Os moradores da Grande São Paulo conhecem muito bem a sensação: existem duas Polícias Militares em São Paulo. Uma delas atua na periferia das cidades da região metropolitana. Ela é uma das corporações mais agressivas e violentas do mundo, conta com índices de confronto e homicídio próximos (se não superiores) à regiões de conflito armado ao redor do mundo e um triste histórico de violação de direitos humanos. A outra, que atua principalmente na zona oeste e em alguns enclaves da classe média-alta da região sul da capital, é extremamente cordial e eficiente. Procura cumprir os procedimentos legais e assume que os cidadãos são, em princípio, inocentes. Uma rápida consulta por bairros nos gráficos da violência organizado pelo Estadão ilustram em estatísticas essa dupla realidade.
Entretanto, em meio à crise social das últimas semanas a sensação de que a PM funciona como uma força de segurança seletiva para uma parte da cidade contra a outra ficou ainda mais explícita. Se por um lado o governo de São Paulo optou por reprimir com extremo rigor o movimento dos alunos e alunas secundaristas da rede pública estadual e os movimentos sociais pela mobilidade urbana, por outro, as forças de segurança do estado foram usadas para ajudar a organizar às pressas manifestações contrárias ao governo federal, bloqueando a principal avenida da cidade antes mesmo dos primeiros manifestantes chegarem. O recente episódio da PUC-SP ilustra o desconforto da seletividade: diante de uma possível escalada de violência entre alguns manifestantes contra o governo e os estudantes da PUC, a PM atuou com o seu tradicional rigor e disciplina militar. Contudo, manifestantes (e mesmo cidadãos desinformados) que utilizaram as cores vermelho durante os protestos da extrema-direita não contaram com a mesma sorte.
Em uma corajosa entrevista ao El País, Conrado Hübner Mendes (USP) denuncia os problemas da seletividade da segurança em São Paulo um problema que, além da institucionalização do violência contra os cidadãos da periferia, começa a ganhar também contornos partidários à medida que a divisão política do Brasil se agrava. O próprio sistema jurídico estaria começando a apresentar sinais de partidarização - como a atrapalhada tentativa de criminalização de um ex-presidente da república pelo Ministério Público de São Paulo. Segundo Mendes, contudo, o problema é muito mais complicado do que apenas o uso seletivo da força. A institucionalização de demandas de classe no sistema policial e penitenciária é uma realidade antiga entre nós.
[a] polícia tornou-se marionete dos políticos mais primitivos da democracia brasileira. É instrumento para realização de objetivos políticos escusos: pratica a repressão violenta de demandas populares, dissemina o medo, oferece casos numerosos para os programas sensacionalistas que celebram qualquer coisa que a polícia faça. Policiais são mal remunerados, trabalham em situação precária e de alto risco, mas continuam sendo agentes disciplinados de uma política que só os prejudica. São reféns da própria miopia [...]
O risco, claro, é que agentes da lei se partidarizem, que passem a ser percebidos como defensores de interesses de certos grupos e não de outros, que passem a ser vistos por muitos como adversários e não como agentes imparciais preocupados em exercer sua função no estado de direito. Perdem a legitimidade e o respeito, moedas caras para que tenham boa relação com a sociedade. É o mesmo risco que correm Judiciário e Ministério Público quando desprezam regras formais e informais para o bom exercício de sua função. Risco talvez já não seja a palavra mais adequada, a partidarização da polícia e de parcela do sistema de justiça é uma realidade com a qual já estamos lidando. Esse alarme está tocando faz tempo e uma situação aguda como a presente está nos permitindo aprender a duras penas o significado não trivial desse fenômeno.
Entre os dias 28 de março e 1 de abril a Faculdade de Economia e Administração da USP organizará um mini-curso sobre as origens do igualitarismo sueco com o economista Erik Bengtsson (Lund). O curso é aberto ao público acadêmico em geral. Mais informações e a ementa do curso podem ser encontradas na chamada abaixo.
