segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Amy Allen: Descolonizando a Teoria Crítica

A filósofa Amy Allen (Penn State) acaba de publicar The End of Progress: Decolonizing the Normative Foundation of Critical Theory, livro no qual procura avaliar os fundamentos normativos da teoria crítica a patir da série de debates trazidos pelas teorias pós-coloniais nas últimas décadas.

Considerada uma das teóricas críticas mais importantes da atualidade, Allen contribuiu para o debate feminista (bem como para a teoria crítica como um todo) com uma proposta "negativista" de emancipação. Isto é, para Allen o ideal normativo de emancipação social deve ser entendido como a minimização de relações de dominação. Ao invés de fundamentar a teoria crítica em uma noção positiva de luta contra a dominação e de pressupostos utópicos, tais como a possibilidade nos livrar, definitivamente, das relações de poder que nos costrangem enquanto sujeitos sociais, de acorod com a proposta negativista deveríamos guiar nossa avaliação das relações de poder a partir das perspectivas da não-dominação possível em cada contexto de luta. Um objetivo conscientemente precário, mas pronto para ser reavalidado à luz de novas formas de exercício do poder. 

Em The End of Progress, Allen tem por objetivo analisar mais uma vez os pressupostos normativos da filosofia política contemporânea dessa vez tomando como perspectiva privilegiada as teorias pós-coloniais. Mais especificamente, Allen procura demostrar que autores centrais da teoria crítica, tais como Jürgen Habermas e Axel Honneth, pressupõem, explicita ou implicitamente, valores eurocêntricos em suas noções de progresso histórico. Em geral, teóricos e teóricas críticas tendem a rejeitar princípios morais universais descolados de contextos sociais determinados em determimento de fundamentos tidos por imanentes, isto é, inscritos nos próprios princípios de organização da sociedade moderna. Nesse sentido, os valores e expectativas presentes nas instituições modernas representariam uma fonte importante de "mais-valia moral" a partir da qual podemos avaliar os potenciais emacipatórios de novas formas sociais.

Para que isso funcione adequadamente, como argumenta Allen, Habermas e Honneth precisam assumir um referêncial histórico capaz de separar formas sociais "superiores" ou mais avançadas na escala do progresso, de formas de vida "inferiores" ou ultrapassadas. Tem-se, assim, uma convergência entre, de um lado, desenvolvimento histórico e, de outro, de progresso moral.

Para Allen, críticas pós-coloniais trazem dois desafios centrais à noção de progresso presente na agenda de pesquisa da teoria crítica. O primeiro seria de ordem conceitual: a mera possibilidade lógica de progresso social pressupõem um ponto de vista a-histórico a partir do qual alguns sujeitos e algumas culturas privilegiadas são capazes de passar em revista as diferentes fases históricas da experiência humana. O problema é que tal ponto de vista privilegiado corre o risco de ser tautologico: apenas culturas mais avançadas seriam capazes de avaliar objetivamente quais culturas são superiores e quais não o são - sendo a capacidade cultural para reflexividade histórica a principal marca dessa superioridade. O segundo desafio é de natureza política. A noção de progresso, quando aplicada à história moderna, deixa de lado as consequências imperialistas da civilização européia. Se por um lado o Iluminismo nos legou instituições livres e valores univerais, por outro, essas conquistas só foram possíveis graças à exploração colonial da América Latina e da África. Pior: os próprios valores modernos e a ideologia do progresso culturtal foram utilizados como instrumentos de dominação de cultuais "atrasadas" da perspectiva européia. Colodado de forma paradoxal, o progresso institucional europeu teve como condição de possibilidade a barbárie colonialista em terras estrangeiras. 

Qual o impacto desses desafios para a teoria crítica? Evidentemente Allen não está acusando Habermas e Honneth de serem imperialistas ou de esquerecem a história européia. O ponto é que os fundamentos normativos de suas teorias (ancorados em uma visão idealizada de progresso histórico) não os impede de produzir diagnósticos compatíveis em princípio com práticas imperalistas. 

Tomemos o exemplo a luta pelo casamento homoafetivo. Tendemos a avaliar a luta por formas não-heteronormativas de constituição familiar a partir de uma visão orientada pelo progresso das nossas instituições. Assim, tenderíamos a interpretar "avanços" e "retrocessos" a partir de uma escala histórica. A conclusão dessa orientação "progressista", como Allen procura demostrar, é a tabulação de diferentes experiencias históricas e cultuais a partir dos padrões institucionais europeu transformados em métrica universal. Culturais que aceitam essa forma de casamento seriam "modernas" em oposição 'as "atrasadas" que as condenam. O que começou como uma luta pelo direito das minorias opremidas termina por alimentar um discurso colonialista contra outras formas de expressão cultural.

