Marta Arretche (USP), cientista político e coordenadora do Centro de Estudos sobre a Metrópole (CEM), foi entrevistada pelo jornal El País a respeito dos impactos da retração econômica no processo histórico de desigualdade social no Brasil. Segundo a pesquisadora, nada nos garante que a queda do PIB terá como consequência necessária o aumento radical da diferença entre a renda do trabalho não qualificado e o restante da sociedade. Se por um lado o desemprego prejudica o trabalhador ou trabalhadora com baixa escolaridade, por outro, o país conta hoje, segundo Arretche, com uma rede de proteção social até então inédita em nossa história política. Além disso, duas das principais ferramentas de combate à desigualdade econômica nas últimas décadas - aumento real do salário mínimo e os programas de combate a pobreza extrema - permanecem, até o momento, em funcionamento. Em resumo: ainda que sempre tentadoras, inferências fáceis sobre o futuro precisam ser temperadas com doses fartas de metodologia empírica e rigor analítico antes de serem vendidas como conhecimento.
Fortaleza/CE (autor desconhecido)
Contudo, alerta Arretche, não devemos subestimar o papel da "superposição de vantagens" - quando os indivíduos com maior renda e riqueza possuem também a melhor escolaridade e acesso privilegiado aos serviços públicos - na organização da política democrática no país. Isto é, pobreza no Brasil não é apenas falta de renda mas também a falta de acesso à infraestrutura básica de serviços públicos enquanto riqueza, por sua vez, significa além de dinheiro, acesso privilegiado a esses mesmos serviços. Desigualdade econômica e exclusão social andam lado à lado. O fato de sermos uma das democracias com maior concentração de renda do mundo faz com que, de um lado, o pagamento por serviços básicos seja um desafio intransponível para um número enorme de cidadãos e, de outro, faz com que os cidadãos privilegiados pela superposição de vantagens resistam ao custeio do processo de inclusão por meio do Estado, uma vez que já se encontram "incluídos" nos benefícios da cooperação social.
Marta Arretche organizou recentemente o livro Trajetórias da Desigualdade(UNESP, 2015) (veja aqui uma entrevista com a autora), no qual diferentes dimensões da desigualdade no Brasil são sistematizadas e apresentadas por diferentes grupos de especialistas. A obra é considerada, com toda justiça, uma das publicações de ciência social mais importantes das últimas décadas.
[...]
P. Por que o acesso aos serviços é importante para a redução da desigualdade?
R. Um dos componentes centrais do bem-estar dos indivíduos é ter acesso a serviços básicos. Lamentavelmente, o país na década de 80, e em particular no início do processo de redemocratização, tinha indicadores sociais muito ruins. Os índices de cobertura de serviços de saúde, educação, saneamento básico, água, energia elétrica, eram piores do que nos outros países da América Latina menos ricos do que o Brasil em termos de PIB per capta e renda per capta. Isso significa que a tarefa para as gerações que governaram o país sob o regime democrático era muito grande porque era um país caracterizado não apenas por uma intensa desigualdade entre indivíduos, mas também por uma elevada desigualdade entre regiões e por uma superposição de vantagens entre indivíduos. Em 1980, 80% dos 5% mais pobres não tinham nenhum desses serviços. Nós chamamos de superposição de vantagens, ou seja, aquele que tem melhor renda, também tem a melhor escolaridade, melhor acesso a serviços e, portanto, tem uma cesta de condições de vida bastante completa do ponto de vista das condições básicas de existência. Ao passo que os indivíduos nos estratos inferiores de renda também não tinham acesso a água, esgoto, energia. Eles tinham uma superexposição de desvantagens. O que aconteceu no processo de democratização brasileiro, que é parte do problema que estamos vivendo hoje, é um progressivo processo de inclusão dos muito pobres a esses serviços muito essenciais e muito básicos.
P. E por que isso é parte do problema vivido hoje?
R. Porque isso tem um custo. Os 20% mais pobres têm uma renda muito baixa e grande parte do que eles recebem tem que ser subsidiado por diversos mecanismos, seja pelo tesouro, seja por tarifas cruzadas nas diferentes políticas... Isso tem um custo fiscal. Nada disso sai de graça, é financiado. E a população com incapacidade de pagamentos de serviços básicos é muito numerosa no Brasil, o que é outra forma de dizer que a concentração da renda é muito alta. Alguém tem que pagar por isso. Se não é possível aumentar impostos, porque há revoltas sistemáticas contra a taxação no Brasil, o resultado é um déficit fiscal. Se você aumenta o acesso a serviços para os muitos pobres, e os muito pobres são um contingente expressivo da população, e não é possível aumentar impostos porque há uma barreira para isso e as outras soluções possíveis, que seriam o endividamento, a inflação ou os recursos do petróleo, estão fechadas, o déficit fiscal será uma consequência.
