Conta-se que durante uma importante convenção do partido conservador inglês em 1970, na qual os rumos do partido estavam em discussão, a futura baronesa e primeira-ministra
Margaret Thatcher, então uma jovem liderança do partido, interrompeu uma apresentação que propunha um caminho mais pragmático e conciliador entre capitalismo e socialismo retirando de sua pasta um tomo grosso: "é nisso que acreditamos". O livro em questão era a
A Constituição da Liberdade escrito pelo filósofo e economista austríaco Friedrich Hayek (ver o relato
aqui).
Como sabemos, Thatcher levou a melhor na orientação ideológica do seu partido e durante três governos sucessivos transformou radicalmente a política inglesa, rompendo com a tradicional desconfiança conservadora frente ao livre-mercado e ao individualismo, e impondo duras derrotas políticas ao trabalhismo inglês.
No ensaio intitulado
The Friedrich Hayek knew, and what he got right - and wrong, publicado em julho na
NewStatesman, o filósofo político inglês John Gray (Oxford) traçou um denso perfil intelectual de Hayek. A partir de seus encontros pessoais com o economista e tendo como pano de fundo o impacto de suas ideias no
mainstream político inglês, no que se convencionou chamar de
Nova Direita, Gray procura mostrar que as concepções minimalistas de Hayek sobre o papel do governo na economia e seu ceticismo anti-democrático foram marcadas muito mais pela experiência política fracassado do Império Austro-Húngaro do que propriamente pela aversão ao fascismo ou ao socialismo na década de 30. Esses dois movimentos representariam, na verdade, apenas mais um exemplo possível de irracionalismo e ausência de instabilidade social:
At the start of the 20th century, Vienna was one of the world’s great cosmopolitan cities. Though not without grievous bigotry – in 1897, after repeated attempts by the emperor to block the appointment, the city elected a virulently anti-Semitic mayor – the population was not divided, as much of central Europe soon would be, into violently hostile groups. The antique structures of the Habsburg state supported a society that was remarkably modern, not only in its embrace of technology (railways and trams, electric lighting and public sanitation) but also in enabling people with widely differing cultures to coexist and work productively with one another. The destruction of this order after the Great War by the forces of nationalism – which the US president Woodrow Wilson inflamed by insisting that Europe could be rebuilt only on the basis of popular self-determination – framed a dilemma with which Hayek struggled for the rest of his long life [...] .
Hayek manteve relações permanentes com os principais filósofos e economistas ingleses do século XX, exercendo um papel intelectual semelhante ao de seus conterrâneos - e também exilados - Karl Popper e Wittgenstein (de quem era primo distante!). Podemos afirmar que Hayek, ao lado do já mencionado Popper, e do russo-letão Isaiah Berlin, redefiniram, a despeito de diferenças teóricas importantes entre eles, o pensamento político inglês do século XX
. Todos liberais. Todos pessimistas. E todos profundamente impactados pelo colapso da velha ordem política centro-européia. Não é à toa que identificamos a variedade de teoria liberal desenvolvida por esses autores - a qual o próprio John Gray é hoje um dos principais defensores - como liberalismo do medo.
As contribuições de Hayek para a filosofia política foram muitas. Mesmo que seu trabalho como economista tenha sido menor, como mostra Gray ao compará-lo com as contribuições mais duradouras de Keynes, Hayek formulou, por exemplo, uma das objeções mais importantes até hoje levantadas às experiências de planificação econômica.
Sua formulação mais famosa desse argumento foi apresentada no célebre artigo Economics and Knowledge publicado em 1937. Economias de controle central procuram determinar a alocação mais eficiente dos recursos econômicos a partir da coleta e analise de informações sociais produzidas por agências governamentais. Hayek, contudo, procura mostrar que para além dos já conhecidos problemas de oportunismo e trapaça (falseamento das próprias preferências) e de dificuldade de coleta de informações em grande escala (custos de obtenção de informação), existe um obstáculo verdadeiramente intransponível
para mecanismos de centralização: a própria relação de trocas livres é uma forma de produzir conhecimento e, portanto, não é possível determinar de antemão qual seria a alocação ótima de recursos sociais.
Mesmo uma sociedade composta apenas por altruístas socialistas, por exemplo, dependeria do mercado como uma fonte de informação necessária para a atribuição de valor à bens de consumo e bens de produção na medida em que consumidores não sabem explicitamente quanto pretendem gastar ou poupar, nem as empresas possuem uma informação perfeita sobre sua capacidade produtiva, e muito menos as agências estatais sabem precisar qual será o impacto de longo-prazo de suas políticas públicas (isto é, para Hayek, não existe uma "decisão lá", anterior à própria interação no mercado, à espera de ser coletada). Dada a limitação do conhecimento social, mesmo sociedades nas quais os meios de produção são coletivos dependeriam de instituições
de que imitassem, pelo menos, as forças do livre-mercado. (Essa é, por exemplo, a principal premissa do socialismo de mercado de autores marxistas como John Roemer).
