domingo, 18 de outubro de 2015

Sobre a declaração de Charles Koch: "Sou um liberal clássico"

Questionado a respeito de seus valores políticos, o polêmico bilionário norte-americano Charles Koch declarou, em uma rara entrevista para a TVque ele se considera "um liberal clássico":


Anthony Mason: "Você não se considera um republicano, certo?"

Charles Koch: "De jeito nenhum. Eu me considero um liberal clássico".

A aparição de Charles Koch no Sunday Morning, um dos programas de TV mais populares dos EUA, faz parte da recente campanha que Charles e seu irmão, o também bilionário David Koch, iniciaram perante a opinião pública norte-americana para tentar mudar a imagem da família e, consequentemente, de seu conglomerado empresarial do ramo do petróleo as Industrias KochPode-se dizer que eles terão muito trabalho pela frente. 

Nos EUA, o nome Koch é indissociável dos negócios escusos do ramo do petróleo mas também, sobretudo desde a eleição de Barack Obama, da interferência das grandes fortunas privadas no sistema político do país. Donos da segunda maior empresa privada dos EUA e com um patrimônio avaliado em torno de 43 bilhões de dólares - para cada um dos irmãos - o dinheiro dos Koch tem influenciado direta e indiretamente a agenda pública norte-americana. 

De modo direto, os irmãos representam a face mais visível do imenso lobby do petróleo em Washington (e na Fox News supostamente) atuando contra a regulação comercial e ecológica de combustíveis fósseis. Recentemente descobriu-se, por exemplo, que as Indústrias Koch junto com outra gigante do petróleo, a Exxom Mobil, financiaram o trabalho de grupos de cientistas ditos "negacionistas", isto é acadêmicos que rejeitam a tese do aquecimento global. Os resultados dessas pesquisas ajudaram a embasar os relatórios republicanos contrários às leis de regulação de emissão de gás carbônico no congresso. Além disso, a participação dos Koch nas campanhas eleitorais é de conhecimento comum nos EUA: os irmãos K. esperam gastar pelo menos 300 milhões de dólares em financiamento legal com o próximo candidato republicano. Por meio de grupos ligados ao Tea Party eles despejaram dinheiro nas cinco pré-candidaturas republicanas, com um importante  exceção: Donal Trump. O também bilionário Trump, esse do ramo da construção civil, disse publicamente que não irá aceitar dinheiro e, consequentemente, se recusou a ser, em suas palavras, mais uma "marionete" dos Koch.

Entretanto, a faceta mais interessante dos Koch talvez esteja em sua atuação indireta no mainstream político do país. Desde a eleição de Obama os irmãos K. tem assumido o papel de grandes mecenas do pensamento conservador nos EUA e, como veremos, além dele. Eles foram os principais idealizadores do prestigiado think tank conservador CATO Institute e de uma rede de associações engajadas na defesa das liberdades individuais e da promoção do livre-mercado e do repúdio à ação do Estado na economia, tais como a Atlas Economic Research Foundation e a Students for Liberty (a última iniciou uma campanha nacional entre os estudantes, após mais uma série de assassinatos em massa nas escolas, defendendo o direito incondicional de portar armas contra o que acreditam ser uma tentativa deliberada do governo dos EUA de enfraquecer os cidadãos frente ao governo). A criação do Tea Party, uma facção de extrema-direita dentro do partido Republicano,  talvez seja a face mais visível e, certamente, estridente do mecenato dos irmãos K. 

A rede dos Koch parece ter chegado também à America Latina e, especialmente, ao Brasil. É fato conhecido, por exemplo, que os irmãos apoiam os esforços dos movimentos pró-impeachment do governo Dilma (ver aqui e aqui a respeito da reconfiguração ideológica da nova direita no Brasil). Algumas das lideranças do Movimento Brasil Livre passaram pelos quadros de formação de lideranças da Atlas e a própria versão nacional dos Estudantes pela Liberdade é uma filial da matriz norte-americana. Além disso, tal como ocorre com a Fox News nos EUA, a Rede K. tem se esforçado para criar quadros na imprensa brasileira por meio do Instituto Millenium.