Erik Bengtsson, Lund University/Gothenburg University
Dias: 28, 30 de março e 1 de abril de 2016
Horário: 14 horas
Local:
Sala Delfim Netto, FEA 2
In international perspective, Sweden is known as a country with a high degree of
economic equality and a large and generous welfare state. To the extent that it is true,
this module explores the history of this state of affairs: why and how did Sweden
become that way? We go back to the mid-to-late 19th century to investigate the
development of Swedish society from the viewpoint of class relations, inequality and
welfare policy
Mandatory Readings
Alestalo, Matti and Kuhnle, Stein (1987) “The Scandinavian Route: Economic, Social,
and Political Developments in Denmark, Finland, Norway, and Sweden”, International
Journal of Sociology 16 (3–4): 3–38.
Bengtsson, Erik, Anna Missiaia, Mats Olsson and Patrick Svensson (2015) “Wealth
Inequality in Sweden, 1750–1900”. Presented at the Economic History Society Annual
Conference in Wolverhampton, March 2015, the XVIIth World Economic History
2
Congress, Kyoto, August 2015, and the 11th Swedish Economic History Meeting in
Umeå, 8–10 October 2015.
Optional Readings
Bengtsson, Erik (2014) “Labour’s Share in Twentieth Century Sweden: A
Reinterpretation”. Scandinavian Economic History Review, 2014, vol. 62 no. 3, pp.
290–314.
Castles, Francis G. (1973) “Barrington Moore’s Thesis and Swedish Political
Development”, Government and Opposition pp. 313-331.
Lundh, Christer (2004) “Wage Formation and Institutional Change in the Swedish
Labour Market 1850–2000”, in Christer Lundh, Jonas Olofsson, Lennart Schön & Lars
Svensson (Eds.), Wage Formation, Labour Market Institutions and Economic
Transformation in Sweden 1860–2000 (Lund: Lund University), pp. 92–143.
Roine, Jesper and Daniel Waldenström (2008) “The Evolution of Top Incomes in an
Egalitarian Society: Sweden, 1903–2004”, Journal of Public Economics 92(1–2), 366–
387.
Tilton, T. (1974) “The Social Origins of Liberal Democracy: The Swedish Case”,
American Political Science Review 68(2): 561–571.
Plus three short articles from the Economist magazine, from a special report on the
Nordic countries from 2 February 2013. “The Nordic countries are probably the best governed
in the world”, “The Nordic countries are reinventing their model of
capitalism“, and “Immigration and growing inequality are making the Nordics less
homogeneous”, all available from http://www.economist.com/printedition/2013-02-02 .
O Departamento de Ciência Política da USP lançou a programação de seminários de pós-graduação para o primeiro semestre de 2016. As apresentações de pesquisas em andamento são semanais e abertas ao público em geral. Mais informações podem ser encontradas no cartaz abaixo.
A diretoria executiva e o comitê acadêmico da ANPOCS publicaram em conjunto nesta semana uma notasobre o acirramento dos embates políticos no Brasil. A nota alerta para os riscos que o descumprimento do devido processo legal, justificado por posições políticas-partidárias e apoiado por parte da mídia, pode acarretar para o futuro da democracia brasileira.
NOTA DA DIRETORIA EXECUTIVA E DO COMITÊ ACADÊMICO DA
ANPOCS SOBRE A CONJUNTURA POLÍTICA E SOCIAL DO PAÍS
A Diretoria Executiva e o
Comitê Acadêmico da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências
Sociais (ANPOCS) vêm a público expressar sua preocupação com a situação
política de nosso país. Vivemos um período de grave aguçamento das polarizações
políticas, recrudescimento da intolerância e crescente desrespeito a direitos
individuais. Sob o pretexto de manter a ordem pública, agentes do sistema de
justiça e das forças de segurança se excedem em suas ações, fazendo da
transgressão da lei um instrumento de suposto combate a ilegalidades. Tais
ações, contudo, além de se constituírem em violações imediatas de direitos
fundamentais, produzem o risco de uma escalada da violência política. É preciso
que lideranças políticas e sociais, bem como as autoridades públicas e os meios
de comunicação, tenham responsabilidade para com a preservação das liberdades e
franquias democráticas duramente conquistadas pelo povo brasileiro, sem
hipotecá-las à concretização de suas próprias agendas, por mais meritórias que
possam ser em seus fins últimos. Não se produz justiça pelo justiçamento, nem
se alcança a estabilidade política mediante o solapamento das regras
democráticas ou o extermínio de atores políticos e sociais. A história nos
cobrará uma pesada fatura se neste momento aceitarmos soluções demagógicas e
ilegais como saídas para a atual crise política.
