terça-feira, 10 de maio de 2016

O golpe está sendo televisionado (mas não no Brasil)

O movimento conservador brasileiro conhecido entre os cientistas políticos como a revolta da cashmere, devido ao seu perfil socioeconômico elitizado, tem chamado a atenção da mídia internacional. Contudo, diferentemente da cobertura oferecida pela mídia nacional, ela tem adotado, em geral, uma postura muito menos apologética à destituição da presidenta Rousseff. Tal como em qualquer mercado de informações, em todos os país existem múltiplas interpretações e posicionamentos sobre os últimos acontecimentos no Brasil, mas, surpreendentemente para um leitor brasileiro, existe certo consenso entre os principais meios de comunicação de que ou bem se trata de uma golpe suave (soft coup) ou de um descarado jogo de cena entre a elite econômica (contrário ao governo de esquerda) e a elite política (ávida por interromper as investigações contra corrupção na Petrobrás). Como afirmou recentemente o NY Times a respeito da votação do relatório do impedimento presidencial na Câmara: trata-se de um acobertamento.

Mesmo periódicos moderados ou mais conservadores, como o inglês The Economist e os norte-americanos USA TodayThe Atlantic, aventam abertamente a possibilidade de que um golpe jurídico  esteja atualmente em curso no Brasil. Sobretudo, os veículos de comunicação internacionais chamam a atenção para a atuação anti-democrática da oposição parlamentar. Em um artigo para a revista The Nation, o historiador Greg Grandin chega a chamar o impedimento de Dilma de "a revolução dos escravocratas", fazendo uma alusão ao apoio político e financeiro que as principais lideranças do golpe receberam de empresas incluídas na importante (porém pouco debatida no Brasil) "lista suja" da mão de obra escrava.





Ou seja, caso um brasileiro ou brasileira não tivesse os grupos de comunicação nacionais como sua principal fonte de informação sobre a política, provavelmente ele ou ela entenderia a destituição da presidenta eleita como uma agressão às nossas instituições políticas, exatamente como boa parte da opinião pública internacional tem interpretado os acontecimentos até o momento. O que o mundo toma como uma atrocidade política, nossa esfera pública encara como trivial.

É relativamente fácil explicar essa discrepância entre esses dois mundos. Um dos elementos mais importantes de nossa crise política, reiteradamente apresentado pela mídia internacional, é a concentração extrema dos meios de comunicação no Brasil. Ainda que esse seja um problema generalizado (basta lembrar dos Murdochs na Inglaterra e nos EUA e dos Berlusconis na Italia), nada se compara com o que temos no Brasil. A recente queda do país no índice de liberdade de imprensa, computado pela organização Reporters Without Borders (caímos da posição 58 em 2010 para 104 em 2016), foi explicada pela ONG nos seguintes termos:

[...] os meios de comunicação [brasileiros] são fortemente dependentes dos centros do poder econômico e político. A cobertura midiática da atual crise política pela qual passa o país realçou ainda mais esse problema. De maneira bem pouco sutil, os líderes da mídia nacional conclamaram o público para os ajudar a derrubar a presidente Dilma Rousseff. Os jornalistas que trabalham para esses grupos de comunicação encontram-se constantemente sujeitos à influência de interesses privados e partidários, e esse permanente conflito de interesses é, certamente, extremamente prejudicial à qualidade de sua produção jornalística. 

O caso do Grupo Globo, como foi recentemente apresentado no jornal inglês The Guardian, é o resultado mais chocante dessa injustiça na distribuição da informação: o grupo promoveu a seletividade partidária na cobertura da operação Lava Jato, deu apoio explícito às manifestações anti-governo e, adicionando insulto à injúria, apresentou em rede nacional um grampo obtido ilegalmente como parte da tentativa de criminalizar um ex-presidente da república. Recentemente, João Marinho, herdeiro do fundador do grupo e alegadamente o homem mais poderoso do Brasil, procurou defender a conduta dúbia de sua organização perante à imprensa internacional, apenas para reforçar o que todo mundo já sabia: o compromisso do Grupo Globo contra causas progressistas no país.

A falta de responsividade da imprensa brasileira ao pluralismo comunicativo necessário a uma democracia (e as vezes também aos critérios mínimos de profissionalismo) pode ser um obstáculo muito mais complicado de ser superado entre nós do que a tão alegada "falta de qualidade" de nossa classe política. (Ainda quanto a falta de responsividade, é interessante notar que os principais grupos oligopolistas da nossa mídia, incluindo o Estado de São Paulo, a editora Abril e uma neta da família Marinho, normalmente tão ávidos por virtudes republicanas em seus editoriais, estão presentes nos Panama Papers)

Segue abaixo uma pequena lista de matérias sobre a crise política brasileira em alguns dos principais meios de comunicação sul-americanos, norte-americanos e europeus (e a Al Jazeera):


- Is a coup taking place in Brazil? (The Atlantic)

- A razão pela qual os inimigos de Dilma querem seu impeachment (The Guardian)

- The Guardian view on Dilma Rousseff's impeachment (The Guardian)

- Brazil's president accuses opposition of coup-mongering (Al Jazeera)

- Is U.S. backing Rousseff's ouster in Brazil? (Democracy Now)

- Brazil is engulfed by Ruling Class Corruption - and a Dangerous Subvertion of Democracy (The Intercept)

- Winners and losers in Brazil presidential impeachment (Boston Review)

- Oligarchs handing control of Brazil to corporate elites in slow-moving coup (Salon)

- How the Rio Olympics could cement a Brazilian coup (The Nation)

- A Slaver's Coup in Brazil? (The Nation)

- Why vote to impeach Dilma Rousseff? (The Economist)

- Crisis in Brazil (London Review of Books)

- Brésil: la destitution de Dilma Rousseff est-elle un coup d'État? (La Tribune)

- Is the impeachment trial of Brazil's Dilma Rousseff a coup? (Washington Post)

- El enemigo principal está pronto para substituirla (El País)

- "El último día de mi mandato es el 31 de deciembre de 2018" (El País)

- Here's why some people think Brazil is in the middle of a "soft coup" (Washington Post)

-  Para la OEA el juicio politico contra Rousseff es ilegal (Clarín)

- No crime, no proof: Brazil's soft coup continues anyway (TeleSUR)

- Dilma Rousseff's impeachment isn't a coup, it's a cover up (NY Times)

- The ousting of Brazilian president Dilma Rousseff constitutes a coup (NY Times)

- Brazil's vice president, unpopular and under scrutiny, prepares to lead (NY Times)

- Who wins if Brazil impeaches its president? (USA Today)

- A coup is in the air (The Wire)