De modo otimista, poderíamos esperar que um dos lados positivos da atual crise fiscal brasileira seria o estimulo na nossa esfera pública de uma discussão mais inteligente sobre os futuros da organização econômica do país. Paradoxalmente, contudo, qualquer pessoa que já tenha tentado enveredar pelo debate rapidamente descobrirá que a imagem da crise reapresentada diariamente nos meios de comunicação - com algumas excessões - é, ao mesmo tempo, invariável e inquestionável: estaríamos pagando o preço dos "erros" da política econômica do primeiro governo Dilma, voltada para o estímulo setorial, concessão de crédito barato e tentativa de diminuição da taxa de juros. Em um interessante artigo para a plataforma Outras Palavras, o sociólogo Felipe Calabrez (USP/FGV) analisa essa imagem recebida da crise, chamando a atenção para o problema pouco reconhecido (especialmente pelos economistas) das narrativas moralizantes presentes em nosso vocabulário econômico.
A imagem, ou "mito", das decisões econômicas equivocadas seria problemática segundo o pesquisador por duas razões. Em primeiro lugar, porque ela tende a misturar economia e política de modo ingênuo, aceitando como postulado que decisões macroeconômicas não acarretam conflitos de interesses, por vezes insolúveis, e que diferentes interpretações econômicas possuem vínculos sociais determinados com esses interesses. Tratar-se-ia de um erro ou de uma incompetência administrativa do governo ao invés de uma tentativa deliberada (acertada ou não, pode-se discutir) de solucionar um dos problemas macroeconômicos mais urgentes do país. Além disso, e talvez mais importante para o debate político atual, a visão recebida parece assumir que, em geral, decisões de política econômica são de natureza técnica e que, portanto, dependem de conhecimento acadêmico ou científico muito mais do que da difícil tarefa de priorização de valores exteriores ao funcionamento da economia. Tal como, por exemplo, a aparente necessidade de mantermos uma das taxas de juros mais elevadas do mundo - entendida pela visão recebida como a consequência, e não a causa, da atual crise fiscal.
Não estou afirmando [...] que não se possa imputar erros às decisões de política econômica tomadas por Dilma em seu primeiro mandato. Parece plausível concluir que houve um conjunto de equívocos, de medidas mal calibradas e que não surtiram os efeitos calculados. [N]o entanto, que o que está verdadeiramente em jogo não diz respeito a “equívocos de política econômica”, ainda que eles possam ter ocorrido. O ponto que levanto é o seguinte: Acertadas ou equivocadas – de um ponto de vista de sua adequação aos fins almejados – e bem ou mal sucedidas – do ponto de vista de seus resultados observados ex-post – as medidas do primeiro governo Dilma desencadearam uma forte reação por parte de um grupo de economistas de oposição. [...] De acordo com essa visão, heterodoxia e desenvolvimentismo seriam ideologias, algo que encobre a visão correta da realidade. Seriam, portanto, equívocos.[...]
O debate sobre as “pedaladas fiscais” [por exemplo] elege como problema de primeira gravidade a “operação de crédito”, isto é, o repasse da CEF aos beneficiários antes do recebimento do dinheiro pelo Tesouro. É este o crime que o Tribunal de Contas da União (TCU) imputa ao governo. A quem interessa enquadrar o governo no crime de responsabilidade fiscal? Dentro da hierarquia de valores contida nesse debate, um eventual “não pagamento” do Bolsa Família a seus beneficiários tem peso zero. Nesse debate, o mais importante de tudo é o resultado primário das contas do governo, para onde os analistas de risco e gestores do dinheiro graúdo olham incessantemente. E é a narrativa destes últimos que encontra acolhida em todos os grandes jornais.
O exemplo acima, embora controverso, carrega aquilo que seria comum nas discussões mais gerais sobre política econômica. Por trás das visões sobre política “errada” e “correta”, há implícita uma definição de prioridades e valores. Isto fica claro mais por conta do que os discursos omitem do que daquilo que revelam. Os “economistas de mercado”, sempre chamados a dar seus pareceres em jornais e telejornais, falam sempre em excesso de gastos, mas costumam omitir a chamada componente financeira desses gastos – isto é, a conta de juros. Esta, quando mencionada, é sempre apresentada como consequência do excesso de gastos, nunca como parte dele. O próprio orçamento – um assunto eminentemente político – aparece nos discursos como uma questão técnica e de “responsabilidade”. Por trás de uma discussão fiscalista está, sem dúvida, uma questão de projeto de país e de prioridades a serem atendidas. E isso passa também pela questão do remanejamento do orçamento público.
