Questionado a respeito
de seus valores políticos, o polêmico bilionário norte-americano Charles Koch
declarou, em uma rara entrevista
para a TV, que ele se considera "um liberal clássico":
Anthony Mason: "Você não se considera um republicano, certo?"
Anthony Mason: "Você não se considera um republicano, certo?"
Charles Koch: "De jeito
nenhum. Eu me considero um liberal
clássico".
A aparição de Charles
Koch no Sunday Morning, um dos programas de TV mais populares dos EUA, faz
parte da recente campanha que Charles e seu irmão, o também bilionário David
Koch, iniciaram perante a opinião pública norte-americana para tentar mudar a
imagem da família e, consequentemente, de seu conglomerado empresarial do ramo
do petróleo as Industrias
Koch. Pode-se dizer que eles terão muito trabalho pela frente.
Nos EUA, o nome Koch é
indissociável dos negócios escusos do ramo do petróleo mas também, sobretudo
desde a eleição de Barack Obama, da interferência das grandes fortunas privadas
no sistema político do país. Donos da segunda maior empresa privada dos EUA e
com um patrimônio avaliado em torno de 43 bilhões de dólares - para cada um
dos irmãos - o dinheiro dos Koch tem influenciado direta e indiretamente a
agenda pública norte-americana.
De modo direto, os
irmãos representam a face mais visível do imenso lobby
do petróleo em Washington (e
na Fox News supostamente) atuando contra a regulação comercial e ecológica de
combustíveis fósseis. Recentemente descobriu-se, por exemplo, que as Indústrias
Koch junto com outra gigante do petróleo, a Exxom Mobil, financiaram o trabalho
de grupos de cientistas ditos "negacionistas", isto é acadêmicos
que rejeitam a tese do aquecimento global. Os resultados dessas pesquisas
ajudaram a embasar os relatórios republicanos contrários às leis de regulação
de emissão de gás carbônico no congresso. Além disso, a participação dos Koch
nas campanhas eleitorais é de conhecimento comum nos EUA: os irmãos K. esperam gastar
pelo menos 300 milhões de dólares em financiamento legal com o próximo
candidato republicano. Por meio de grupos ligados ao Tea Party eles despejaram
dinheiro nas cinco pré-candidaturas republicanas, com um importante
exceção: Donal Trump. O também bilionário Trump, esse do ramo da
construção civil, disse publicamente que não irá aceitar dinheiro e,
consequentemente, se recusou a ser, em suas palavras, mais uma "marionete" dos Koch.
Entretanto, a faceta
mais interessante dos Koch talvez esteja em sua atuação indireta no mainstream político do país. Desde
a eleição de Obama os irmãos K. tem assumido o papel de grandes mecenas do
pensamento conservador nos EUA e, como veremos, além dele. Eles foram os
principais idealizadores do prestigiado think tank conservador CATO Institute e
de uma rede de associações engajadas na defesa das liberdades individuais e da
promoção do livre-mercado e do repúdio à ação do Estado na economia, tais como
a Atlas Economic Research Foundation e a Students for
Liberty (a última iniciou uma
campanha nacional entre os estudantes, após mais uma série de assassinatos em massa nas escolas,
defendendo o direito incondicional de portar armas contra o que acreditam ser
uma tentativa deliberada do governo dos EUA de enfraquecer os cidadãos frente ao governo). A criação do Tea
Party, uma facção de extrema-direita dentro do partido Republicano,
talvez seja a face mais visível e, certamente, estridente do mecenato dos
irmãos K.
A rede dos Koch parece
ter chegado também à America Latina e, especialmente, ao Brasil. É fato
conhecido, por exemplo, que os irmãos apoiam os esforços dos movimentos
pró-impeachment do
governo Dilma (ver aqui e aqui a respeito da reconfiguração ideológica
da nova direita no Brasil). Algumas das lideranças do Movimento
Brasil Livre passaram pelos quadros de formação de lideranças
da Atlas e a própria versão nacional dos Estudantes pela Liberdade é uma filial da matriz
norte-americana. Além disso, tal como ocorre com a Fox News nos EUA, a Rede K.
tem se esforçado para criar quadros na imprensa brasileira por meio do Instituto
Millenium.
