segunda-feira, 10 de agosto de 2015

A invisibilidade do ateísmo no Brasil

Segundo a ATEA (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos) e com base nos dados do último senso de 2010, o número de pessoas que se declara publicamente como "sem religião" é de quase 2 milhões de brasileiros maior, portanto, do que o número de brasileiros que declara possuir uma religião não-cristã (ver o vídeo institucional abaixo). 




Contudo, a visibilidade do ateísmo ou de estilos vida estritamente seculares é muito baixa na esfera pública brasileira. Procurando aumentar a visibilidade social do grupo, a ATEA tem veiculado outdoors com slogans pró-ateísmo (tais como "Sua religião não é nossa lei" e "Ateísmo: uma relação pessoal com a realidade"). Os resultados ainda são incertos visto que a maioria das companhias de transporte coletivo recusaram os contratos publicitários amparados nas leis locais de proteção "à moral e aos bons costumes". Ser ateu, para grande parte da nossa sociedade civil, seria ofender o direito de ser religioso. 

Em artigo recente para a Novos Estudos denominado Ateísmo no Brasil: da invisibilidade à crença fundamentalista", Paula Montero (USP/CEBRAP) e Eduardo Dullo (Museu Nacional) procuram interpretar esse fenômeno. A principal dificuldade das minorias atéias no Brasil, segundo os antropólogos, é desvincular concepções morais e intelectuais que afirmam positivamente a inexistência de Deus, de um lado, da posição mais aceita de "sem religião", de outro. Ou seja, ser ateu no Brasil é ser definido pela negação da religião oficial e não como uma escolha (legítima) de um modo de vida no qual a religiosidade não é dotada de significado algum e, portanto, não deveria informar as nossas escolhas pessoais ou relações morais. 

Ao excluir a possibilidade lógica (e ética) de que alguém "não creia", a esfera pública brasileira estaria classificando de modo binário os cidadãos e cidadãs brasileiras entre crentes e não-crentes quando o pluralismo moral em uma sociedade democrática deveria exigir que a adesão a modos de vida seculares fossem respeitados enquanto apenas mais uma concepção de felicidade humana, em pé de igualdade frente a cada uma das demais escolhas possíveis. Como afirmam os autores:

não crer na existência de Deus é percebido [pela maioria religiosa] como uma escolha dentro do campo de possibilidades religiosas. Desse modo, a posição pretendida pelos ateus, de poder expressar publicamente suas críticas à religião situando-se ao mesmo tempo fora do campo religioso, não é uma posição historicamente possível no atual contexto social e jurídico brasileiro. Essa impossibilidade histórico/jurídica é reforçada pelo fato de que “ser ateu” é percebido como uma “escolha religiosa” individual tornada possível pela proteção legal, e não uma herança “natural” como a cor da pele ou a orientação sexual. O entendimento comum de que as pessoas são livres para escolher a própria “crença”, um dos princípios mais bem-aceitos do Estado laico, é continuamente mobilizado aqui para definir o “ateísmo” como uma variante “religiosa”. 

Às vésperas de uma tentativa de golpe regimental pelos setores mais conservadores da nossa sociedade  - que abertamente já se posicionaram contra a laicidade do Estado brasileiro - talvez seja o momento de prestarmos mais atenção em algumas distinções elementares. Que do ponto de vista teológico existe uma divisão importante entre "sem religião" e "não religioso" mas que, do ponto de vista da justiça de nossas instituições, trata-se apenas de uma diferença e não de uma desigualdade de valor.

- Montero & Dullo: "Ateísmo no Brasil: Da Invisibilidade à Crença Fundamentalista"

Resumo: Apesar do aumento significativo do número de brasileiros que se declaram sem religião, de acordo com o Censo de 2010, o ateísmo como doutrina política permanece praticamente invisível como fenômeno social e como objeto de pesquisa acadêmica no Brasil. A partir da problemática mais ampla da discussão sobre a laicidade e a formação de uma sociedade secular, este artigo propõe descrever a tentativa de veiculação de uma campanha ateísta nos transportes públicos (por parte da Associação de Ateus e Agnósticos — ATEA) e analisar as razões para o fracasso da campanha. Considerando as reações à campanha e a acusação de “fundamentalismo” direcionada à ATEA, argumentamos que o ateísmo é reinterpretado socialmente no Brasil como uma escolha interna ao campo das religiões.