quarta-feira, 8 de junho de 2016

Shapiro: A política contra a dominação

Seria a igualdade o valor fundamental para entendermos reivindicações de justiça? Uma resposta afirmativa a essa pergunta tem sido oferecida pelo mainstream da teoria política contemporânea ao longo das últimas décadas. Afinal, a justiça entre iguais implica, por exemplo, rejeitarmos como injusta distribuição desiguais de recursos sociais. 

O teórico político Ian Shapiro (Yale) dedica o seu mais recente livro Politics Against Domination, publicado neste ano pela Harvard Press, a rejeitar essa tese recebida. Para Shapiro, o valor fundamental por trás da ideia de justiça e que, em grande parte, orienta a própria teoria política, não seriam valores morais, tais como igualdade e liberdade, mas sim a luta permanente contra formas de dominação. 

Shapiro tem se esforçado ao longo das últimas décadas para demostrar que a teoria política contemporânea produz o seu melhor quando bem informada pela realidade social a qual se direciona e, principalmente, quando explicitamente comprometida com experiências políticas reais. Da perspectiva privilegiada dos próprios agentes políticos históricos (e não dos filósofos) a luta contra as muitas formas de dominação encontradas nas sociedades contemporâneas constituiria o fim mais nobre (e urgente) de qualquer teorização sobre a política. É nesse sentido que deveríamos entender a luta contra a dominação - e não valores morais - como o ideal normativo mais importante para a teoria política. 

Vejamos um exemplo. Para aqueles que compartilham as premissas gerais da teoria da justiça elaborada por John Rawls, o valor da igualdade representa o principal fundamento para os juízos normativos acerca das instituições sociais. Um dos principais argumentos rawlsianos para isso é a chamada "tese da arbitrariedade moral". Tomemos o caso da distribuição justa de recursos sociais. 

Segundo a tese da arbitrariedade, as diferentes funções de produção individual encontradas em uma sociedade seriam em grande medida acidentais, isto é, encontrar-se-iam além das ações intencionais das pessoais. A classe social na qual nascemos, ou o tipo de habilidades e talentos que desenvolvemos ao longo de nossas vidas (em grande parte influenciadas pela posição social a qual pertencemos) encontram-se muito além do controle individual daqueles que se beneficiam por elas e, portanto, as vantagens sociais e econômicas obtidas por meio delas seriam arbitrárias de uma ponto de vista moral. Qualquer padrão distributivo precisaria ser justificado tendo em vista essa igualdade moral fundamental entre os agentes sociais.

Desde então, a tese da arbitrariedade foi criticada e reformulada por diversos autores e autoras, tais como Ronald Dworkin, G. A. Cohen, Elizabeth Anderson, etc. Contudo, em todas elas encontramos o valor da igualdade como fundamento moral da justiça e, consequentemente, dos nossos juízos acerca das instituições e práticas sociais injustas em nossas sociedades. Shapiro não nega a importância de argumentos igualitários como esse, nem rejeita a necessidade de correções distributivas, mas coloca em questão a coerência conceitual e prática desse tipo de teoria política. Particularmente, o autor procura expor em que medida a filosofia política tem perdido sua relevância prática. Discussões acerca do papel da "fortuna" na distribuição de posições e recursos sociais teriam muita pouca importância em contextos reais de luta por recursos sociais escassos e formas de resistência à dominação; contextos nos quais a possibilidade de uma avaliação imparcial distanciada das instituições é impossível e para os quais a urgência e a possibilidade de colocar em prática argumentos teóricos são duas características importantes.  

A igualdade importa no modelo teórico de Shapiro na medida em que o acesso desigual aos recursos sociais fundamenta formas efetivas de dominação política, social e econômica. Ou seja, a igualdade distributiva ideal implícita nas teorias igualitárias importaria na medida em que possamos rastrear formas concretas de dominação fundadas no acesso desigual desses recursos. Visto que a dominação se faz de muitas formas, também devemos estar preparados para encontrá-la em outras esferas que não as propriamente distributivas, tais como nas relações de gênero e raça, nas instituições representativas e na falha de reconhecimento nas interações simbólicas. (Um argumento semelhante poderia ser apresentado tomando o valor da liberdade ao invés da igualdade. O resultado no argumento de Shapiro seria o mesmo).

Shapiro identifica nos chamados "teóricos da não-dominação" as principais contribuições práticas para a teoria política no passado recente - argumentos que mobilizariam não apenas congressos de filosofia mas também o próprio contexto de lutas políticas reais. Entre a lista de teóricos e teóricas da não-dominação Shapiro identifica: as estratégias genealógicas de Foucault contra os modos sutis de dominação técnica e burocrática dos Estados modernos, a crítica de Iris Young ao "paradigma distributivista" com sua incapacidade intrínseca de lidar com problemas de opressão, Walzer e a distinção entre formas danosas e triviais de desigualdade em contextos de significados partilhados (sendo apenas as primeiras objeto de preocupação política) e, finalmente, a retomada do republicanismo clássico por autores como Skinner e Pettit, responsável por recusar a liberdade negativa hobbesiana em nome da liberdade como não-dominação. 