Entrevistado pelo jornal francês Le Monde, Jürgen Habermas afirmou que a atual tentativa de mudança constitucional na França, na qual o governo socialista de Hollande pretende prorrogar o Estado de emergência no país por três meses, devido aos atentados da última sexta-feira 13, poderia deteriorar a vida política francesa tanto quanto o Patriotic Act o teria feito nos EUA. O Patriotic Act representou não apenas uma das principais ameaças às liberdades civis da história constitucional norte-americana como, segundo Habermas, teria aberto a possibilidade para figuras "neo-nacionalistas", como os pré-candidatos republicanos Donald Trump e Ted Cruz, de chegarem ao poder. Habermas também discute a responsabilidade histórica européia em relação ao colonialismo no Oriente Médio. A entrevista original em francês pode ser encontrada aqui. Ver abaixo a versão em inglês publicada pela Social Europe:
President Hollande spoke of the need for constitutional changes to amend the processes of the state of emergency (which go back as far as the Algerian war). It’s a question of defining a “state of war” suited to a situation that is neither a “state of siege” (in order to overcome a rebellion) nor Article 16 of the Constitution handing full powers to the President of the Republic – employed once by General de Gaulle at the time of the ‘generals’ putsch’ in April 1961. What’s your take on this discussion? More generally, do you think an amendment to the Constitution is a proper response to the attacks of November 13?
Basically, it seems to me to be sensible to adapt the two relevant paragraphs on emergency in the French Constitution to today’s situation. The fact that this is now on the agenda is clearly a consequence of the fact that the President called a state of emergency after the shocking events and wants to extend it for three months. I cannot judge the reasons why this policy is necessary; I’m no security expert. But, seen from afar, it looks like a symbolic act on the part of the government to react to the mood of the country – and probably in an appropriate manner. In Germany this warlike rhetoric of the French President – driven by domestic politics – is met with significant reservations.
President Hollande has also decided to increase the level of French intervention in Syria, notably by bombing Raqqa, the “capital” of Daesh (ISIS). What do you think of such interventionism in general?
This is not a new political decision but a stepping up of the French air force’s operations that are long under way. Of course, experts agree that such a remarkable phenomenon as Daesh – a mixture of a “Caliphate” within undefined territorial borders and of globally deployed killer squads – cannot simply be defeated from the air. But an intervention by American and European ground troops would not just be unrealistic but, above all, unwise. It’s of no help at all bypassing local political forces. Obama has learned the lesson of the failed interventions of his predecessor and, at the last G20 summit in Turkey, made an interesting remark. He pointed to the fact that foreign troops can no longer guarantee the results of their military successes post-withdrawal. What’s more, you can’t cut the ground from under ISIS’s feet through military means alone. The experts agree on that too.
However much we look on these barbarians as enemies and must oppose them ruthlessly, we simply cannot be allowed to deceive ourselves over the complex reasons for this barbarism if we want to succeed in the long term. Given the state of mind of a deeply wounded French nation, a Europe in turmoil and a highly insecure western civilisation, this may not be the right time to recall the context which lies behind this explosive and, for now, uncontrolled potential for conflict in the Middle east – from Afghanistan and Iran to Saudi Arabia, Egypt and the Sudan.
Let’s just cast a glance back at the era since the Suez crisis of 1956. A policy based almost exclusively on geo-political and economic interests of the USA, Europe and Russia has run up against an artificial and tattered legacy of the colonial period in this fragile region of the world; these powers have exploited local conflicts for their own ends and contributed nothing towards stabilising the situation. It’s common knowledge that the conflicts between Sunnis and Shias, the main source of energy for ISIS’s fundamentalist drive, erupted only as a consequence of George W. Bush’s illegal (in international law) intervention. Barriers in the faltering process of modernisation in these societies may also be rooted in distinctive aspects of a proud Arab culture. But the West’s policy is far from innocent when it comes to the lack of any future prospects and hopelessness felt by young generations seeking opportunities to build a better life on their own and be recognised for doing so. And, when all political efforts fail, become radicalised in order to regain their self-respect via sociopathic routes.