A plataformaThe Intercept publicou neste final de semana uma longa matéria sobre os últimos acontecimentos políticos no Brasil, na qual procura contextualizar a escalada da crise política desde a eleição do governo Dilma até a dramática tentativa de golpe constitucional atualmente em curso no país (o texto pode ser lido também em português). Diferentemente de outras matérias na imprensa internacional, o artigo de Greenwald coloca em questão a forma como cobertura internacional da crise tem sido pautada por fontes e comentários (ou em alguns casos até mesmo por press release traduzidos) rastreados até o Grupo Globo de comunicação, maior conglomerado de mídia do Brasil controlado pela família Marinho que, como é de conhecimento comum no país mas não necessariamente fora dele, tem dado apoio incondicional à tentativa de derrubada do governo eleito em 2014.
O artigo aponta o caráter extremamente elitista dos movimentos de rua contra Dilma e o flerte de suas lideranças com a nova extrema-direita das Américas. Põe em questão também a seletividade da cobertura da grande imprensa, como a proteção jurídica e midiática ao líder do impeachment Eduardo Cunha (não apenas um dos grandes beneficiados pela Lava Jato, como também acusado de ameaçar testemunhas de defesa do processo) e ao silenciamento constrangedor sobre o fato de que muitos dos membros da comissão de impeachment fazem parte, justamente, dos partidos que mais se beneficiaram de contribuições ilegais e que teriam todos os motivos do mundo para tomarem o poder e pararem a investigação (estima-se que cerca que 45 dos membros receberam financiamento das empresas atualmente sob investigação). Finalmente, o artigo ressalta ao o papel comprometedor do populismo judiciário na oposição ao governo, quando um juiz do interior do país cooperou com as Organizações Globo divulgando gravações - aparentemente ilegais - das conversas da presidente da república.
(Marca de luxo lança coleção em apoio ao juiz Sérgio Moro)
Como conclui Greenwald:
There is no question that PT is rife with corruption. There are serious questions surrounding Lula that deserve an impartial and fair investigation. And impeachment is a legitimate process in a democracy provided that the targeted official is actually guilty of serious crimes and the law is scrupulously followed in how the impeachment is effectuated.
But the picture currently emerging in Brazil surrounding impeachment and these street protests is far more complicated, and far more ethically ambiguous, than has frequently been depicted. The effort to remove Dilma and her party from power now resembles a nakedly anti-democratic power struggle more than a legally sound process or genuine anti-corruption movement. Worse, it’s being incited, engineered, and fueled by the very factions who are themselves knee-deep in corruption scandals, and who represent the interests of the richest and most powerful societal segments long angry at their inability to defeat PT democratically.
In other words, it all seems historically familiar, particular for Latin America, where democratically elected left-wing governments have been repeatedly removed by non-democratic, extra-legal means. In many ways, PT and Dilma are not sympathetic victims. Large segments of the population are genuinely angry at them for plainly legitimate reasons. But their sins do not justify the sins of their long-standing political enemies, and most certainly do not render subversion of Brazilian democracy something to cheer.