Quando bem entendida a crítica pós-colonial nos ajudaria a evitar a "falácia arqueológica" presente nesse tipo de raciocínio, isto é, que não devemos explicar a diferença cultural, ou a luta política, presente do outro, a partir do passado de nossas conquistas históricas. A opressão de hoje na África não é a opressão de ontem da Europa. Ambas estão no mesmo presente histórico (até porque a primeira é, em alguma medida segundo autores pós-coloniais, o resultado da segunda). O exemplo do aborto no Brasil ilustra bem esse ponto. Tendemos a pensar que sua proibição no Brasil é sintoma de nossa cultura "arcaica". De fato, ao proibírmos por meio da coerção pública que as mulheres tenham autonomia sobre seus corpos praticamos uma forma grave de injustiça. Contudo, ao explicarmos essa injustiça por meio da noção de progresso histórico - "ainda estamos atrasados nesse ponto" - não apenas pressupomos a superioridade intrínseca de culturas metropolitanas (nem sempre tão emancipatórias assim) como também deixamos de compreender os mecanismos de dominação vigentes que não são necessariamente a "falta" de alguma coisa. Os defensores da criminalizam do aborto estão perfeitamente situados no jogo de força do presente.

Allen oferece uma forma alternativa de lidar com o problema do progresso moral na qual não nos tornamos reféns do pensamento colonialista. A partir das análises genealógicas de Michel Foucualt e do ceticismo de Adorno em relação à racionalidade moderna, ela propõe uma divisão radical entre progresso histórico, de um lado, e progresso moral, de outro. Tratam-se de duas formas distintas de pensarmos o progresso. Uma, orientada para o passado, e com o objetivo de auto-vindicar as experiências históricas às quais acreditamos que fazemos parte. A outra, bem mais cética e negativa - mas por isso mesmo mais útil à crítica social - tem por objeto o presente. Ou melhor, problematizar os processos históricos contingentes que constituiram nossas práticas e instituições sociais, desnaturalizando pressupostos normativos convencionais. 

O livro de Allen é valioso justamente por tentar suprir certo "lapso normativo" normalmente atribuído a autores anti-progresso como Adorno e Foucualt. Segundo a autora, é justamente na atitude de recusa moral (e não apenas de ceticismo epistemológico) própria desses autores que devemos encontrar a melhor forma de lidar com a relação entre história e princípios normativos. Relações de poder (ou a potencialidade para a bárbarie, como diria Adorno) permeiam mesmo as conquistas civilizatórias mais caras do mundo contemporâneo. Explicitá-las é permitir uma forma importante de auto-esclarecimento. 

Se podemos falar em progresso moral, então esse progresso só pode ser o abandono de pressupostos teleológicos: o otimismo injustificado de de que a civlização não engendra sua própria bárbarie. Essa é, justamente, a mensagem do célebre aforismo de Adorno sobre o progresso. Na bela tradução de Gabriel Cohen: "o progresso acontece ali, onde ele termina".


Sugestões de leituras:

A. Allen: "The End of Progress" (New Books in Philosophy)

A. Allen: "Emancipação sem Utopia" (Novos Estudos)




The End of Progress: Decolonizing the Normative Foundations of Critical Theory (Columbia Press)


While post- and decolonial theorists have thoroughly debunked the idea of historical progress as a Eurocentric, imperialist, and neocolonialist fallacy, many of the most prominent contemporary thinkers associated with the Frankfurt School—Jürgen Habermas, Axel Honneth, and Rainer Forst—have defended ideas of progress, development, and modernity and have even made such ideas central to their normative claims. Can the Frankfurt School's goal of radical social change survive this critique? And what would a decolonized critical theory look like?
Amy Allen fractures critical theory from within by dispensing with its progressive reading of history while retaining its notion of progress as a political imperative, so eloquently defended by Adorno. Critical theory, according to Allen, is the best resource we have for achieving emancipatory social goals. In reimagining a decolonized critical theory after the end of progress, she rescues it from oblivion and gives it a future.
Table of Contents
Preface and Acknowledgments

1. Critical Theory and the Idea of Progress
2. From Social Evolution to Multiple Modernities: History and Normativity in Habermas
3. The Ineliminability of Progress? Honneth's Hegelian Contextualism
4. From Hegelian Reconstructivism to Kantian Constructivism: Forst's Theory of Justification
5. From the Dialectic of Enlightenment to the History of Madness: Foucault as Adorno's Other Other Son
6. Conclusion: "Truth," Reason, and History