sábado, 11 de abril de 2015

Facção do Chá ao Estilo Brasileiro

Existe um debate em curso entre especialistas em comportamento político no país a respeito da natureza histórica e das características ideológicas centrais da presença cada mais mais marcante de grupos que se autodenominam conservadores no espaço público brasileiro. Uma das visões afirma que, na verdade, estamos presenciando apenas uma reorganização do conservadorismo até então difuso no país que, talvez por ser sentir ameaçado ou talvez por sentir a fraqueza dos setores progressistas, estão ocupando mais espaços simbólicos e institucionais - um movimento, de todo modo, legítimo e esperado em uma democracia representativa. A diferença relevante nesse caso é que desde a redemocratização eles nunca haviam ocupado esses espaços explicitamente. Novamente: seja porque nunca precisaram fazê-lo, seja porque encontram na conjuntura atual uma oportunidade política importante para o fazê-lo. 

Se esse for o caso, então ao utilizarmos o conceito "conservadorismo" estaríamos tratando de setores tradicionalistas, defensores de uma concepção familiar e religiosa forte, que compreendem o papel do Estado como sendo o de proteger, inclusive à força se preciso, a coesão da comunidade moral brasileira. Parte dessa visão é corroborada pelas últimas manifestações contra o governo federal na qual encontramos grupos dispostos a moralizar a política brasileira pela força militar e pela religião (ver a reportagem, nesse sentido, extremamente pedagógica feita pela revista TRIP intitulada Chamem o Alto Comando). A recente coordenação política no congresso das bancadas religiosa e da "bala" serviriam para corroborar essa leitura.

Esse diagnóstico é questionado, no entanto, pela matéria Tea Party à Brasileira publicada neste mês na Revista Piauí, na qual a repórter Cláudia Antunes acompanha um encontro entre os organizadores dos protestos contra o governo em um shopping center no Rio de Janeiro. Segundo a reportagem, grupos como esses representariam uma nova forma de conceber as teses políticas conservadores e estariam mais próximo da extrema-direita norte-americana do Tea Party do que do conservadorismo religioso ou nacionalista mais comuns no país:
  

[Os líderes do movimento] se definem como liberais quanto à economia, a favor do Estado mínimo. Direita para eles é elogio – até fizeram troça de um artigo na Folha de S.Paulo que os chamou de “centro-direita” (“Talvez porque a gente não defenda o golpe militar”) [...]. Renan Santos [um dos líderes] estudou direito na USP, onde, citando Michel Foucault, disse ter conhecido a “microfísica” do poder petista. Em 2014, atuou com o irmão na campanha de Paulo Batista, candidato a deputado estadual em São Paulo pelo Partido Republicano Progressista. O vídeo em que Batista atacava a USP com seu “raio privatizador” fez sucesso na internet, mas não na urna: com menos de 19 mil votos, ele não se elegeu.

A "Facção do Chá" (em tradução livre) surgiu com força eleitoral no cenário político norte-americano na última década, como uma espécie de renovação à direita do Partido Republicano. O movimento tem como pontos de convergência a demanda por menos impostos, menos Estado/governo e mais liberdade individual para todos os cidadãos. Em um dos manifestos mais influentes do grupo, denominado Give Us Liberty: A Tea Party Manifesto (ver um resumo das ideias aqui), Dick Armey e Matt Kibbe afirmam: "a tendência de governos inchados é causada pela própria natureza de autoridades centralizadas [...] Por definição, governos são o modo pelo qual cidadãos são forçados a fazerem aquilo que não fariam de modo voluntário. Como, por exemplo, pagar impostos". (Não podemos deixar de notar que o título do manifesto, algo como "Dê-Nos Liberdade", é extremamente engraçado vindo daqueles que acreditam que a liberdade é natural e, portanto, impossível de ser "dada" à alguém).

Como sintetiza Alan Brinkley, em uma tentativa de analisar a anatomia intelectual do movimento:

[t]hey argue that cutting government costs (without raising taxes) is the only way to reduce the frightening [public] deficit. They insist that almost everyone in power is corrupt and out of touch with the public. And they believe that the Constitution has been perverted by liberal judges and academics and the political world in general [...]. 

Em oposição às teses do conservadorismo convencional, partidários de movimentos como a Facção do Chá e os grupos descritos pela matéria da Piauí, tendem a se alinhar teoricamente com uma versão ultra-radical do liberalismo clássico, denominado libertarianismo, em oposição aos liberais progressistas ou igualitários - lembrando que nos EUA o adjetivo liberal é empregado para descrever os partidários de um Estado de bem-estar social, dos defensores das causas da justiça social e da inclusão de setores marginais aos benefícios da cidadania, isto é, praticamente um sinônimo de progressista ou até mesmo social-democrata, daí a necessidade do neologismo libertarian. 

Na filosofia política contemporânea existem diversas formulações dos princípios libertarianos (ver aqui um excelente verbete sobre o assunto) e obras libertarianas canônicas como as de Robert Nozick e Jan Narveson. De modo geral, contudo, concepções libertarianas de justiça são baseadas (i) em uma interpretação forte do princípio de "propriedade-de-si", segundo o qual todos teríamos direitos absolutos sobre nossos corpos, convicções e, mais controverso, sobre os frutos do nosso trabalho, e (ii) pela suspeita generalizada contra qualquer forma de organização centralizada do poder, o que os aproximam do anarquismo (vide a "leitura do Foucault" do libertariano brasileiro citado acima) e dos defensores da eficiência do livre-mercado como forma justa de distribuição de recursos sociais (vide as menções a Von Mises na matéria). 

A despeito das teorias libertarianas padecerem de uma série de incoerências conceituais graves (a começar pelo valor de liberdade que defendem) e de parte dos seus expositores por vezes não se encontram abertos ao debate racional, o esforço de compreender melhor diferenças como essas pode ser fundamental politicamente. É importante notar, por exemplo, que se a segunda visão for verdadeira, se podemos de fato falarmos em um "libertarianismo à brasileira", então seria um erro atribuirmos necessariamente a um conservador a defesa de valores tradicionais ou comunitários (anti-individualistas por definição), do militarismo e do regime de exceção (Estado com armas) ou mesmo de uma visão de mundo religiosa (a prioridade da liberdade religiosa exige a possibilidade do ateísmo). Mas devemos caracterizá-los sim pela defesa incondicional de uma instituição tão abjeta ao pensamento socialista quanto para o conservadorismo clássico: o livre-mercado.