Teorias da conspiração a parte, gostaria de voltar à declaração de Charles K a respeito de ser, ou não ser, um liberal clássico. No terreno das ideologias políticas a declaração é relevante. Com ela Charles K. está dizendo: "sou um liberal clássico e não um republicano convencional". Trata-se de uma tentativa de separar os ideais defendidos pela Franquia K. do conservadorismo (tradicional) norte-americano. O último é mais voltado para o que podemos chamar de visão "grande América", seja ela militar ou econômica, e para a manutenção da ordem social e da unidade nacional do que propriamente para a defesa dos valores de livre-mercado e da maximização das oportunidades sociais. Se um conservador norte-americano apoia leis contrárias ao matrimônio entre pessoas do mesmo sexo, ou leis mais duras contra a criminalidade, é de se esperar que um liberal clássico como Koch rejeite ambas as propostas em nome da proteção incondicional das liberdades individuais. 



Mais uma vez o contraste com Donald Trump é útil. Seu slogan de campanha - "A América será grande outra vez" - e suas propostas de deportação em massa de imigrantes - porque "não verdadeiramente americanos" - satisfaz o perfil ultra-conservador típico. Notemos a honestidade de Trump: ele não diz que cada norte-americano será grande outra vez, nem que terá mais liberdade ou que ficará rico, mas apenas que a pátria como um todo será grande outra vez [sic]. Trump já considerou até mesmo elevar os impostos ,para desespero de Wall Street, para aquelas corporações que não conduzam seus negócios de acordo com "os melhores interesses" dos EUA. Afinal, o bilionário Trump não depende do Franquia Koch.

Do ponto de vista da teoria politica propriamente dita, a declaração de Koch também é útil. Ela nos ajuda a mapear um debate teórico importante dentro do que costumamos identificar de modo muito genérico como “liberalismo”. O liberalismo clássico deve ser distinguido de duas outras variantes de liberalismo. Tomando a justificação e os deveres do Estado como métrica, podemos posicionar o liberalismo clássico no meio de duas posições extremas: uma conhecida como liberalismo igualitário e a outra como libertarianismo

Nos últimos anos, filósofos políticos como Gerald Gaus (Arizona), Jason Brennan (Georgetown) e John Tomasi (Brown) empreenderam esforços teóricos consideráveis na tentativa de esclarecer e justificar aquilo que identificam como o núcleo duro da teoria liberal clássica que, tal como esses autores a entendem, não pode ser reduzida ao libertarianismo nem, muito menos, ao liberalismo igualitário (ver aqui um verbete escrito por Brennan e Tomasi sobre a distinção). 

Teóricos libertarianos como Robert Nozick e Jan Narveson estruturam suas concepções de justiça e legitimidade por meio de uma interpretação forte do princípio moral de "propriedade-de-si", segundo o qual todos teríamos direitos absolutos sobre nossos corpos, convicções e, mais controverso, sobre os frutos do nosso trabalho (ver aqui um post sobre os libertarianos). Isso faz com que os libertarianos suspeitem de qualquer forma de poder centralizada, seja ela para fins redistributivos, militares ou cívicos, e os aproxima de algum modo de teorias anarquistas da autoridade política (quando eles dizem Estado mínimo eles realmente querem dizer isso). Assim, a recusa de qualquer forma de distribuição de recursos por meio do Estado e a luta contra a taxação são marcas da concepção política libertariana.

Ao contrário, liberais clássicos rejeitam a interpretação moralizante, ou pré-política, das liberdades individuais e defendam o papel do Estado como agente da distribuição justa de oportunidades sociais. Desse modo, o Estado é entendido como o grande responsável não apenas pela proteção dos direitos individuais, mas também - e o ponto é importante - do princípio de igualdade de oportunidade social e econômica. Isso implica, por exemplo, a legitimidade de um governo adotar políticas anti-monopolistas na economia e instaurar uma rede mínima de proteção social tanto quando tem o dever de garantir as liberdades e econômicas dos cidadãos.  