Dois eventos políticos marcarão o ano de 2016. Ambos estão relacionados com o fortalecimento da extrema-direita no Novo Mundo. O primeiro deles é a surpreendente proeminência do bilionário Donal Trump nas primárias da campanha eleitoral norte-americana. Uma proeminência que transborda as urnas dos republicanos e contagia a mídia, os movimentos sociais e a conversa cotidiana nos EUA. Com uma retórica inflamada contra o establishment partidário, atos de violência durante comícios e contando com o apoio de grupos supremacistas brancos, podemos afirmar que Trump, infelizmente, será o grande vitorioso das eleições deste ano, ainda que dificilmente o candidato chegue a ocupar efetivamente a Casa Branca. Os adversários políticos do bilionário caíram um atrás do outro - a mídia progressista, os republicanos, os financiadores de campanha conservadores, etc. Mesmo que o magnata neo-nacionalista perca a nomeação, nada indica que a violência do "trumpismo" nos EUA irá desaparecer tão cedo. Trump roubou a cena e a mente da oposição conservadora
(Apoiadora de Donald Trump faz saudação nazista após o cancelamento do comício de Trump em Chicago, devido ao confronto entre manifestantes pró e anti-Trump)
O segundo evento é mais trágico, mas não menos surpreendente. Uma tentativa de golpe constitucional no Brasil, apoiado por setores conservadores do país, como a principal organização de mídia no Brasil (as Organizações Globocontrolada pela família Marinho), lideranças de São Paulo, juízes de primeira instância, e - esse é o ponto - liderado nas ruas por grupos de extrema-direita, que desde o final 2014, lutam pela anulação da eleição de Dilma Rousseff.
Existe muito debate no momento sobre a força ou a liderança desses esses grupos, como por exemplo o papel de think tanks de direta norte-americano, e, principalmente,se eles possuirão alguma projeção na política nacional. Em outras palavras, se teremos ou não um "Trump brasileiro". Candidatos ao título existem. Um deles é um militar aposentado que acredita que relações homoafetivas são essencialmente patológicas e que já defendeu abertamente no Congresso Nacionalque (algumas) mulheres mereceriam ser estupradas.
O outro é um juiz do interior do país responsável por julgar uma dos piores escândalos publicamente conhecidos da história brasileira, envolvendo a estatal do petróleo e praticamente todo o congresso nacional (alguns partidos, como o ultra-conservador PP foi pego inteiro pela justiça). Mais recentemente, Sério Moro, sob a justificativa do combate à corrupção, iniciou abertamente uma campanha de perseguição política aos membros do partido do governo. Adicionando insulto à injúria, existem fortes evidências de que o mesmo juiz grampeou ilegalmente o próprio gabinete da presidência do Brasil. Além de constituir uma quebra da constitucionalidade no país, a ação ameaça a própria continuação da mega-operação contra a corrupção no país ao violar o devido processo legal no caso.
Interessante notar que o nome do ex-militar e do juiz são os únicos que aparecem nas pesquisas realizadas durante as manifestações. Isso faz sentido na lógica dos grupos de extrema-direita: todos os partidos políticos brasileiros seriam igualmente ilegítimos. Em pesquisa realizada em atos anteriores, quase a metade dos presentes concordaram que a melhor solução para a crise seria "entregar o poder para um juiz". De acordo com a extrema-direita, a única solução política para o país é a abolição temporária dos partidos políticos e a transferência imediato dos poderes executivos para atores apolíticos (sejam eles juízes, militares ou empresários). Na verdade, ao escutar os relatos dos manifestantes em primeira mão (ver o link abaixo) não parece existir nenhuma consideração pela continuação da organização democrática no Brasil:
(Grupos de extrema-direita pedem intervenção militar em São Paulo durante manifestação anti-governo)
Assim como no caso dos movimentos extremistas que apoiam Trump hoje, os grupos de extrema-direita brasileiro também foram inicialmente cortejados pela oposição, pela grande mídia (no EUA a Fox News) e, para a surpresa de uns e desespero de outros, tomaram um rumo próprio. Ao mesmo tempo em que aumentam nas ruas os casos de agressão e hostilidade contra defensores de posições progressistas, as próprias lideranças da oposição passaram a temer a rejeição eleitoral. Mesmo a Rede Globo precisa evitar, algo envergonhada, entrevistas com manifestantes ou a transmissão das imagens ao vivo devido a presença de cartazes de apoio à intervenção militar. Não se trata de um movimento político. Mas de uma luta anti-política.
