos para a erradicação da malária (digamos) os resultados de suas ações não apenas ajudarão uma causa mais importante do que a de Susana como também ajudarão a convencer dezenas de outros altruístas em potencial que, dedicando parte de seu tempo ou recurso, fortalecerão outras organizações filantrópicas. Para Singer, o altruísmo importa. Mas o modo como o praticamos, de maneira eficaz ou passional, também.

O primeiro passo para uma doação moralmente eficiente seria calcular objetivamente os resultados da doação. Um altruísta eficaz precisa garantir que as instituições em questão sejam transparentes sobre suas metas e sobre seus gastos (o próprio Singer fundou uma organização que ajuda a encontrar instituições filantrópicas eficazes), de outro modo não poderíamos assegurar que estamos fazendo a coisa certa. Além disso, argumenta Singer, é preciso que o ato altruísta em si não seja entendido como um ato de "auto-sacrifício". Fazer o melhor que podemos para tornar o mundo um lugar melhor não deveria significar tornar nossas vidas miseráveis ou extremamente onerosas para as pessoas que amamos.  O caráter "passional" de doações como as de Susana tornam o ato de doar uma atividade esporádica e imprevisível, mais ligada às necessidades psicológicas momentâneas do doador do que às necessidades objetivas do problema a ser enfrentado:

Effective altruism is based on a very simple idea: we should do the most good we can [...] What unites all these acts under the banner of effective altruism? [...] we should not think of effective altruism as requiring self-sacrifice, in the sense of something necessarily contrary to one’s own interests. If doing the most you can for others means that you are also flourishing, then that is the best possible outcome for everyone. Many effective altruists deny that what they are doing is a sacrifice. Nevertheless they are altruists because their overriding concern is to do the most good they can. The fact that they find fulfillment and personal happiness in doing that does not detract from their altruism.

Ao longo de sua longa carreira, Peter Singer praticamente fundou a área de Ética Aplicada especialmente em seus trabalhos sobre ética animal e médica, alterando o modo como concebemos o debate sobre os direitos animais e o papel dos pacientes na medicina (uma boa visão de conjunto pode ser encontrada no livro Ética Prática, traduzido aqui pela Martins Fontes). A premissa básica de sua filosofia é a de que todas as grandes conquistas morais humanas foram realizadas pela expansão de um mesmo princípio de igualdade fundamental, segundo o qual a vida de todos conta igualmente, sejamos homens, mulheres, negros, brancos, humanos ou animais. Expandíamos esse círculo normativo a medida em que passamos a usar argumentos racionais para avaliar de que modo podemos maximizar o bem-estar da comunidade moral. Sua teoria do altruísmo eficaz (que talvez seja melhor compreendida como uma teoria da filantropia eficaz) representa mais uma tentativa de expansão racional do horizonte moral: precisamos doar racionalmente. 

Teorias morais utilitaristas são extremamente controversas. Dois problemas típicos seriam: (i) será que podemos contabilizar o bem de modo objetivo, como supõe a teoria? Como contabilizar, por exemplo, o sofrimento de três crianças sofrendo de malária em Bangladesh contra mil meninas indianas sem acesso a qualquer forma de educação ou proteção jurídica? (ii) Não haveria tipos "especiais" de obrigação que devemos uns aos outros e que, por serem nossos e de ninguém mais, possuem prioridade normativa sobre deveres impessoais de assistência no outro lado do globo terrestre? Porque salvar uma criança pobre de Bangladesh seria sempre mais importante do que retirar meus concidadãos abaixo da linha de pobreza, ou mesmo tornar minha cidade uma ambiente menos degradante? Algumas dessas objeções são levantadas pelos debatedores de Singer na Boston Review, dentre eles o economista Daron Acemoglu

Contudo, para além das dificuldades clássicas relacionadas aos utilitarismo, o ensaio de Singer deixa em aberto um problema conceitual extremamente importante para a teoria normativa: qual a relação entre demandas éticas, exigidas dos indivíduos, por um lado, e a esfera política, exigida de todos, por outro? Pode ser relativamente fácil aceitar que utilizar tempo e dinheiro excedentes para melhorar a vida daqueles em situação de extrema de pobreza é algo bom e urgente. Entretanto, e se o mesmo montante de tempo, dinheiro e compromisso individual fossem utilizados para transformar relações sociais injustas ou para demandar um maior controle sobre os gastos políticos relacionados às causas do sofrimento (como saúde vs. orçamento de defesa)?

Um exemplo simples pode ilustrar o ponto em questão. A expansão do horizonte moral nos séculos XIX e XX incluiu na cidadania efetiva pessoas que não eram proprietárias (i. e. somos iguais independente dos títulos que possuímos). Isso só foi possível graças à conquista de direitos e à proteção de liberdades fundamentais para todos, algo bem diferente da filantropia vitoriana defendida na época pelos mais abastados. Em outras palavras: foi preciso retirar privilégios tanto quanto concedê-los à alguém. Acredito que utilitaristas coerentes devem levar em questão que a mera existência de Wall Street, das regras vigentes do mercado global ou das patentes médicas, em certos momentos colocam um obstáculo à maximização do "bem comum" da humanidade tanto quanto a dificuldade de financiamento de organizações filantrópicas. 

Agradeço à Yohana Ventura pela discussão.


Leituras sugeridas:

- Peter Singer (et ali): "The Logic of Effective Altruism" (Boston Review)

- Peter Singer: Practical Ethics