domingo, 10 de maio de 2015

O filósofo mais perigoso da América ?

O filósofo Cass Sustein (NYU) já foi identificado por Glen Beck, âncora da ultraconservadora rede de notícias Fox News, como "o homem mais perigoso da América" (ver também o vídeo abaixo). Sustein adquiriu a fama de "czar da regulação" entre os conservadores após ingressar na administração Obama como diretor da Secretaria de Informação e Regulação, uma agência governamental responsável por coletar, organizar e tornar útil a informação coletada pelo governo norte-americano.  




A escolha de Obama não foi arbitrária. Ao longo de sua carreira Sustein notabilizou-se pela defesa de um tipo específico de paternalismo estatal, conhecido como paternalismo libertário ou "suave", no qual autoridades centralizadas teriam o direito de reorganizar indiretamente a estrutura de escolhas a disposição dos cidadãos na tentativa de tornar os resultados dessas escolhas mais eficientes para os próprios cidadãos. Em trabalhos como Why Nudge? The Politics of Libertarian Paternalism, Choosing not to choose (SSRN) e mais recentemente em um ensaio para o blog The Stone denominado What Exactly do You Want?, Sustein argumenta que em sociedades democráticas de grandes dimensões não podemos contar com uma agência moral fundada exclusivamente na escolha livre, ativa e bem-informada das pessoas. Como conciliar então, de um lado, regras uniformes de conduta e, de outro, uma quantidade imensa de informações e o irredutível pluralismo de perspectivas morais? Se todos tivessem que fazer escolhas o tempo todo dificilmente conseguiríamos coordenar a ação coletiva. Segundo Sustein ao invés do Estado perguntar "o que exatamente você quer?", deveríamos estar perguntando às pessoas "você está dentro ou fora?" - isto é, dentro ou fora daquilo que já foi previamente decido como situação default com base nas melhores informações disponíveis. Podemos pular fora caso isso seja importante para nós. Mas enquanto isso somos todos conduzidos para a melhor opção no nível agregado.

Isso valeria tanto para a escolha sobre sacolinhas plásticas nos supermercados como para a doação de órgãos, passando pelas regras do financiamento público de saúde e aposentadoria. Tomemos um exemplo: a lei do cadastramento eleitoral obrigatório de Óregon (ou inversamente poderíamos pensar na tentativa recente de rediscutir o voto obrigatório no Brasil). Acredita-se que grande parte da crise econômica e política vivida nos EUA hoje é causada pela baixa responsividade do sistema partidário às demandas de eleitores negros, pobres e marginais que, devido ao atual sistema facultativo, são os grandes ausentes nas eleições nacionais. As taxas de comparecimento eleitoral são baixíssimas no país (em torno de 40% da população eleitoral, contra uma média de 80% no Brasil) e acredita-se que a causa do fenômeno seja o custo elevado que o complexo sistema de cadastramento eleitoral no país impõem aos mais pobres.

Ao mesmo tempo acredita-se, contudo, que obrigar o comparecimento desses cidadãos por meio da coerção pública representa uma forma grave de paternalismo na medida em que a coerção justifica-se apenas pelos possíveis benefícios aos próprios agentes, quer eles saibam disso quer não. Podemos coagí-los em nome de outros valores, é claro, mas nesses casos não estamos falando estritamente de paternalismo. O problema é que não podemos coagir em nome deles mesmos.

Para Sustein problemas como esse podem ser solucionados por meio da distinção entre duas situações normativamente diferentes presentes na estrutura de escolhas: "opções de saída" e "opções de entrada". Talvez obrigar as pessoas a votar seja uma forma ilegítima de coerção, do mesmo modo que obrigar alguém a doar seus próprios órgãos após sua morte certamente o é. Mas podemos mudar o status quo da questão: ao invés de pagar o custo de "optar por entrar" no cadastramento eleitoral, os cidadãos de Oregon poderiam pagar o custo de "optar por sair" não votando durante as eleições. Todos os eleitores seriam cadastrados compulsoriamente mas aqueles que não queiram participar poderão justificar seu voto. Igualmente Sustein seria radicalmente contrário à volta da voluntariedade do voto no Brasil: os custos da escolha de participação devem ser desenhado pró-saída e não pró-entrada nesse caso. Como afirma o filósofo:

"Would it really be better if Oregon instead told people that they could not get driver’s licenses unless they explicitly said whether they wanted to register to vote? [...] If you were required to choose such settings on your own, you would have to spend a great deal of time thinking about which settings were best, and you might end up frustrated and bored. You might also make a lot of mistakes. The central point is simple: Much of the time, sensible people choose not to choose. Indeed, that is an excellent way that we exercise our freedom and flex our choice-making muscles. We do it all the time".

O mesmo raciocínio poderia ser extendido para a justificar de planos de previdência pública, educação básica compulsória, ou, em contextos administrativos mais prosaicos, políticas de eficiência como não oferecer papel a vontade em repartições públicas, exigindo que as pessoas peçam exatamente a quantidade de papel que vão usar, ou cobrando uma taxa simbólica para as sacolinhas plásticas em supermercado, evitando o desperdício de um produto comprado por sacola. Sustein denomina esse tipo de estratégia como "empurrãozinho" ou to nudge na redefinição dos incentivos de escolha, em oposição à escolha direta de fins (em inglês, nudge significa dar um "pequeno empurrão" para abrir espaço em meio a multidão). "Quando estamos ocupados", afirma Sustein, "escolher não escolher pode ser a melhor opção de todas". O paternalismo delicado de Sustein é o paternalismo da inércia: as pessoas não quererem escolher o tempo todo, apenas quando sentem que é importante fazê-lo.  

Certamente libertarianos como Glen Beck exageram às ameaças vindas de estratégias como essas. Governos precisam constantemente redefinir os parâmetros de escolha disponíveis na sociedade. Na verdade eles são eleitos para isso. Além disso, o mesmo raciocínio vale para governos: preservar o status quo social é uma opção tanto quanto tentar alterá-lo.

Jeremy Waldron em uma resenha para a NY Review colocou o seguinte desafio para estratégias de tipo "empurrãozinho" na administração pública. Ao justificar explicitamente o paternalismo como política de Estado Sustein acabaria identificando autonomia com bem-estar. Ou seja, o que realmente importa é que as pessoas querem preservar ou aumentar seu bem-estar individual, não importando muito de que modo isso é feito. "A autonomia", afirma Waldron, "não é apenas uma escolha dentre outras" - escolher escolher no modelo de Sustein - "mas sim um princípio sobre como nossas preferências devem ser perseguidas".  

Waldron nos lembra que para a tradição contratualista o exercício da coerção pública deve ser justificado tanto pelo fim intencionado como pelo modo como ela trata seus cidadãos: agentes morais livres e iguais. É provável que ao ter de respeitar a exigência de igual respeito autoridades políticas percam parte de sua eficiência. Mas não podemos barganhar com a dignidade humana conclui Waldron, pelo menos não em casos fundamentais como direitos e liberdades fundamentais.

O problema não é tanto a engenharia das escolhas em si mas a tentação de justificar alterações importantes no funcionamento de regimes políticas sem levar em consideração as razões dos outros. É relativamente fácil a partir dessa perspectiva passar a caracterizar aqueles que não atendem às (nossas) expectativas da eficiência como pessoas preguiçosas ou mal intencionadas - algo a ser administrado e corrigido mas nunca respeitado.

Não é a toa que na gíria negra norte-americana nudge pode significar também uma forma discreta de se referir à presença de policiais nas redondezas.  


Agradeço a Fabio Lacerda pela discussão.


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