terça-feira, 1 de março de 2016

O roubo da austeridade

As imagens da cultura da dependência são conhecidas: desempregados preguiçosos, welfare queens e clientelas eleitorais. O diagnóstico também é parecido: o Estado de bem-estar social representa uma forma grave de injustiça contra os verdadeiros merecedores dos benefícios da cooperação social, as famílias trabalhadoras com suas rendas médias estagnadas. Dois remédios (amargos) são normalmente demandados: desmantelar o Estado de bem-estar social e condicionalizar programas sociais à venda da força de trabalho.

Segundo James Meek, jornalista e escritor inglês convidado pela London Review of Books para ministrar as Winter Lectures de 2016, diferentes culturas políticas ao redor do globo compartilhariam uma mesma narrativa a respeito da natureza moral dos impostos (o vídeo e a transcrição da conferência pode ser encontrados abaixo). Nossos sistemas políticos seriam dominados por uma espécie de mito ao estilo de Robin Hood na qual economistas neoliberais e políticos conservadores reivindicam para si o papel de defensores dos oprimidos pela redistribuição - as hard working families, segundo a famosa expressão do chanceler conservador inglês George Osborne. O inimigo a ser combatido seriam os privilegiados pelo sistema de bem-estar social, a verdadeira classe ociosa do welfare state. Caberia aos heróis dessa narrativa desafiar as instituições e as verdades estabelecidas, "roubando" a riqueza social arbitrariamente apropriada pelo Estado e devolvendo-a ao povo dos subúrbios. 

Meek apresenta uma breve história social do imposto e dos diversos discursos associados à ele, desde os primórdios do Estado moderno até a revolução neoliberal. A partir de diferentes perspectivas disciplinares - história, economia, ciência política, etc. - Meek procura recontar como as políticas de austeridade européia e norte-americana (e, poderíamos acrescentar, o atual discurso político brasileiro) foram claramente desenhadas para o benefício do topo da pirâmide social mas, não obstante, tem sido extremamente bem sucedidas em encantar a mente e os votos das classes trabalhadoras:


The wealthiest and most powerful in Europe, Australasia and North America have turned the myth to their advantage. In this version of Robin Hood the traditional poor – the unemployed, the disabled, refugees – have been put into the conceptual box where the rich used to be. It is they, the social category previously labelled ‘poor’, who are accused of living in big houses, wallowing in luxury and not needing to work, while those previously considered rich are redesignated as the ones who work terribly hard for fair reward or less, forced to support this new category of poor-who-are-considered-rich. In this version the sheriff of Nottingham runs a ruthless realm of plunder and political correctness, ransacking the homesteads of honest peasants for money to finance the conceptual rich – that is, the unemployed, the disabled, refugees, working-class single mothers, dodgers, scroungers, chavs, chisellers and cheats.
In this version of the myth, Robin Hood is a tax-cutter and a handout-denouncer. He’s Jeremy Clarkson. He’s Nigel Farage. He’s Margaret Thatcher and Ronald Reagan. He’s by your elbow in the pub, telling you he knows an immigrant who just waltzed into the social security office and walked out with a cheque for £1000. He’s in the pages of theDaily Mail, fingering a workshy good-for-nothing with 11 children, living in a luxury house on the public purse. He’s sabotaging the sheriff of Nottingham’s wicked tax-gathering devices – speed cameras and parking meters. He’s on talk radio, denouncing inheritance tax. He’s winning elections.
A crítica de Meek ao ideal de "Robin Hood da austeridade" é sustentada por dois argumentos principais. O primeiro argumento afirma que a narrativa possui alguns problemas conceituais graves, algo relativamente esperado dada a trajetória política do autor (no ano passado Meek publicou uma longa reportagem analisando seis grandes processos de privatização no Reino Unido e como eles privilegiaram a elite econômica da região). O segundo argumento, bem menos obvio do que o primeiro, é o de que a vitória da narrativa robinhoodiana foi tão importante que mesmo lideranças políticas responsáveis por oferecerem alternativas a ela acabariam compartilhando partes importantes do mito. Passemos rapidamente por cada um deles. 
A narrativa da austeridade estaria errada por dois motivos principais. Em primeiro lugar, ela pretende estabelecer uma analogia historicamente equivocada em relação ao funcionamento dos impostos na época dos ladrões de Sherwood. Antes da criação do Estado moderno, a taxação era utilizada como uma forma de dominação social, garantindo a manutenção de privilégios dos senhores de terra e da aristocracia. O direito de tributar as famílias de trabalhadores rurais (as quais Robin Hood dizia-se protetor) era um benefício atrelado a uma posição social, uma espécie de "prêmio" conferido pela distinção social de uma aristocrata. O imposto isentava o seu beneficiário do trabalho: a partir daquele momento ele ou ela poderia viver da renda confiscada. "O Robin Hood medieval", afirma Meek, "não tomava dos ricos para dar ao pobre mas sim tomava dos ricos para devolver aos pobres", isto é,  a renda do seu próprio trabalho. 
Contrariamente, a história moderna do imposto e, principalmente, a noção de progressividade tributária nos mostra a inversão da lógica tributária medieval, na qual os impostos eram justificados como um forma de benefício. Seu objetivo passou a ser a garantia de uma divisão equitativa das responsabilidades sociais em uma sociedade na qual todos e todas são considerados iguais em pertencimento. Quanto mais poder, riqueza e prestígio social alguém possuir - quanto mais próximo do topo da pirâmide social - mais o ocupante dessa posição terá que contribuir para a manutenção da organização social. Nada mais justo, uma vez que o privilégio atrelado a essa mesma posição depende amplamente da manutenção da organização social para poder existir e, a fortiori, beneficiar seu ocupante. A versão moderna do imposto é sustentada pela máxima segundo a qual ninguém é rico sozinho.
Em segundo lugar, e de maneira mais importante, Meek procura mostrar como as medidas de austeridade, aparentemente focadas na reforma do sistema de proteção social, tiveram por resultado a desoneração tributária das classes ricas mas não a das classes sociais menos beneficiadas (as tais famílias trabalhadoras). A base da distribuição, os 20% mais pobres, nunca tiveram uma mudança substantiva em sua carga tributária, sendo eles "trabalhadores" ou "aproveitadores" do sistema de benefícios sociais. Ou seja, depois do corte, não houve o repasse do dinheiro para a base da pirâmide. Vemos o resultado disso, por exemplo, na recomposição das bases eleitorais do partido republicano nos EUA, furiosas contra o establishment politico e econômico no país. Elas passaram a odiar tanto Wall Street como a esquerda.