Teorias da conspiração a
parte, gostaria de voltar à declaração de Charles K a respeito de ser, ou não
ser, um liberal clássico. No terreno das ideologias políticas a declaração
é relevante. Com ela Charles K. está dizendo: "sou um liberal clássico e não um republicano convencional".
Trata-se de uma tentativa de separar os ideais defendidos pela Franquia K. do
conservadorismo (tradicional) norte-americano. O último é mais voltado para o
que podemos chamar de visão "grande América", seja ela militar ou
econômica, e para a manutenção da ordem social e da unidade nacional do que
propriamente para a defesa dos valores de livre-mercado e da maximização das
oportunidades sociais. Se um conservador norte-americano apoia leis contrárias
ao matrimônio entre pessoas do mesmo sexo, ou leis mais duras contra a
criminalidade, é de se esperar que um liberal clássico como Koch rejeite ambas
as propostas em nome da proteção incondicional das liberdades individuais.
Mais uma vez o contraste
com Donald Trump é útil. Seu slogan de campanha - "A América será
grande outra vez" - e suas propostas de deportação em massa de imigrantes
- porque "não verdadeiramente americanos" - satisfaz o perfil
ultra-conservador típico. Notemos a honestidade de Trump: ele não diz que cada norte-americano será grande outra
vez, nem que terá mais liberdade ou que ficará rico, mas apenas que a pátria como um todo será
grande outra vez [sic]. Trump já considerou até mesmo elevar os impostos ,para desespero de Wall Street, para
aquelas corporações que não conduzam seus negócios de acordo com "os melhores interesses"
dos EUA. Afinal, o bilionário Trump não depende do Franquia Koch.
Do ponto de vista da teoria politica propriamente dita, a declaração de Koch
também é útil. Ela nos ajuda a mapear um debate teórico importante dentro
do que costumamos identificar de modo muito genérico como “liberalismo”. O
liberalismo clássico deve ser distinguido de duas outras variantes de
liberalismo. Tomando a justificação e os deveres do Estado como métrica,
podemos posicionar o liberalismo clássico no meio de duas posições extremas:
uma conhecida como liberalismo igualitário e a outra como libertarianismo
Nos últimos anos,
filósofos políticos como Gerald Gaus (Arizona), Jason Brennan (Georgetown) e John Tomasi (Brown)
empreenderam esforços teóricos consideráveis na tentativa de esclarecer e
justificar aquilo que identificam como o núcleo duro da teoria liberal clássica que, tal como esses autores a entendem, não pode ser reduzida ao libertarianismo
nem, muito menos, ao liberalismo igualitário (ver aqui um verbete escrito
por Brennan e Tomasi sobre a distinção).
Teóricos
libertarianos como Robert Nozick e Jan Narveson estruturam suas concepções de
justiça e legitimidade por meio de uma interpretação
forte do princípio moral de "propriedade-de-si", segundo o qual todos
teríamos direitos absolutos sobre nossos corpos, convicções e, mais
controverso, sobre os frutos do nosso trabalho (ver aqui um post sobre os libertarianos).
Isso faz com que os libertarianos suspeitem de qualquer forma de poder
centralizada, seja ela para fins redistributivos, militares ou cívicos, e os
aproxima de algum modo de teorias anarquistas da autoridade política (quando
eles dizem Estado mínimo eles realmente querem dizer isso). Assim, a recusa de qualquer forma
de distribuição de recursos por meio do Estado e a luta contra a taxação são
marcas da concepção política libertariana.
Ao contrário, liberais clássicos rejeitam a interpretação moralizante,
ou pré-política, das liberdades individuais e defendam o papel do Estado como
agente da distribuição justa de oportunidades sociais. Desse modo, o Estado é
entendido como o grande responsável não apenas pela proteção dos direitos
individuais, mas também - e o ponto é importante - do princípio de igualdade de
oportunidade social e econômica. Isso implica, por exemplo, a legitimidade de um
governo adotar políticas anti-monopolistas na economia e instaurar uma rede
mínima de proteção social tanto
quando tem o dever de
garantir as liberdades e econômicas dos cidadãos.