O renascimento da extrema-direita e do neo-nacionalismo nos EUA e no Brasil são, evidentemente, fenômenos totalmente diferentes. Em primeiro lugar, o significado daquilo que passa por "establishment" nos dois países é totalmente distinto e, a despeito de elevados índices de desigualdade e exclusão racial, a configuração política não encontra nenhuma similaridade nos dois países. Talvez a principal diferença resida no contraste entre o recorte sociológico dos trumpistas, em sua maioria trabalhadores brancos não-qualificados relativamente empobrecidos, e os novos nacionalistas brasileiros e brasileiras, oriundos dos estratos superiores da hierarquia social. Não devemos nos enganar: os argumentos radicais da extrema-direita no Brasil encontra apoio na elite econômica do país, um feito que o trumpismo (felizmente para os norte-americanos) ainda não conseguiu realizar.
Contudo, a despeito das diferenças existe uma lição importante a ser aprendida nos dois casos. Gostaria de apresentar um argumento a respeito de um possível erro de avaliação nos dois casos. Um erro comum mas, acredito, grave dada a gravidade do momento. Evitar esse erro de avaliação é fundamental para entendermos o que aconteceu, está acontecendo e infelizmente acontecerá conosco em 2016. Para isso precisamos entender três coisas: o sentido de establishment, a interpretação recebida dos fatos e, finalmente, o erro de avaliação.
Comecemos com o problema norte-americano. Se o movimento neo-nacionalista Making America Great Again de Donald Trump é contra o establishment, o que isso significa? Establishment não é apenas um termo essencialmente contestado, ele é essencialmente relacional: ele depende da origem da perspectiva de quem contesta. Uma boa definição inicial para os EUA foi fornecida por Marilyn Geewax, editora de economia da National Public Radio. Democratas e republicanos divergem muito sobre muitas coisas, mas podemos apontar três posições sobre o futuro da economia norte-americana com os quais todos concordam: (i) a globalização é inevitável, (ii) o aumento da produtividade econômica (e não apenas da produção) depende de trabalho altamente qualificado e uma posição privilegiada no mercado global e (iii) a imigração é a melhor forma de atrair novos talentos para o país.
Democratas e republicanos divergem, naturalmente, sobre como cada um desses pontos deve ser realizado - democratas preferindo subsídios federais e incorporação de residentes não-documentados enquanto republicanos defendem o livre-mercado e leis duras de imigração e naturalização. Mas ambos os partidos hoje concordam, por exemplo, que a única chance de crescimento econômico nas próximas décadas para o país é participar de acordos econômicos multilaterais e manter o predomínio global na produção tecnológica e científica.
Para isso, os EUA precisam serem mais abertos - e não menos - ao mundo. Trump montou uma campanha (até o momento) extremante bem-sucedida contra todos esses pontos. Sua proposta para os EUA é fechar sociedade norte-americana tanto simbolicamente, como no caso de grandes acordos de cooperação econômica, como, literalmente, no caso da sua famigerada proposta de construir a grande muralha da América contra as "hordas de estupradores" do México.
O plano da extrema-direita parece, no longo prazo, catastrófico para os EUA. Tão estúpido na verdade que a principal explicação encontrada para o sucesso do neo-nacionalismo de Trump é baseada em fatores psicológicos. Os eleitores e eleitoras de Trump não saberiam o que fazem, estão sendo enganados por uma mistura de retórica de reality show e apelo à símbolos da (considerada) grandeza do país. Essa é a opinião, por exemplo, de Mark Zandi, economista-chefe da agência Moody, segunda a qual, "a performance da economia [norte-]americana é boa" e que "a fúria política está sendo causada [na verdade] por candidatos à presidência dos dois partidos". E aqui encontramos aquilo que acredito ser um possível erro de avaliação.