A política da austeridade produziu, ao contrário, regressividade tributária em países que, antes dos anos 70, possuíam sistemas de imposto de renda quase confiscatórios em relação a renda marginal dos super-ricos (estima-se, por exemplo, que quase 94% de cada dólar recebido pelos 0,1% nos EUA durante a década de 50 era convertido em tributo). Ainda que nunca tenhamos tido um sistema tributário totalmente justo em termos de renda pessoal, o caso brasileiro não foi diferente nesse sentido: a desoneração dos lucros advindos do capital e a sempre adiada reforma do sistema tributário fazem com que o país tenha um sistema tributário extremamente regressivo. Se a política de austeridade tinha como objetivo ajudar os menos beneficiados, no longo prazo ela apenas enriqueceu - ainda mais - o 1% mais rico dessas sociedades. 



Contudo, a parte mais interessante do argumento de Meek é justamente a forma como as principais alternativas políticas à narrativa da austeridade partilhariam um pressuposto da narrativa Robin Hood: a ideia de que os impostos tem por principal objetivo social (apenas) redistribuir a riqueza. Isto é, assume-se que primeiro as pessoas (produtivas) criam riqueza, depois que o Estado redistribui essa riqueza por meio de impostos para as pessoas que precisam (improdutivas). Existiria algo de roubo (algo de Robin Hood) na redistribuição, com a diferença de que neste caso ela seria moralmente justificada. Diferentemente, deveríamos aceitar que o objetivo do imposto não é apenas financiar o Estado. Um dos seus objetivos é assegurar uma sociedade mais justa de tal forma que as pessoas comecem as suas vidas com perspectivas equitativas de produtividade. Uma política predistributiva tanto quanto redistributiva.

A partir do trabalho de economistas como Piketty e Deaton, Meek argumenta que um sistema progressivo de imposto de renda ou a taxação sistemática dos lucros do capital impediria grandes concentrações de renda e riqueza e com isso tornaria menos opaca a acumulação da riqueza privada - opacidade essa, por exemplo, relacionadas às ultimas crises financeiras. Igualmente, a taxação como instrumento de justiça social promoveria alguns dos valores compartilhados centrais de nossas sociedades como o princípio de igualdade de oportunidades sociais e a competição política equitativa. "Impostos", como nos lembra o cientista político Bo Rothstein, "cortam nas duas direções", ou seja, não apenas financiam o Estado de bem-estar como também permite criarmos mecanismos de responsabilização do capital. Segundo Meek,

[t]he arrival of Piketty’s book promised much to those who don’t accept the market is the answer to all problems, and who value the institutionalisation of the Robin Hood principle in the workings of the social state. Its main conclusion was devastating to the populist discourse of the modern right. Drawing from a deep well of data Piketty found that for almost all recorded history, those who are rich enough to be sitting on a pile of cash and assets will get richer just from the returns on their capital at a faster rate than the economy can grow as a whole. In other words, if you don’t start with capital, you can never close the gap with the rich, no matter how hard you work; whereas if you do start with capital, you’ll get richer and richer whether you work or not. Over time this leads to greater and greater inequality. Piketty’s work came as a shock because he showed that the mid-20th century, when the average person could and often did become better off faster than those who lived off the return on their capital, was not some new normal, as many thought, but an aberration, and that, since then, we’ve reverted to the mean.

Meek nos oferece bons motivos para descartarmos a associação equivocada entre imposto e roubo - seja ele justificado (na versão da esquerda) ou não (na versão da direita). A política da austeridade, na verdade, nos roubaria algo vital para uma democracia: a possibilidade de debatermos e avaliarmos qual tipo de sociedade queremos viver. 

- James Meek: "Robin Hood in a time of austerity"