terça-feira, 26 de maio de 2015

Elizabeth Anderson e o sentido da igualdade

Para a filósofa Elizabeth Anderson (Michigan) o debate sobre a igualdade deve ser estruturado a partir do papel que hierarquias sociais - explícitas ou implícitas - exercem no exercício equitativo de direitos e oportunidades sociais instituídos pela vida em sociedade. Erramos, portanto, ao supor que o valor da igualdade implique ou uma igualdade estrita entre cidadãos ou uma homogeneidade social indesejada - duas acusações frequentes dirigidas ao pensamento igualitário. Para Anderson, o igualitarismo deve ser entendido como uma luta permanente contra distinções  políticas, sociais e econômicas injustificadas do ponto de vista de uma sociedade de iguais.

Em uma entrevista ao filósofo Gary Gutting para o blog The Stone (What's Wrong with Inequality?), Anderson retoma de modo acessível alguns dos seus argumentos mais importantes formulados pela primeira vez em seu importante artigo da Ethics de 1999, e recentemente traduzido pela  RBCPentitulado Qual o Sentido da Igualdade?. Na entrevista, Anderson recorre mais uma vez a sua distinção entre duas correntes no interior do igualitarismo e enfatiza a importância que experiências históricas concretas de opressão e a desigualdade possuem para o modo como devemos conceber o valor da igualdade social: 

Talk about equality gets off on the wrong foot if we start from the assumption that it expresses an immediate moral demand to treat everyone the same. Of course, there are thousands of legitimate reasons why people may treat different individuals differently. What egalitarianism objects to are social hierarchies that unjustly put different people into superior and inferior positions [...]  Of course, there are standard cases of discrimination on the basis of antipathy against, or favoritism towards, arbitrary identity groups — such as race, gender and sexual orientation. But I want to stress the many ways in which unjust social hierarchy is manifested in other ways besides direct discrimination or formally differential treatment. The discrimination/differential treatment idea captures only a small part of what counts as unjust inequality.

No artigo de 1999, Anderson contrasta o que denomina de concepção "democrática" de igualdade com outra variante do igualitarismo, popular entre os filósofos, denominada "igualitarismo de fortuna". Segundo o igualitarismo de fortuna, o que realmente importa quando falamos de igualdade é impedir que indivíduos sejam penalizados em suas perspectivas pessoais por razões oriundas do "infortúnio" individual, entendido aqui tanto como "puro azar" como as condições sociais e biológicas nas quais e pelas quais somos socializados desde o momento que nascemos, mas que não exercemos nenhuma forma de controle consciente e, portanto, pertenceriam à esfera da fortuna. 

Em primeiro lugar, para Anderson, nem toda circunstância não escolhida é inerentemente injusta de um ponto de vista político: pessoas talentosas ou beneficiadas pela loteria genética podem ser devidamente recompensadas por isso contanto que todos possam exercer equitativamente suas respectivas habilidades e ninguém seja deixado para trás pela riqueza social. Em seguida, nem todas as escolhas autônomas que as pessoas fazem deveriam excluí-las, necessariamente, dos benefícios da vida em sociedade, ainda que a "culpa" pelas consequências desses atos sejam de inteira responsabilidade das pessoas. O exemplo de Anderson na entrevista é o caso de um motoqueiro "teimoso" que, a despeito de não usar seu capacete devidamente, não deveria ser excluído do tratamento médico após um acidente. 

Em trabalhos mais recentesAnderson tem enfatizado o papel das hierarquias sociais na reprodução de relações sociais injustas e como podemos transformá-las. Anderson define três tipos de hierarquias arbitrárias: (i) hierarquias de posição (standing), quando interesses e demandas presentes na sociedade são acolhidos de acordo com a posição na qual eles são expressos, (ii) hierarquias de poder político, nas quais os grupos detentores do poder o utilizam de modo arbitrário e opaco às demandas dos mais fracos e, finalmente, (iii) hierarquias de estima, quando minorias são estigmatizadas por conta de suas crenças ou estilos de vida. Nos três casos em questão estaríamos diante de formas patentemente opressivas de organização da vida social incapazes de serem reduzidas à mera intenção de das pessoas envolvidas. Entendê-las como um problema de estrutura que precisa ser combatida por meio da transformação de regras e instituições, e não de agência, é, para Anderson a tarefa crucial do igualitarismo. 

A desigualdade de recursos econômicos coloca um problema central para o valor da igualdade defendido por Anderson. De acordo com a concepção democrática de igualdade, ao enfrentarmos desigualdades econômicas deveríamos não apenas fortalecer a legislação trabalhista e garantir um ambiente equitativo para que os talentos e habilidades de todos possam ser desenvolvidos - dois preceitos de justiça social amplamente reconhecidos - como, argumenta Anderson, deveríamos dar atenção também ao outro lado dessa desigualdade. Grandes acumulações de riqueza, em grande medida fruto de transferências intergeracionais, tendem a obstruir a equidade de oportunidades sociais e a assegurar um controle de facto sobre os processos de tomada de decisão política aos seus proprietários. Parte importante do esforço igualitário hoje seria conceber novas formas de dispersão de riqueza, seja por medidas redistributivas, como impostos sobre fortuna e herança, seja por meio daquilo que autores como Jacob Hacker (Yale) e Martin O'Neill (York) tem denominado de "política da predistribuição" (ver um post sobre o conceito aqui).

Como afirma Anderson: "as únicas formas  justas de desigualdade são aquelas capazes de promover os interesses de todos". 


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