De fato, os números da retomada do crescimento econômico nos EUA são positivos. Por exemplo, os lucro corporativo já ultrapssaram os valores pré-crise de 2008. O problema é que a divisão social da riqueza talvez nunca tenha sido tão desigual na América do Norte como no começo do século XXI. A classe média no país está desaparecendo pouco a pouco. Recentemente, um estudo sobre os lucros corporativos mostrou que apenas 6% das empresas no país detêm cerca de 50 % da renda das empresas na bolsa de valores. Os norte-americanos vivem hoje um típico problema latino-americano: o bolo cresce mas não está sendo divido. Trump conhece seu eleitor. E o seu eleitorado sabe que não terá vez no futuro econômico da América, tal como imaginado pela elite econômica e política. Seus eleitores e eleitoras furiosas sabem exatamente aquilo no que estão votando.
Como vimos acima, o papel da extrema-direita na trama brasileira está longe de ser um grito dos (relativamente) excluídos da apropriação da riqueza social. O sentido de establishment entre nós é diferente e, consequentemente, a sua tentativa de destruição também o é. Contudo, existe uma tentação explicativa para o caso brasileiro. Dado que a grande motivação por trás do movimento anti-governo é a luta contra a corrupção política e dado que o problema afeta não apenas o governo mas também - diríamos, sobretudo - a oposição, tendemos a concluir rapidamente que estamos diante de uma situação de oportunismo partidário. Os movimentos de rua estaríam sendo enganados pela elite política e cultural do país. A oposição estaria se aproveitando do sentimento difuso de descontentamento despertado pelos escândalos para retomar um protagonismo partidário perdido à quase duas décadas. Em uma palavra, os neo-nacionalistas brasileiros não sabem exatamente o que estão fazendo.
Diferentemente, acredito que a luta contra o establishment atualmente conduzida por grupos de extrema-direita é bem mais complicada do que parece a primeira vista. Mas todos sabemos o que estão fazendo - pelo menos no que diz respeito à interpretação social do país.
O que podemos chamar de consenso ou grande pacto social no Brasil nas últimas décadas é moderadamente progressista. Podemos caracterizá-lo como aquilo que o economista Samuel Pessoa identificou por "contrato social" da redemocratização. Dentre outras características, esse contrato defende um modelo de crescimento econômico moderado, com forte expansão dos serviços públicos e gasto social, especialmente na forma de pensão e - marginalmente em termos tributários - em programas sociais contra a erradicação da pobreza. A escolha por um modelo de um crescimento econômico moderado está longe de ser maluca. Em um país com um déficit histórico de trabalho qualificado e capital humano, crescimento econômico rápido implicará que a renda se concentrará ainda mais no topo da estrutura social. Somos uma das democracias mais economicamente desiguais do mundo. Faz sentido não queremos aumentá-la ainda mais.
Como afirma Pessoa:
[o] processo de redemocratização gerou demanda para
construção de um estado de bem-estar social extremamente abrangente. Temos hoje saúde,
educação e aposentadoria públicas e universais. Além dos sistemas universais, temos uma
série de programas desenhados para grupos da sociedade que visam cobrir riscos específicos
de uma economia de mercado: seguro-desemprego, auxílio-doença e um sistema bastante
generoso de pensão por morte são três exemplos. Desse ponto de vista não há diferenças significativas entre os governos Lula e FHC [...]
