Por Lucas Petroni
A quantidade de ódio político após as eleições do ano passado não encontra precedentes na história recente da esfera pública brasileira. De modo geral esse ódio tem autoria e destino. Ele é instanciado pela classe média-alta escolarizada dos centros urbanos. Tende a ser majoritariamente branca (ou pelo menos auto-entendida como tal), masculina e com renda familiar superior a 7 mil reais. O alvo é a política representativa de modo geral - mas não a política dos empresários, dos juízes ou da imprensa. Acima de tudo, dois objetos do ódio são detestados: o ex-presidente Lula e a líder do atual governo, a presidente duas vezes eleita democraticamente, a economista Dilma Roussef, e o seu partido político, o PT.
Alguns exemplos extremos de atos de ódios talvez sejam necessários para ilustrar o que entendemos por ódio político. Durante protestos contra o governo federal em agosto, em Jundiaí, no interior de São Paulo, a sede do partido da presidente (PT) foi
atacada com uma bomba incendiária, enquanto efígies de Lula e Dilma foram simbolicamente linchadas e enforcadas no principal viaduto da cidade. Um mês antes, a sede do Instituto Lula, equivalente à esquerda do
think tank Instituto FHC, já havia sido alvo de uma
bomba durante a madrugada -
uma ação que certamente passaria por ato de terrorismo doméstico outros países. Em novembro, manifestantes anti-Dilma acampados em frente ao Congresso Nacional
abriram fogo contra uma marcha de mulheres que lutavam contra a alteração da legislação sobre e direitos reprodutivos no país.
Podemos afirmar com razoável grau de certeza que
o uso do instrumento do impeachment neste mês pelo líder político conservador e presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB/RJ), será o gatilho para mais uma rodada de ódio e ressentimento público contra o governo eleito. Este post não pretende oferecer argumentos normativos sofisticados pelos quais poderíamos condenar essas ações. Uma pergunta mais interessante do ponto de vista teórico é:
por que eles e elas odeiam tanto?
A presidenta Dilma e o ex-presidente Lula simbolicamente linchados e enforcados em Jundiaí no interior de São Paulo (15/03)/Fabiano Maia.
A primeira maneira de tentar responder a pergunta é entender por que odiamos em geral. Segundo uma teoria psicológica influente, desenvolvida pelo psicólogo norte-americano
Robert Sternberg (Cornell), o sentimento de ódio é composto por várias emoções diferentes que, a partir do momento em que são rotinizadas em nossa socialização, passam a fazer parte de nossa autoimagem enquanto sujeitos morais (um bom resumo da teoria pode se encontrado
aqui). A teoria conhecida como "teoria do ódio em dois níveis" (
duplex theory) é fundada em três emoções negativas elementares: (i) repulsa, ou negação de intimidade com o objeto odiado, (ii) raiva, ou emoção exasperada diante do objeto odiado e (iii) obsessão, ou comprometimento (de ódio) com o objeto odiado. Cada uma delas caracterizaria para o psicólogo um tipo
instintivo - e esse ponto é importante - de ódio aos quais todos nós estamos sujeitos: (i) o "ódio repulsivo" da negação da intimidade, (ii) o "ódio quente" da raiva e (iii) o "ódio obsessivo" daqueles fixados no objeto odiado.
Os diferentes personagens do teatro do ódio político brasileiro ilustram facilmente a tripartição de Sternberg. Em primeiro lugar temos o ódio repulsivo contra o governo presente nos jantares de família em Pinheiros (Barra da Tijuca, Boa Viagem, etc.). Trata-se de um ódio repulsivo não apenas contra o PT mas também contra a classe política em geral (quantos entusiastas de Eduardo Cunha, de fato, o convidariam para um jantar em suas próprias casas?). Em seguida, temos o ódio quente dos motoristas de taxi e donos de bar, com ideias altamente elaboradas sobre como poderíamos utilizar de violência hipotética contra os "comunistas" - interessante notar que o próprio uso do fogo é bastante comum nessas elocubrações. Finalmente, o ódio paranóico de alguns analistas políticos contra com a figura dos dois últimos presidentes do país parece representar bem o ódio obsessivo de Sternberg. Na maior parte desses analistas, por exemplo, existe um comprometimento explícito, e de conhecimento comum, em odiar publicamente uma parte do quadro político brasileiro sem se preocupar com isso em parecer ridículo frente a sua própria identidade profissional.