Todos que já se aventuraram na obra de Hayek sabem o quanto seus textos são repetitivos, enfadonhos e... convincentes até certo ponto. Podemos discordar radicalmente de sua concepção de liberdade individual (a qual não aceita a possibilidade de formas não-intencionais de coerção) e, sobretudo, de sua teoria da legitimidade política que, reformulando um clássico argumento de David Hume, procura mostrar de que modo a existência de uma ordem legal (qualquer que seja ela) beneficiaria a todos os envolvidos vis-à-vis a ausência completa de estabilidade. Disso decorreria, segundo Hume (e Hayek), que mesmo aqueles menos beneficiados por um dado arranjo legal (por exemplo, aqueles sem propriedade em um sistema capitalista) possuiriam uma boa razão para apoiar suas instituições não obstante os eventuais ônus pessoais sob certos arranjos. Desse modo, não existem reivindicações de justiça ou propriedade anteriores às próprias regras sociais que as instituem.
Como vários autores já demonstraram, contudo, estamos diante de um argumento falacioso caso queiramos justificar essa ordem para cada uma das pessoas envolvidas e não apenas para o "bem comum". O que me garante que em no estado de natureza eu não esteja em melhores condições pessoais do que vivendo sob um regime de apartheid racial, ou sendo um trabalhador ou trabalhadora pobre em uma organização social ultra-liberal? - Dois exemplos extremamente bem-sucedidos de arranjos legais "estáveis" mas profundamente injustos.
Entretanto, a leitura em primeira mão das obras de Hayek nos convence de que caso o valor a ser maximizado pela organização social seja a estabilidade institucional e a produção econômica agregada (e não a justiça, os direitos individuais ou a felicidade humana - três "miragens filosóficas" segundo Hayek) então talvez devêssemos prescindir de uma noção mais ampla de democracia ou da tentativa de realizar uma ordem social mais justa. O problema é que para darmos esse passo precisamos aceitar, em primeiro lugar, uma concepção agregativa de "bem comum" e uma moralidade exclusivamente consequencialista. Duas concessões extremamente difíceis de serem feitas, principalmente pelos menos beneficiados pela cooperação social.
A leitura do ensaio de Gray pode ser útil em muitos sentidos. Em primeiro lugar porque Gray
aponta para os erros mais comuns de interpretação das obras de Hayek (aqueles que acreditam, por exemplo, que Hayek tem como foco último de preocupação o indivíduo, e não o progresso social, talvez precisem reler melhor seus argumentos...). Em segundo lugar, na medida em que aponta para
os limites de sua visão econômica no mundo de hoje. Com bem observa Gray, do fato de que as sociedades humanas
tendem a se auto-organizarem por meio de regras e convenções úteis não se segue
que tais regras promovam necessariamente uma "ordem liberal" como assume Hayek - a partir das recentes crises econômicas, conclui Gray, podemos concluir que "não há nada particularmente liberal na Máfia".
Finalmente, a leitura pode ser útil porque uma parte do pensamento político brasileiro tem encontrado no liberalismo conservador de Hayek uma importante fonte de inspiração. Na
visão deles, a política brasileira estaria presa à um Estado excessivamente opressor e ineficiente (ver aqui uma
tentativa de desenvolver esse argumento). Precisaríamos de mais auto-organização econômica e menos intervenção estatal.
Ainda que, tal como ocorrido na Inglaterra, seja perfeitamente possível entender a conciliação entre conservadorismo moral e os argumentos de estabilidade constitucional e econômica defendidos por Hayek em A Constituição da Liberdade, talvez seja o caso de prestarmos um pouco mais de atenção para a história política da América Latina antes de seguirmos nesse caminho. A insistência em usar a força e a opressão como meios legítimos para a criação de uma ordem dita "liberal" - em um sentido muito estranho do conceito - e contra tentativas de expansão dos direitos
políticos e do acesso equitativo à riqueza social em países como Argentina, Uruguai, Brasil, Chile, etc. tem sido a principal fonte de destabilização democrática na região. A influência de Hayek sobre os juristas e economistas da junta militar no Chile durante a ditadura de Pinochet, por exemplo, foi notória, ainda que o endosso do próprio Hayek ao "autoritarismo liberal" [sic] seja um tema até hoje em aberto (ver aqui e aqui).
Exemplos históricos como esses nos mostram que, antes de sentarmos para tomar chá com Hayek, precisamos levar a sério certo paradoxo presente nas concepções liberais-conservadoras de justiça: a ideia de que é possível, em nome da prosperidade e da proteção das liberdades pessoais, ameaçar as instituições democráticas e aterrorizar os cidadãos, violando seus direitos fundamentais com uso o ilegítimo do aparato coercitivo. Nada mais estranho ao ideal de uma sociedade verdadeiramente livre.
Agradeço à Camila Rocha pela discussão e sugestões.
Leituras adicionais:
(versão condensada publicada pela revista Reader's Digest em 1945, inclui ilustrações!)
(artigo publicado na
The Nation sobre Hobbes e a tradição conservadora-revolucionária inglesa no qual o autor discute a postura de Hayek e Friedman sobre o "autoritarismo liberal").
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Facção do Chá ao Estilo Brasileiro (post)