Contudo, se o liberalismo clássico aceita a justiça social, ele difere radicalmente do liberalismo igualitário sobre a melhor forma de interpretar esse conceito. É importante notar que por liberal (sem adjetivos) nos EUA normalmente entende-se não alguém que apoia o livre-mercado ou a proteção incondicional de liberdades econômicas, isto é, não alguém que chamaríamos de neoliberal ou simplesmente liberal (também sem adjetivos) na America Latina ou na Europa. Os liberals (sem adjetivos) nos EUA, os quais são os grandes oponentes de Charles K., interpretam a inclusão social de minorias no processo de tomada de decisão político, a proteção dos direitos socioeconômicos dos trabalhadores, a manutenção de políticas de inclusão racial e de gênero nas universidades e empresas bem como a proteção de residentes não-documentados como uma decorrência natural e necessária da igualdade de direitos fundamentais. Nesse caso, reivindicações de justiça social não são apenas compatíveis com as liberdades individuais (algo aceito pelo liberalismo clássico) mas sim que as liberdades individuais dependem da justiça para serem dotadas de sentido.

O liberalismo igualitário, ou alto liberalismo (high liberalism) como também é conhecido em países de língua inglesa, tem como seus principais defensores uma linhagem de filósofos que inicia-se com Thomas Paine (XVIII) e John Stuart Mill (século XIX) e encontra sua forma filosoficamente mais bem acabada em John Rawls e seus inúmeros colegas e alunos, tais como Ronald Dworkin, Samuel Freeman e Thomas Scanlon, no século XX. Contudo, a tradição também possui um ramo não menos importante de economistas. Além do já mencionado Mill, economistas como John Keynes, James Meade e, mais recentemente, Thomas Piketty poderiam ser interpretados como compondo as fileiras do liberalismo igualitário (Freeman escreveu um excelente ensaio sobre as diferenças econômicas entre liberais clássicos e igualitários).

Porque liberais clássicos e igualitários partilham algumas de suas proposições, tais como a ênfase na igualdade de direitos, a defesa de uma concepção de justiça social e a fundamentação da justiça em princípios morais, em oposição a outras teorias políticas importantes, como o utilitarismo e o marxismo, talvez seja útil enfatizar uma última distinção conceitual entre eles, dessa vez em relação ao conceito de "oportunidade"  - e com isso podemos voltar ao inesperado teórico do liberalismo clássico, Charles K.

A noção liberal igualitária e liberal clássica de oportunidade individual, ou mais precisamente, o princípio de igualdade de oportunidades sociais, deve ser diferenciado em dois sentidos importantes. Em primeiro lugar quanto ao tipo de oportunidade ou a classe de liberdades as quais ele se aplica. Liberais clássicos reivindicam um concepção forte do que denominam "direitos econômicos", direitos que vão desde a livre-iniciativa econômica e a proteção à propriedade pessoal até o direito à apropriação do capital e aos meios de produção social.

Em oposição, liberais igualitários não apenas possuem uma interpretação bem mais restritiva de direitos econômicos (os meios de produção social não devem ser interpretados como propriedade pessoal) como tendem a enfatizar os direitos políticos em detrimento dos direitos econômicos (o que o liberal clássico Tomasi costuma chamar, sarcasticamente, de "excepcionalismo econômico").

A defesa da incondicionalidade dos direitos políticos é crucial para entendermos o liberalismo igualitário. Tomemos um exemplo. Em sua obra Uma Teoria da Justiça (1971) John Rawls afirma que enquanto para o liberalismo convencional "o autogoverno pode vir a garantir uma melhor proteção das liberdades civis em comparação a outros tipos de regimes políticos [...]", para o liberalismo igualitário "os fundamentos do autogoverno não são apenas instrumentais" (TJ 229-230 edição original). Portanto, enquanto para liberais clássicos "a resposta a pergunta 'quem governa' é logicamente distinta da questão 'quanto o governo por interferir na minha liberdade?'", para o liberalismo igualitário o autogoverno de cidadãos livres e iguais é um fim em si mesmo.