Os exemplos são simplificações, é claro. Mas nos ajudam a entender uma dimensão importante do ódio: sua inevitabilidade. Enquanto uma emoção, não poderíamos ser pessoas se não pudéssemos sentir cada uma dessas três formas de ódio em nosso dia a dia. Na verdade, formas instintivas de ódio não apenas são impossíveis de serem suprimidas, mas podem ser potencialmente produtivas para a política democrática. Pensemos, por exemplo, nos perigos inversos da apatia política e do desprezo, uma emoção radicalmente contrária ao ódio, para a manutenção de instituições democráticas. Quando desprezamos alguém tratamos o outro com indiferença, como alguém não-importante ou irrelevante para as nossas vidas. Nesse sentido odiar também é uma forma de engajamento.
O problema é que a teoria de Sternberg não termina por ai - assim como o ódio político instintivo e anedótico também não para por ai. Estruturas emocionais de ódio possuem uma segunda camada muito mais destrutiva do que a primeira. Quem odeia necessariamente passa a produzir narrativas sobre o objeto odiado. Quando nos
socializamos pelo ódio passamos a construir caricaturas moralizantes sobre o outro. A razão para isso é simples: precisamos explicar para nossos amigos, filhas, assinantes assíduos, clientes, passageiros de taxi mas, principalmente,
para nós mesmos por que afinal odiamos tanto. Caso o outro fosse digno de desprezo ou ainda seu mal ainda que reconhecido fosse passível de correção ou mudança, seria irracional odiarmos. Para funcionarem tais narrativas precisam, invariavelmente, caracterizar o odiado outro não apenas como culpados, perigosos e moralmente repulsivos mas, principalmente, como inferiores em condição moral. Como
descreve Sternberg, "tais narrativas representam seus alvos como inimigos de Deus, vermes, estupradores, selvagens, pessoas gananciosas e sedentas pelo poder [...] a propaganda [baseada nesses narrativas] leva as pessoas a internalizar a imagem de seus alvos como tal" o que, por sua vez, reforça o sentimento sempre latente de repulsa, raiva e obsessão à que estamos sujeitos. Analiticamente, essas narrativas possuem a forma "o sujeito
x ou grupo
y como um todo representam o mal e
não há outro jeito de solucionarmos esse problema se não o aniquilamento". Podemos assim racionalizar ações desrespeitosas, violentas ou criminosas, na medida que retiramos a responsabilização moral do outro e absolvemos nossas ações extremas como duras, porém necessárias dado o terrível estado de coisas no qual nos encontramos. O outro é
menos do que um igual em respeito e consideração.
Para além das sutilezas da teoria psicológica do ódio, duas características do estruturais do ódio parecem ser fundamentais para entendermos o ódio político. Em primeiro lugar, narrativas moralizantes de ódio são totalizantes, elas incidem sobre sujeitos ou grupos como um todo e não apenas sobre ações. Dizemos normalmente que o ódio é centrado em pessoas enquanto a indignação é centrada em ações. Ficamos indignados com algo errado ou nos ressentimos em relação à uma injustiça. Mas quando odiamos, odiamos alguém, odiamos sujeitos de intenção e não os seus atos. Em segundo lugar, narrativas de ódio são deterministas. Elas não permitem responsabilização - diferente da indignação - e oscilam entre a retribuição emocional egoísta e o aniquilamento preventivo. O outro odiado está, por exemplo, aquém do respeito entre iguais. Ressentimos as atitudes erradas de nossos iguais, de quem amamos, mas quando odiamos, a própria ideia de agência moral está ausente no outro. Ele precisa ser destruído - ou linchado à moda da elite branca de Jundiaí.
Entretanto, a pergunta ainda continua: por que eles odeiam
tanto? A resposta para essa pergunta é bem mais complicada do que poderíamos esperar a primeira vista. Ao olharmos para as convicções das mulheres e homens que tem odiado nos últimos meses encontramos alguns dados difíceis de serem interpretados com exatidão.
Segundo um levantamento realizado pelo grupo de pesquisadores Pablo Ortellado (USP), Esther Solano (Unifesp) e Lucia Nader (Open Society), mas infelizmente pouco comentado pela mídia (ver uma
excessão aqui), algumas das convicções morais dos manifestantes anti-governo federal são bem diferentes dos princípios de suas lideranças mais expressivas, seja a dos
jovens libertarianos, seja os grupos conservadores sustentados por
think tanks pró-livre-mercado.