No contrato social vigente, a variável crescimento econômico tem sido residual. O crescimento
tem sido o possível depois de atendidas as demandas dos programas sociais. Se por
algum motivo a situação da economia melhora e o crescimento se acelera, o Congresso vota
por elevação na velocidade de crescimento do valor dos benefícios vinculados aos programas
sociais. A melhor expressão do contrato social atual é a regra que vincula o crescimento do
benefício real do salário-mínimo ao crescimento do PIB. Dado que o crescimento do gasto
público com programas sociais vinculados ao piso salarial se deve a dois motivos — o crescimento
do valor real do salário-mínimo e o da cobertura, que, devido à dinâmica populacional,
é positiva e crescente —, a regra em vigor, necessariamente, fará com que o gasto cresça
a velocidade superior ao crescimento do PIB. O contrato social vigente requer crescimento
da carga tributária. Por mais que ela seja muito elevada, o forte processo de formalização
sugere que há espaço para elevação adicional da carga sem necessidade de elevação da carga
tributária legal. No entanto, a elevação da carga tributária legal está sempre na agenda, como
ilustrado pelo recente debate em torno da recriação da CPMF.
Podemos afirmar que até o final do primeiro governo Dilma, existia certo apoio a contínua expansão da carga tributária, ao aumento relativo e progressivo do salário mínimo e à expansão de programas sociais de redistribuição de renda - especialmente para focados na base da pirâmide. A política de aumento real do salário-mínimo foi um exemplo importante do pacto da redemocratização. Vivemos sob o maior poder de compra nos últimos 30 anos. Trata-se da renda básica de mais de 46 milhões de brasileiras e brasileiras segundo o DIEESE. Ou exemplo é a evolução da redução da pobreza extrema no país. Na última década quase 20 milhões de cidadãos foram incorporados à economia e à esfera de mínima dignidade social exigida pela Constituição de 88 (contudo ainda temos um Portugal inteiro de miseráveis). O dado é relevante na medida em que os números pararam de cair desde 2013. Mais um exemplo de que, com o fim do crescimento econômico da era Lula, as partes do contrato precisam re-discutir os termos da distribuição.
Ou seja, nosso golpe conta com a mídia, o carisma de líderes conservadores, o oportunismo cínico da aposição e, certamente, com muita estupidez. Mas, tal como no caso norte-americano, estamos também diante de um grave dilema distributivo. Para além de juízes celebridades e defesa de causas ridículas, como o suposto direito nacional de viajar para parques temáticos nos EUA, os manifestantes em verde-amarelo rejeitam o contrato social tal como o conhecíamos. Para eles, e, na verdade, para todos nós caso o golpe em curso seja bem sucedido, ele já acabou.
As manifestações apresentaram um caráterfortemente elitista e racializado. Famílias brancas com com estudo superior (77% dos entrevistados disseram possuir curso superior completo) e com rende de mais de 10 salários mínimos. Não temos como saber com certeza o perfil de mobilidade social desses manifestantes. Seria um dado interessante na medida em que nos mostraria como essas pessoas interpretaram o processo de grande inclusão social das últimas duas décadas. Arrisco um palpite. "Queremos nosso país de volta", reivindicam os manifestantes. Devemos entender: queremos baixa inflação para o nosso consumo e alto desemprego para mão de obra barata. Alta desigualdade social e gastos com segurança pública, mas para todo o pacote da seguridade social. Queremos cortar gastos e não aumentar os impostos. A imagem-símbolo da manifestação (do golpe?), na qual uma família branca de classe média-alta do Rio de Janeiro vestindo verde-amarelo passeia com sua babá de informe, ilustra bem qual Brasil a direita que ocupou as ruas gostaria de resgatar: o Brasil anterior ao contrato social da redemocratização.
Cidadãos e cidadãs que não querem a expansão de serviços sociais universais, porque normalmente já se encontram dentro no mercado privado de seguros e transporte, que são contra políticas inclusivas como quotas raciais nas universidades públicas, porque já pagaram o sistema privado de ensino, e odeiam alternativas de transporte aos carros, porque já os compraram. Ao invés disso, acreditam que diante de uma recessão econômica são os programas sociais e o sistema de pensões que devem ser cortados e que as classes C e D devem parar de receber crédito barato. Que o poder de compra em dólar deve ser protegido de toda forma, mesmo as custas da desindustrialização do país. E, finalmente, que o nosso sistema tributário - ao contrário do que todos os especialistas concordam - não é regressivo. Na verdade, ele seria oneroso demais para com o 1% que, cidadãos de bem, carregam o progresso social brasileiro nas costas.