Os esforços de Shapiro em separar de um modo explícito as fronteiras entre teoria e filosofia política (algo que, em geral, quem pesquisa na área procura evitar) é conceitualmente interessante e certamente agradará a muitos e muitas no debate nacional. 

Contudo, um ponto importante poderia ser levantado aqui. Aquilo que Shapiro identifica como um "problema" na filosofia política contemporânea - a irrelevância de certos debates conceituais e sua dificuldade em se traduzir em formas concretas de transformação social - talvez seja fruto muito mais de uma divisão de tarefas no interior da teoria política, do que propriamente de um conflito de interesses. 

Desafiar e redefinir conceitos tidos como estabelecidos (tal como a redefinição do conceito de justiça por Rawls ou do valor da liberdade pelos neorrepublicanos) e analisar a coerência e validade de argumentos filosóficos, por mais que eles possam parecer implausíveis hoje (tal como grande parte do debate sobre justiça distributiva tende a fazer) parece ser uma tarefa disciplinar tão importante quanto explicar formas concretas de luta social. O risco em recusarmos formas de teorização que não partam da nossa realidade histórica imediata é, paradoxalmente, nos tornamos reféns das, por vezes, escassas possibilidades de emancipação oferecidas pela nossa realidade histórica imediata. Isto é, as vezes, o que era utópico e anti-político (no sentido de Shapiro) duas gerações a trás pode ser o instrumento de transformação social das lutas políticas de hoje (tal como o caso da renda básica incondicional e da luta pela emancipação animal, tidas como "irreais" vinte ou trinta anos atrás).

Em diferentes partes do livro, Shapiro afirma seguir os passos do filósofo político inglês Brain Barry. Entretanto, a obra de Barry é um excelente exemplo das muitas tarefas da teoria política. 

Por um lado ela é tida, com razão, como uma das melhores fusões entre filosofia e ciência política. Seus trabalhos inovadores sobre teoria democrática e da decisão (especialmente seu Political Argument de 1965) estão na origem do renascimento da filosofia política contemporânea de língua inglesa que, a partir de 60, voltou a ganhar relevância justamente ao dialogar cada vez mais com as ciências sociais (especialmente a ciência política e a economia) a tal ponto que, hoje, é difícil esperarmos que alguém possa fazer uma contribuição importante no campo sem conhecer seu estado da arte. Por outro lado, seu autodenominado "tratado" sobre as diferentes teorias contratualistas é provavelmente um dos livros de filosofia política mais importantes da segunda metade do século passado e um modelo de argumentação filosófica rigorosa. No livro, Barry analisa, desmistifica e - esse é o ponto - endossa em uma formulação mais forte e geral justamente a teoria da justiça que Shapiro entende como irrelevante e justamente porque melhor fundada em argumentos morais. 


Referências adicionais:

- Shapiro: "On Nondomination"
[Algumas das teses do livro já haviam sido apresentadas neste ensaio de 2014]

- Shapiro: "The Moral Foundations of Politics" (Yale Open Courses)
[Curso de introdução à teoria política de Shapiro em Yale disponibilizado na íntegra pela plataforma Yale Open Courses]





Ian Shapiro makes a compelling case that the overriding purpose of politics should be to combat domination. Moreover, he shows how to put resistance to domination into practice at home and abroad. This is a major work of applied political theory, a profound challenge to utopian visions, and a guide to fundamental problems of justice and distribution.
Shapiro builds his case from the ground up, but he also spells out its implications for pressing debates about electoral systems, independent courts, money in politics, minimum wages, and the vulnerabilities of minorities. He takes up debates over international institutions and world government, intervention to prevent genocide and ethnic cleansing, and the challenges of fostering democracy abroad. Shapiro is brutally realistic in his assessments of politics and power, yet he makes an inspiring case that we can reasonably hope to devise ways to combat domination and act on them. Gleaning insights from the battle against slavery, the creation of modern welfare states, the civil rights movement, Occupy Wall Street, the Tea Party, and the worldwide campaign against sweatshops, among other sources, Shapiro explains the ingredients of effective coalitions for political change and how best to press them into the service of resisting domination.
Politics against Domination ranges over political science, psychology, economics, history, sociology, and law. It will be of interest to seasoned veterans of political theory in all these disciplines. But it is written in the lucid and penetrating style for which Shapiro is widely known, making it readily accessible to newcomers.
  • Preface
  • 1. Adapting against Domination
  • 2. Power and Majority Rule
  • 3. The Stakes of Political Conflict
  • 4. Democracy against Republicanism
  • 5. Against World Government
  • 6. Resisting Domination across Borders
  • 7. Politics against Domination