quinta-feira, 21 de julho de 2016

Notas de leitura sobre Michel Foucault

O cientista político Andrei Koerner (Unicamp) publicou na última edição da RBCS uma resenha sobre as obras completas de Michel Foucault, publicadas, por sua vez, no ano passado na França. Na resenha, Koerner destaca os primeiros cursos do filósofo francês no Collège de France (traduzidos para o português como Aulas sobre a vontade de saber) e, em especial, para o momento no qual Foucault inicia sua pesquisa sobre os diferentes discursos de verdade como uma forma de poder - momento conhecido entre os especialistas em Foucault como a passagem de uma arqueologia dos discursos, que teria por objetivo a crítica filosófica do saber científico, para a genealogia das práticas de poder, voltada para a explicação do surgimento de novas formas de controle e dominação social. 

Para Koerner, a mudança de perspectiva na obra de Foucault não seria resultado de um "fracasso metodológico" do enfoque arqueológico (tal como sustentam, por exemplo, Dreifuss e Rabinow), mas sim de uma nova compreensão, influenciada sobretudo pelos argumentos de Nietzsche, do papel central que as práticas sociais e instituições possuem na criação e manutenção de discursos de verdade. Ou seja, nessas aulas iniciais Foucault teria "trazido para dentro" de suas análises históricas pela primeira vez relações concretas de poder e controle social. O que resultaria alguns anos depois, especialmente a partir de Vigiar e Punir (1975), em uma das principais contribuições de Foucault para a filosofia contemporânea, a saber, que relações de poder não são apenas negativas ou repressivas, como geralmente pensado pela filosofia política convencional, mas também estratégicas e produtivas, ou seja, capazes de criar novas formas de comportamento e atitude tanto quanto formas de exclusão e opressão (ver aqui outro post sobre o assunto).

Não deixa de ser curioso, como o próprio resenhista reconhece no texto, que Foucault fosse contrário a publicação de suas obras completas após a sua morte (ocorrida em 1984). Nada mais coerente vindo de um filósofo que se esforçou mais do que nenhum outro no século XX para combater aquilo que entendia como a ilusão do indivíduo.






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As Aulas sobre a vontade de saber encontram-se em um momento de inflexão do trabalho de Foucault entreL’archéologie du savoir e Surveiller et punir. O filósofo destacou em diversas ocasiões as diferenças entre as abordagens, pois o método arqueológico se coloca no eixo da verdade e tem propósito descritivo, enquanto a genealogia se coloca no eixo do poder e com objetivo explicativo. Para Dreifuss e Rabinow (1984), a mudança resultou do fracasso metodológico da arqueologia, porque a proposta de descrição formal das práticas discursivas não compreendia as relações de poder na transformação daquelas práticas e não fundamentava o papel crítico do arqueólogo. Esse problema explicaria o hiato de seis anos entre a publicação dos dois livros, cujas diferenças resultariam da decisão de Foucault de realinhar seu projeto sobre o pensamento de Nietzsche. Daniel Defert (2014) afirma que as duas abordagens são partes complementares de um mesmo complexo de problemas sobre os quais o filósofo se debruçou desde, pelo menos, a elaboração da Histoire de la folie. O propósito nietzschiano da arqueologia é indubitável, e o termo genealogia já aparece nos trabalhos anteriores a 1975. Mas em L’ordre du discours e nas Aulas sobre a vontade de saber ele se refere à genealogia do saber, ou da verdade, complementar à análise crítica da filosofia, cujo objetivo seria fazer a história da passagem das formas distintas de saber para o discurso da verdade.

A questão fica mais clara se levarmos em conta que ele pensa as relações entre práticas discursivas e não discursivas de forma distinta nos trabalhos anteriores e posteriores ao início dos anos de 1970. Nos primeiros, Foucault tinha como foco os saberes como práticas discursivas e as instituições apareciam como a sua concreção ou como seus suportes, ao passo que as outras práticas sociais (não discursivas) apareciam como elemento geral, um dado de certa forma exterior, um contexto, cujas modificações poderiam ter consequências para os saberes. Em L’ordre du discours, as instituições não são mais expressão do discurso, mas sua condição de possibilidade, ou melhor, de seu bloqueio (Mélès 2015). É a partir de Surveiller et punir que as relações de saber e poder passam a ser a base para a análise da formação e das transformações das práticas discursivas, das técnicas de disciplina dos corpos e de toda a tecnologia de poder.

Mas até o início dos anos de 1970 Foucault adota o que ele chama de concepção jurídica e “negativa” do poder. Ela é evidente em L’ordre du discours, em que o discurso da verdade produz efeitos de exclusão, controle ou limitação sobre a produção, a circulação e a recepção dos saberes. Foucault passou a analisar a dimensão estratégica e produtiva das relações de poder quando revisou Histoire de la folie e planejou ampliar o período analisado. Propôs-se a substituir a noção de violência pela de microfísica e deslocar o foco da instituição, do modelo familiar e do aparelho de Estado para a dinâmica das táticas e das redes de poder no jogo móvel das forças (Bert 2015. A expressão mais completa da passagem para a genealogia do poder está emLa volonté de savoir (1976), em que as relações de saber e poder passam ao interior dos corpos, na maneira pela qual os agentes se constituem como indivíduos disciplinados e sujeitos de desejo (Senellart 2015).