Contudo, se o liberalismo clássico aceita a justiça social, ele difere
radicalmente do liberalismo igualitário sobre a melhor forma de interpretar
esse conceito. É importante notar que por liberal (sem adjetivos) nos EUA
normalmente entende-se não alguém que apoia o livre-mercado ou a proteção
incondicional de liberdades econômicas, isto é, não alguém que chamaríamos de
neoliberal ou simplesmente liberal (também sem adjetivos) na America Latina ou
na Europa. Os liberals (sem adjetivos) nos EUA, os quais
são os grandes oponentes de Charles K., interpretam a inclusão social de
minorias no processo de tomada de decisão político, a proteção dos direitos
socioeconômicos dos trabalhadores, a manutenção de políticas de inclusão racial
e de gênero nas universidades e empresas bem como a proteção de residentes
não-documentados como uma decorrência natural e necessária da igualdade de
direitos fundamentais. Nesse caso, reivindicações de justiça social não são
apenas compatíveis com as
liberdades individuais (algo aceito pelo liberalismo clássico) mas sim que as
liberdades individuais dependem da
justiça para serem dotadas de sentido.
O liberalismo
igualitário, ou alto liberalismo (high liberalism) como também é
conhecido em países de língua inglesa, tem como seus principais defensores uma
linhagem de filósofos que inicia-se com Thomas Paine (XVIII) e John Stuart
Mill (século XIX) e encontra sua forma filosoficamente mais bem acabada em John
Rawls e seus inúmeros colegas e alunos, tais como Ronald Dworkin, Samuel
Freeman e Thomas Scanlon, no século XX. Contudo, a tradição também possui um
ramo não menos importante de economistas. Além do já mencionado Mill,
economistas como John Keynes, James Meade e, mais recentemente, Thomas Piketty
poderiam ser interpretados como compondo as fileiras do liberalismo igualitário
(Freeman escreveu um excelente ensaio sobre as diferenças econômicas entre
liberais clássicos e igualitários).
Porque liberais clássicos
e igualitários partilham algumas de suas proposições, tais como a ênfase na igualdade
de direitos, a defesa de uma concepção de justiça social e a fundamentação da
justiça em princípios morais, em oposição a outras teorias políticas importantes, como o utilitarismo e o marxismo, talvez seja útil enfatizar uma última
distinção conceitual entre eles, dessa vez em relação ao conceito de
"oportunidade" - e com isso podemos voltar ao inesperado
teórico do liberalismo clássico,
Charles K.
A noção liberal igualitária e liberal clássica de oportunidade individual, ou mais
precisamente, o princípio de igualdade de oportunidades sociais, deve ser
diferenciado em dois sentidos importantes. Em primeiro lugar quanto ao tipo de oportunidade ou a
classe de liberdades as quais ele se aplica. Liberais clássicos reivindicam um
concepção forte do que denominam "direitos econômicos", direitos que
vão desde a livre-iniciativa econômica e a proteção à propriedade pessoal até o
direito à apropriação do capital e aos meios de produção social.
Em oposição, liberais
igualitários não apenas possuem uma interpretação bem mais restritiva de
direitos econômicos (os meios de produção social não devem ser interpretados como propriedade
pessoal) como tendem a enfatizar os direitos políticos em detrimento dos
direitos econômicos (o que o liberal clássico Tomasi costuma chamar, sarcasticamente,
de "excepcionalismo econômico").
A defesa da incondicionalidade
dos direitos políticos é crucial para entendermos o liberalismo
igualitário. Tomemos um exemplo. Em sua obra Uma Teoria da Justiça (1971) John Rawls
afirma que enquanto para o liberalismo convencional "o autogoverno pode vir a
garantir uma melhor proteção das liberdades civis em comparação a outros
tipos de regimes políticos [...]", para o liberalismo igualitário "os fundamentos do autogoverno não são apenas instrumentais" (TJ 229-230 edição original). Portanto, enquanto para liberais clássicos "a
resposta a pergunta 'quem governa' é logicamente distinta da questão 'quanto o
governo por interferir na minha liberdade?'", para o liberalismo igualitário o autogoverno de cidadãos livres e iguais é um fim em si mesmo.