Mesmo que não sejam os únicos direitos possíveis, direitos políticos são irredutíveis na medida em que nos permitem construir, como iguais em reivindicação, as regras e instituições sociais que regularão as nossas expectativas e os modos de nos relacionarmos uns com os outros enquanto cidadãos e cidadãs. Isso implica recusar, prossegue Rawls, a interpretação segundo a qual "os cidadãos veem a si mesmos como rivais [em interesses] ou ainda como simples obstáculos para os fins privados". (TJ p. 233-234).

Em segundo lugar a noção de oportunidade é diferente nos dois casos também quanto a forma. Liberais clássicos tendem a enfatizar o valor formal das liberdades  - "carreiras e cargos abertos ao talento individual" - e entendem que a igualdade formal de competição é critério suficiente para um resultado justo. 

Igualitários, por outro lado, reivindicam que se todos devem ter as mesmas chances de desenvolver suas aptidões, de obter cargos de prestígio e autoridade ou influenciar decisivamente os resultados políticos, em uma sociedade na qual os meios materiais para a realização desses fins é desigual a fórmula não é dotada de valor moral. Charles K. é um bom exemplo nesse caso. O fato de defender uma sociedade na qual cada indivíduo tenha a seu alcance o maior número de oportunidades sociais possíveis (por exemplo, para exercer suas atividades empresariais) esconde o fato de que ser herdeiro de alguém (como no seu próprio caso) ou ser excluído dos benefícios trazidos pelo acúmulo da riqueza social (como os milhares de norte-americanos pobres que não tem acesso ao sistema de saúde, as famílias negras que não podem matricular seus filhos em colégios de bairros brancos, ou os candidatos homossexuais que não podem declarar publicamente suas preferências sexuais) torna o resultado efetivo da competição não apenas distorcido mas profundamente injusto. 

É claro que em uma sociedade na qual os meios de produção são protegidos pelos direitos individuais é de se esperar que as desigualdades econômicas e, consequentemente, as oportunidades sociais que cada cidadão ou cidadã encontra diante si ao nascer pode ser extremamente restrito. E aqui encontramos a segunda fileira liberal igualitária: o ramo econômico. Uma concepção de justiça, tal como a de Rawls, nos obriga a transformar não apenas as instituições políticas ou jurídicas mas também as instituições econômicas vigentes a fim de garantir o acesso justo aos benefícios da riqueza coletiva. Mill, Meade, Rawls e Piketty, todos eles advogaram, e continuam a advogar, transformações radicais não apenas no modo como a renda é distribuída mas também no modo como a riqueza é produzida (ver aqui uma tentativa de organizar algumas dessas propostas do ponto de vista liberal igualitário). 

O próprio Rawls acreditava que apenas dois sistemas socioeconômicos seriam capazes de realizar de modo satisfatório sua concepção de justiça social: ou um socialismo com liberdades políticas garantidas, ou aquilo que chamou de democracia de cidadãos proprietários, na qual as instituições sociais tem como finalidade a dispersão intergeracional da riqueza produzida. 

De fato, o igualitarismo pode ser utópico dadas as possibilidades de organização da economia dado o mundo como o conhecemos. Entretanto, com certeza é um utopia mais coerente e digna de ser imaginada do que a utopia de Charles K.: uma sociedade de capitalistas laissez-faire na qual todos terão as mesmas oportunidades.


Leituras sugeridas:

(Verbete do Oxford Handbook of Political Philosophy)

(Direto do Bleeding Hart Libertiarians, um forum de discussão filosófico de filósofos conservadores). 

(Freeman procura identificar qual a relação - se alguma - entre liberalismo igualitário e livre-mercado)

(White apresenta exemplos concretos de alternativas econômicas ao mainsstream liberal clássico)


(Um dos melhores artigos acadêmicos em português sobre os principios basicos do liberalismo igualitário)