sábado, 22 de junho de 2013

Paul Singer: "Tarifa-Zero"

Para aqueles como eu que se interessaram pelas reivindicações da "tarifa zero" - ou simplesmente procuram alternativas para o atual modelo de transporte público nas principais cidades do país - recomendo o artigo do economista Paul Singer "A tarifa-zero e a municipalização do transporte coletivo", publicado pelo blog Tarifa Zero. Singer traça as origens dessa reivindicação ao governo municipal de Luiza Erundina no qual Singer era então secretário de Planejamento. (Vale notar que a idéia conta com uma entrada na Wikipedia!).

Ver também a palestra do professor da FAU-USP Lucio Grégori (19/06/2013), um dos fundadores do movimento pela tarifa-zero na cidade de São Paulo:





A tarifa-zero e a municipalização do transporte coletivo

Paul Singer
A origem da idéia da tarifa-zero
Em meados de setembro de 1990, o governo encontrava-se reunido para fechar o projeto orçamentário para 1991. O processo tinha sido particularmente árduo porque a execução orçamentária do exercício corrente tendia a ser deficitária. O governo tinha se fixado metas ambiciosas para 1990, entre as quais terminar a construção de dois grandes hospitais regionais, um em Campo Limpo e outro em Ermelino Matarazzo, e de três mini-hospitais, além da reforma do vale do Anhangabaú. As equipes da secretaria da Finanças e da Sempla (Secretaria Municipal de Planejamento) f   previam que os esforços resultariam em grandes “restos a pagar” de 1990 a serem saldados em 1991, o que exigia um enxugamento relativo dos gastos no exercício seguinte, contradizendo inteiramente as expectativas dos secretários-fim e dos movimentos sociais que eles representavam. Esperavam que a restrição orçamentária seria gradualmente aliviada, permitindo ampliar investimentos e expandir os serviços ano após ano. Foi com muita dificuldade que se resignaram a previsões de gasto para 1991 menores que os correntes, unanimemente julgados insuficientes.
O secretário de Transportes Lúcio Gregori pediu a palavra e relatou que participaria em breve de uma reunião sobre transporte público, onde defenderia a tese de subsidiamento total da tarifa. Depois de dizer isso, entrou em outro assunto, provavelmente a questão do orçamento que cumpria resolver. A reunião continuou até ser suspensa para o almoço. Enquanto comiam, Lúcio Gregori e Paulo Sandroni, presidente da CMTC (Companhia Municipal de Transportes Coletivos), conversaram sobre a idéia de tarifa-zero, que o primeiro resolvera colocar em debate. Sandroni (segundo o relato que ele me fez) procurou convencer Lúcio de que a idéia poderia ser proposta concretamente imediatamente, para ser incluída na proposta orçamentária de 1991. Ambos decidiram procurar a prefeita para sondá-la a respeito. Luiza Erundina mostrou-se receptiva: a discussão sobre o orçamento tinha deixado o governo um tanto desanimado, faltava uma proposta ousada que resumisse o propósito redistributivo da administração e permitisse retomar a ofensiva.
Quando os trabalhos foram reiniciados, a prefeita pediu a atenção de todos para uma proposta a ser feita pelo secretário de Transportes. Este passou então a detalhar a idéia. Se a tarifa de ônibus fosse inteiramente subsidiada, seria de se esperar que a demanda por transporte coletivo crescesse substancialmente, já que muitas viagens deixam de ser feitas em função de seu custo. Ora, não faria sentido deixar de atender esta demanda suplementar, pois neste caso o maior efeito da tarifa-zero seria aumentar o desconforto de todos, já que aumentando a superlotação dos ônibus ainda seria maior. Portanto, uma condição básica da proposta era uma ampliação acentuada – ele ainda não tinha idéia de quanto – da frota de veículos. Haveria portanto um duplo aumento do gasto com o transporte coletivo: o subsídio à tarifa teria que se elevar, possivelmente para o dobro se o subsidiamento fosse então de 50%, e o gasto da operação subiria na proporção em que se ampliasse a frota. Mas a tarifa-zero também traria economia, pois permitiria dispensar os serviços dos cobradores assim como da fiscalização da receita tarifária e todas as operações contábeis e outras de processamento da referida receita.