O crescimento econômico parou. Teremos que escolher. A extrema-direita já decidiu e parece ter levado os moderados. Se continuarmos a procurar apenas explicações políticas-partidárias ou personalistas para esse problema, ao invés de levarmos em consideração a imensa mudança na estrutura social pela qual passamos nas duas últimas décadas, corremos o risco de terminarmos tão limitados em nosso juízos como um economista de uma agência privada de rating. O que éramos 20 anos atrás não é quem somos hoje. No meu entender, as pessoas que marcham contra o governo são querem parar ou até mesmo retroceder essas mudanças. São críticos da nova mobilidade social brasileira. Posso estar errado em relação ao apoio ao golpe. Mas qualquer alternativa progressista daqui por diante contra a tentativa de regressão das conquistas sociais precisará entender a nova estrutura social brasileira, e como seus novos diferentes interesses e valores entram em conflito.
Em 2014 decidimos, democraticamente, enfrentar a recessão econômica mantendo uma agenda social progressista. Isso não significa necessariamente que essa foi a melhor escolha ou que o governo Dilma tenha acertado. Democracia é o reino da incerteza. Particularmente acredito que tenha sido a melhor opção. Ou mesmo a única: as alternativas da oposição ao nosso dispor eram precárias e incapazes de entender à complexidade da realidade social brasileira. Isso não significa que a esquerda nunca deve perder. Cedo ou tarde teríamos que rediscutir nosso pacto social. Porém, quando grupos de extrema-direita querem derrubar o governo, seu canto de ódio traz algo mais preocupante e inaceitável: que não temos o direito nos autogovernar. Não importar na verdade qual sejam as escolhas que tenhamos feito. O voto de uns valerá mais do que de outros. O grito de ódio da extrema-direita brasileira é um grito do ódio de classe.
A 40o edição do Encontro Nacional da ANPOCS contará com uma mesa dedicada à teoria política contemporânea, coordenada pelos pesquisadores Renato Francisquini (UFSC) e Hélio Alves (UFRGS). A ementa da mesa pode ser encontrada abaixo. A lista completa das mesas aprovadas para 2016 pode ser encontrada aqui. O encontro acontecerá entre os dias 24 e 28 de outubro, na tradicional Caxambu. Trata-se de uma excelente oportunidade não apenas para o debate de boas pesquisas de pós-graduação em diferentes lugares do país como também para fortalecermos a presença da teoria política contemporânea no encontro nacional da área de ciências sociais. O prazo final para submissão é 10/04.
Coordenação: Renato Francisquini (UFSC), Hélio Ricardo do Couto Alves (UFRGS)
Ao menos desde a segunda metade do século XX, a teoria política normativa vem se constituindo como uma linha importante no interior da ciência política, organizando-se em torno de conceitos nucleares tais como justiça, tolerância, reconhecimento, democracia, autonomia, liberdade e igualdade, e incorporando à tradição do pensamento político disciplinas como direito, filosofia moral e teoria econômica. Encontram-se entre as principais tarefas desta área de pesquisa a reflexão sobre o dever-ser da convivência entre as pessoas em suas comunidades, Estados e no sistema internacional. De forma ampla, esses debates teóricos representam esforços em diversos níveis no intuito de orientar a formulação de perguntas e respostas relevantes acerca dos problemas enfrentados por sociedades marcadas por desacordo moral e segmentação socioeconômica, persistentemente às voltas com o problema ético-político da conjugação entre valores distintos e, muitas vezes, em conflito. Sendo assim, esse SPG pretende reunir trabalhos que reflitam a diversidade e a crescente produção acadêmica no campo da teoria política normativa, abordando questões políticas fundamentais às sociedades contemporâneas.