Mesmo que não sejam os
únicos direitos possíveis, direitos políticos são irredutíveis na medida em que
nos permitem construir, como iguais em reivindicação, as regras e instituições
sociais que regularão as nossas expectativas e os modos de nos relacionarmos
uns com os outros enquanto cidadãos e cidadãs. Isso implica recusar,
prossegue Rawls, a interpretação segundo a qual "os cidadãos veem a si
mesmos como rivais [em interesses] ou ainda como simples obstáculos para os
fins privados". (TJ p. 233-234).
Em segundo lugar a noção
de oportunidade é diferente nos dois casos também quanto a forma. Liberais
clássicos tendem a enfatizar o valor formal das liberdades -
"carreiras e cargos abertos ao talento individual" - e entendem que a
igualdade formal de competição é critério suficiente para um resultado
justo.
Igualitários, por outro
lado, reivindicam que se todos devem ter as mesmas chances de desenvolver suas
aptidões, de obter cargos de prestígio e autoridade ou influenciar
decisivamente os resultados políticos, em uma sociedade na qual os meios
materiais para a realização desses fins é desigual a fórmula não é dotada de
valor moral. Charles K. é um bom exemplo nesse caso. O fato de defender uma
sociedade na qual cada indivíduo tenha a seu alcance o maior número de
oportunidades sociais possíveis (por exemplo, para exercer suas atividades
empresariais) esconde o fato de que ser herdeiro de alguém (como no seu próprio
caso) ou ser excluído dos benefícios trazidos pelo acúmulo da riqueza social (como
os milhares de norte-americanos pobres que não tem acesso ao sistema de saúde,
as famílias negras que não podem matricular seus filhos em colégios de bairros
brancos, ou os candidatos homossexuais que não podem declarar publicamente suas
preferências sexuais) torna o resultado efetivo da competição não apenas
distorcido mas profundamente injusto.
É claro que em uma
sociedade na qual os meios de produção são protegidos pelos direitos
individuais é de se esperar que as desigualdades econômicas e,
consequentemente, as oportunidades sociais que cada cidadão ou cidadã encontra
diante si ao nascer pode ser extremamente restrito. E aqui encontramos a
segunda fileira liberal igualitária: o ramo econômico. Uma concepção de
justiça, tal como a de Rawls, nos obriga a transformar não apenas as
instituições políticas ou jurídicas mas também as instituições econômicas vigentes
a fim de garantir o acesso justo aos benefícios da riqueza coletiva. Mill,
Meade, Rawls e Piketty, todos eles advogaram, e continuam a advogar,
transformações radicais não apenas no modo como a renda é distribuída mas também
no modo como a riqueza é produzida (ver aqui uma tentativa de organizar algumas dessas
propostas do ponto de vista liberal igualitário).
O próprio Rawls acreditava que apenas dois sistemas socioeconômicos seriam capazes de realizar de modo satisfatório sua concepção de justiça social: ou um socialismo com liberdades políticas garantidas, ou aquilo que chamou de democracia de cidadãos proprietários, na qual as instituições sociais tem como finalidade a dispersão intergeracional da riqueza produzida.
O próprio Rawls acreditava que apenas dois sistemas socioeconômicos seriam capazes de realizar de modo satisfatório sua concepção de justiça social: ou um socialismo com liberdades políticas garantidas, ou aquilo que chamou de democracia de cidadãos proprietários, na qual as instituições sociais tem como finalidade a dispersão intergeracional da riqueza produzida.
De fato, o igualitarismo
pode ser utópico dadas as possibilidades de organização da economia dado o mundo como o conhecemos. Entretanto, com certeza é um
utopia mais coerente e digna de ser imaginada do que a utopia de Charles
K.: uma sociedade de capitalistas laissez-faire na qual todos terão as mesmas
oportunidades.
Leituras sugeridas:
(Verbete do Oxford
Handbook of Political Philosophy)
(Direto do Bleeding Hart
Libertiarians, um forum de discussão filosófico de filósofos conservadores).
(Freeman procura
identificar qual a relação - se alguma - entre liberalismo igualitário e livre-mercado)
(White apresenta exemplos concretos de alternativas econômicas ao mainsstream liberal clássico)
(Um dos melhores artigos
acadêmicos em português sobre os principios basicos do liberalismo igualitário)