Naquele momento não havia ainda cálculos a respeito do efeito líquido da tarifa-zero sobre o erário municipal, mas o mais provável é que pelo menos no início ele seria negativo, no sentido de exigir ampliação do gasto. Mesmo porque a dispensa dos cobradores não poderia ser imediata por serem necessários para, juntamente com os motoristas, manter a disciplina no interior dos ônibus. A idéia era reciclar o maior número de cobradores para transformá-los em motoristas, cujas vagas seriam multiplicadas em função da ampliação da frota. Haveria ainda a questão de como financiar esta ampliação, mas poder-se-ia supor que as empresas privadas que exploravam o transporte coletivo (então em vias de ser municipalizado) se disporiam a ampliar suas frotas, desde que o lucro decorrente de sua operação fosse compensador. A dificuldade óbvia seria financiar o aumento da frota da CMTC, para o que a municipalidade não dispunha de recursos. A solução lógica era ampliar na medida do necessário apenas as frotas privadas, pois o custo de operação da frota da CMTC era muito maior.
Lúcio defendeu com ardor e competência as vantagens da tarifa-zero. Não deixou dúvida de que a população a ser beneficiada seria a de renda mais baixa, que passaria a economizar a quantia gasta com a condução e ganharia a possibilidade de usufruir todo o espaço da cidade, inclusive o acesso à totalidade de seus serviços. Se o custo da tarifa-zero fosse coberto por recursos tributários retirados das empresas capitalistas ou dos moradores de renda acima da média, o resultado seria uma ponderável redistribuição da renda.