Por um lado, como era natural esperar, mais de
95% dos entrevistados concordaram que paga-se muito imposto no Brasil e
92% concordaram que deveríamos diminuir os impostos no país. Por outro, surpreendentes
88% dos entrevistados afirmaram que o Estado deve fornecer saúde para todos os brasileiros, subindo para
92% quando se trata de educação. Mais de
80% afirmaram, nos dois casos, que tais serviços além de universais e públicos deveriam ser também gratuitos. Mesmo afirmações radicais para parâmetros da social-democracia européia, como a gratuidade do sistema de transporte público, foram apoiada por
21% dos entrevistados e aceita em parte (mesmo que, nesse caso, a resposta não faça sentido do ponto de vista empírico) por outros
30%. Para o desespero dos apoiadores dos irmãos Koch, mais de
73% dos entrevistados são contrários ao financiamento empresarial de campanhas políticas (e, presume-se, apoiam alguma forma de financiamento público) e o ex-senador Eduardo Suplicy (PT/SP) foi considerado uma figura pública mais honesta do que o próprio candidato conservador Aécio Neves. Com sua defesa da
renda mínima incondicional de cidadania, Suplicy talvez seja o político brasileiro com a agenda política mais radical sobre justiça distributiva atualmente em atividade no Brasil.
O radicalismo apresentado pelos entrevistados contra os impostos não permite nem mesmo a possibilidade de reestruturação do sistema tributário (50% contrários) e é, portanto, totalmente contraditório com a demanda socialista por serviços públicos de qualidade e a suposição moral de que cabe ao Estado solucionar problemas de justiça social. Muito pior, os próprios agentes políticos alvos dos protestos não apenas representam as principais forças políticas no Brasil em busca dessas demandas como foram razoavelmente bem-sucedidos em expandir a oferta de serviço público e, principalmente, incluir a base da pirâmide social brasileira no mercado e no sistema de serviços públicos. Basta reparar, além disso que esse conjunto de suposições socialistas é inimaginável em países com um sistema político mais conservador como os EUA. Mesmo entre os democratas não é seguro encontrar tanta convicção estatista assim.
Trata-se de um contra-senso não apenas do ponto de vista político mas lógico. A conta não fecha. Sem uma estrutura de renda equitativa é simplesmente impossível suprir a demanda política dos revoltados. Algumas hipóteses forma sugeridas por cientistas políticos e encontram corroboração parcial no levantamento. A cultura brasileira seria estatista: tratar-se-ia apenas de um problema de boa administração de recursos públicos e não de equidade. Ou ainda, que o Estado em si não é um problema, mas apenas as atuais instituições políticas. Essas explicações seriam corroboradas pelo número relativamente elevado de entrevistados que concordaram que a "solução para o país" seria entregar o poder "para um político honesto" (64%) ou "para um juiz" (43%).
São boas hipóteses de trabalho. Precisariam ser exploradas. Além disso, o levantamento é extremamente limitado e não nos permite fazer nenhum tipo de inferência explicativa mais robusta. Estamos no reino da especulação científica. O número de entrevistados é muito reduzido e, sobretudo, excessivamente homogêneo.
Entretanto, para os efeitos da nossa discussão sobre narrativas de ódio, o levantamento revela uma importante fonte de dissonância cognitiva entre parte dos odiadores.
Narrativas totalizantes direcionadas contra um grupo (e não contra decisões, princípios ou ideias) e que retiram do outro qualquer possibilidade de responsabilização moral (aniquilar e não exigir uma resposta), permite que possamos nos isentar de oferecer boas razões para aquilo que queremos. Nesse caso o desejo em questão parece claro mas moralmente injustificável: os agentes querem viver em uma
sociedade de sobreposição de vantagens, na qual a renda é distribuída de modo extremamente injusto, e os serviços públicos, ainda que existentes e de qualidade, não se encontram ao alcance dos outros. Uma sociedade socialmente pacífica, com excelente administração pública, mas sem distribuição de renda ou desconcentração de propriedade. Uma sociedade moderna, mas com um exército de reserva de trabalhadores sem qualificação prontos a aceitarem relações de dependência. "Eu quero um sistema público eficiente para mim (ou para nós)" e
esse modelo é facilmente sustentável com redução de impostos.
O problema é que em uma democracia a cidadania exige uma forma de respeito mútuo entre iguais que nos obriga a fundamentar nossas posições. Uma exigência que não pode ser infringida sem colocar em risco o próprio fundamento das instituições políticas. Esse dever de civilidade exige que apresentemos razões para as nossas ações e reivindicações. Razões que atendam a critérios mínimos de coerência e que possam ser, pelo menos, entendidas por aqueles que não partilham necessariamente os mesmos valores ou trajetórias de vida. O desejo de manutenção de privilégios não é um argumento justificável. Uma concepção implausível de organização social não é uma boa razão.
A má notícia para os odiadores é que engajar-se no mundo político é apenas o primeiro passo. É preciso, além disso, entender o que reivindicamos e as consequências de nossas reivindicações tanto no longo-prazo quanto seu sobre os outros. Essa é uma lição, por exemplo, que a elite de São Paulo, linchadores ou não, terão que aprende. E baseado no péssimo histórico democrático do estado, talvez pela primeira vez.
Agradeço a Renato Francisquini e a Sérgio Simoni pela discussão.