A discussão dentro do governo
A proposta desencadeou imediatamente forte discussão sobre os seus méritos e sobre a sua oportunidade. Quanto ao mérito a grande dúvida quanto ao mérito repousava sobre a justiça ou a adequação de se concentrarem tantos recursos num só serviço, mesmo tendo este a importância do transporte coletivo. Inevitavelmente, a satisfação de outras necessidades da população mais carente teria de ser restringida. Além disso, qualquer serviço gratuito tende a dar lugar a abusos. Adversários da idéia lembraram que em outras cidades haviam aplicado a tarifa-zero verificara-se que muita gente tomava ônibus meramente para passear e bandos de jovens turbulentos aproveitavam a oportunidade para farrear, incomodando os demais passageiros. Mas o principal argumento contra a proposta de incluir a tarifa-zero no projeto de OP-91 era sua inoportunidade: faltava tempo para amadurecer a idéia, para colher elementos que permitissem verificar sua validade, para formular sua implantação com todas as implicações para o transporte coletivo, o trânsito, as outras modalidades de transporte, as finanças municipais etc., além de o projeto de OP já haver passado pelas audiências públicas regionais, faltando apenas uma quinzena para vencer o prazo final de sua apresentação à Câmara Municipal.
Nenhum destes argumentos comoveu a prefeita, que estava cada vez mais convencida exatamente da oportunidade da proposta. A necessidade de conter o déficit roubara o ímpeto do governo  e precisávamos de uma nova bandeira, capaz de galvanizar o partido e o movimento social. Nas discussões anteriores sobre as prioridades do governo, muitos secretários e administradores regionais haviam insistido que o governo precisava definir sua marca mediante alguma realização original e significativa. Só que cada secretário-fim achava que a prioridade identificadora da administração Luiza Erundina deveria preferencialmente ser escolhida em sua área de atuação. Outros, entre os quais eu me incluía, estavam convictos de que a “marca” de nosso governo deveria ser exatamente o equilíbrio, o reconhecimento de que a maioria desprivilegiada se compunha de diversas minorias polarizadas por interesses ou necessidades diferentes e que cada uma teria no mínimo algum atendimento. A tarifa-zero tinha o mérito de beneficiar praticamente a totalidade dos cidadãos de baixa renda, que não dispondo de transporte próprio dependem do transporte público. Sua conquista consagraria a administração petista, conferindo-lhe a marca de dedicação à justiça social.
A partir daquela tarde de setembro, a discussão girou quase sempre ao redor dos mesmos argumentos. Quando ficou claro que Luiza Erundina assumira a proposta e a considerava politicamente oportuna e urgente, as vozes contrárias dentro do governo deixaram de se manifestar. Eu pessoalmente não fiquei convencido pela argumentação de Lúcio, Sandroni e outros partidários da tarifa-zero: achava que o governo carecia de mais tempo para reunir toda a informação relevante e para formular um plano eficaz de implantação da gratuidade do transporte por ônibus se realmente fosse o caso. Mas confiava na intuição política de Luiza Erundina e me deixei entusiasmar pela radicalidade e ousadia da proposta – ela permitiria colocar em discussão a redistribuição da renda via erário público de forma concreta e insofismável. Agora, quatro anos depois, continuo achando que estávamos certos e que a campanha pela tarifa-zero representou o auge político de nossa administração.
A elaboração da proposta
Na verdade, a controvérsia sobre a tarifa-zero revelou muito claramente o relacionamento complicado e relativamente obscuro entre o político e o administrativo. Deste último ponto de vista, a proposta era excessivamente improvisada. Quando se decidiu incluí-la no projeto de OP-91, Amir Khair e sua equipe ficaram encarregados de formular um novo imposto ou taxa para financiá-la. Os técnicos progressistas da área já vinham defendendo a criação de um tributo a ser pago pelas empresas que se beneficiavam do transporte público, tendo em vista subsidiá-lo. O argumento era de que as empresas tiravam proveito do transporte público ao empregar trabalhadores que dependiam dele para se locomover entre suas casas e o serviço. Amir e seus técnicos não tardaram em descobrir que o almejado tributo não poderia ser criado por falta de base jurídica. O artigo 154 da Constituição estabelece que novos tributos “sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição”. Ora, não se dispunha de qualquer fato gerador ainda não aproveitado para o imposto pretendido.
Se o imposto fosse a contrapartida da vantagem usufruída por empresas da disponibilidade de transporte público para seus empregados, então deveria ser proporcional ao número destes, ou seja, ao valor de suas folhas de pagamento. Acontece que estas últimas já são gravadas pelas contribuições previdenciárias, de modo que não se poderia utilizá-las como base de cálculo para o novo tributo. Além disso, já existia o vale-transporte, que é um subsídio ao transporte dos trabalhadores de baixos salários. Na impossibilidade de propor um novo imposto, não sobrou outra alternativa à equipe das Finanças que a de ampliar as alíquotas do IPTU, de modo que a sua receita pudesse cobrir o gasto com a tarifa-zero. Como o grosso do IPTU era pago pelas empresas que possuíam os edifícios mais valiosos da cidade, juntamente com os detentores de terrenos vagos e de moradias de alto luxo, os propósitos redistributivos da proposta eram atendidos.
Também no referente à estimativa do tamanho da frota necessária para atender à demanda gerada pela gratuidade do transporte foi impossível evitar a improvisação. O cálculo presumia que a demanda adicional seria constituída pela metade das viagens feitas a pé, por um quarto das viagens feitas por automóvel, metade das viagens feitas por metrô e por ferrovias, metade das viagens feitas em ônibus intermunicipais (que continuariam cobrando tarifa) e metade das viagens feitas em ônibus fretados, do que resultaria um aumento de 150% do número de viagens que então se faziam nos ônibus tarifados. A frota adicional necessária foi calculada em função das viagens no hora do pico, que se estimou que subiriam de 400 mil para um milhão. Resolveu-se, além disso, reduzir a lotação dos ônibus na hora do pico de 111 para 80 passageiros. Um milhão de passageiros a 80 por veículo seriam transportados por 12.500 ônibus; como a frota existente era de 8.000 seria necessário ampliá-la em mais 4.500.
A proposta era de implantar a tarifa-zero gradativamente a partir do 2º semestre de 1991 admitindo que durante o 1º semestre se construiria a frota adicional e as garagens e terminais necessários pra operá-los. Para 1992, a proposta previa a redução adicional da lotação dos ônibus na hora do pico para 70, além do crescimento da demanda em 5%, o que iria exigir um acréscimo à frota de mais 2.500 veículos. Em suma, a implantação total da tarifa-zero, juntamente com a humanização do transporte, evitando que os ônibus continuassem superlotados de manhã e ao entardecer, deveria exigir a quase duplicação da frota em cerca de dois anos. O caráter revolucionário da proposta se evidenciava no fato de que esta enorme ampliação não acarretaria a duplicação do gasto, pois a tarifa-zero permitiria evitar despesas e aumentar a eficiência do sistema.
A despesa com a arrecadação de tarifas correspondia a nada menos que 24% do custo total, que seriam economizados com a tarifa-zero. Além disso, a tarifa-zero permitiria racionalizar os percursos, seccionando os muito longos de modo a utilizar veículos menores em linhas alimentadoras de linhas troncais e nestas colocando ônibus de maior capacidade. Sem a tarifa-zero, o seccionamento exigiria que os passageiros pagassem duas passagens. Tornando o transporte gratuito para o usuário, o sistema poderia ser racionalizado com viagens sendo feitas em mais de um veículo, obviamente sem ônus adicional aos passageiros. Esperava-se deste modo reduzir em 17% o percurso médio anual por ônibus, o que permitiria uma economia proporcional de salários de motoristas, gastos com combustível, pneus e desgaste dos veículos.

A proposta de tarifa-zero para os ônibus acabou tendo seu custo aumentado pelo fato de que os outros modos de transporte coletivos continuariam sendo tarifados, o que desviaria parte da demanda por estes para os ônibus tornados gratuitos. Se a tarifa-zero fosse adotada pelo metrô, ferrovias e ônibus intermunicipais também, o número de viagens de ônibus na hora do pico seria 866.666, que poderia ser realizadas por 10.833 veículos com 80 passageiros cada um. A expansão da frota teria de ser de apenas 2.833 veículos em vez dos 4.500 previstos. Portanto, a proposta de tarifa-zero implicava também o subsídio de munícipes que usavam outros modos de transporte popular.