A similarly desperate psycho-dynamic of lack of self-respect seems to make isolated petty criminals, who come from our European migrant milieus, into the perverse heroes of remote-controlled killer commandos. Early journalistic research into the background and CVs of the November 13 terrorists would suggest this is the case. Along with the causal chain leading to Syria there’s another one drawing our attention to the failed efforts to integrate in the social cauldrons of our big cities.
At the time of the 9/11 attacks, a certain number of intellectuals around the world, including Jacques Derrida and yourself, worried at the removal of civil liberties threatened by the pressures of the “war on terror” and recourse to ideas such as the “clash of civilisations” or “hoodlum states”. This diagnosis has been largely confirmed by the use of torture, NSA controls, arbitrary detentions in Guantanamo etc. Is a fight against terrorism that keeps the democratic public space intact possible or even thinkable in your view? And in what conditions?
Looking back at 9/11 we, like many of our American friends, must note that Bush’s, Cheney’s and Rumsfeld’s “War on Terror” has harmed the political and mental state of American society. The Patriot Act, swiftly enacted then by Congress and still in force, undermines basic civil rights. The same holds for the fatal extension of the concept of “enemy combatant” that has legitimised Guantanamo and other crimes and has only been withdrawn from circulation by the Obama government. Without this unwise reaction to what had been until then an unimaginable attack on the World Trade Center, the spreading of the kind of mentality that today signs up in agreement with such an unspeakable character as Donald Trump, the Republican presidential contender, could scarcely be imagined.
That’s no reply to your question. But can we not – like the Norwegians in 2011 after the horrific attack on the island of Utoya – resist our first reflex of turning back on ourselves in face of the incomprehensible alien and of resorting to aggression against the “internal enemies” (Carl Schmitt)? I’m confident that the French nation will set an example as it did after the attack on Charlie Hebdo. There’s no need here for repulsing a fictive danger such as the looming “subjection” to an alien culture. The danger is much more concrete. Civil society must beware of sacrificing individual liberty, tolerance towards the diversity of life-styles and readiness to take on the perspective of the other – all these democratic virtues of an open society – on the altar of an imaginary stage of security that we cannot reach anyway.
Given the fortified Front National that’s easier said than done. But there are good reasons over and above exhortations. The most important is staring us in the face: prejudice, mistrust and seclusion of Islam, fear of it and a preventive fight against it, are also down to sheer projection. For jihadi fundamentalism expresses itself in religious codes but it is no religion. Under other circumstances it could use any other religious language, indeed any other ideology to hand, that promises redemptive justice. The world’s great religions have roots going back a long way. On the other hand, jihadism is a thoroughly modern form of reaction to uprooted ways of life. Of course, a prophylactic pointer to the background of failed social integration or faltering social modernisation does not absolve the perpetrators of their personal guilt.
Germany’s attitude towards the inflow of refugees came as a positive surprise despite a recent rowing back. Do you think that the terrorist wave threatens to change this state of mind (isn’t it already being said that quite a few Islamists tried to sneak in via the crowds of refugees)?
I hope not. We’re all sitting in the same boat. Both, the terror and the refugee crisis, are – perhaps for the last time – dramatic challenges for a much closer sense of co-operation and solidarity than anything European nations, even those tied up to one another in the currency union, have so far managed to achieve.
This interview was conducted by Nicolas Weill and was first published by Le Monde in French. It was translated and adapted for Social Europe with permission of the interviewee.
O líder nas pesquisas à indicação republicana para a corrida presidencial nos EUA, o empresário Donald Trump, descreveu a si mesmo como um "Ernest Hemingway de 140 caracteres". Ainda que a comparação seja injusta com o autor de Paris é Uma Festa, ela faz sentido em seu estilo peculiar de fazer campanha: uma mistura estranha, as vezes engraçada, as vezes assustadora, de narcisismo e maestria no uso da mídia para seus propósitos. Nos últimos seis meses, Trump tem utilizado sua conta pessoal do Twitter para dominar o debate político do país. Ele é o grande representante da política de 146 caracteres.
Para dar uma ideia das razões pelas quais o Twitter de Trump é tão controverso, segue uma lista de algumas de suas declarações "extravagantes", a maioria delas escritas, repercutidas e, sobretudo, debatidas através das mídias sociais norte-americanas.
(Credit: AP/Chris Pizzello)
Até agora Trump já afirmou que:
- imigrantes mexicanos são "criminosos, traficantes, estupradores, etc." (link);
- é preciso construir uma muralha para separar os EUA do México; e que o México deveria pagar por isso (link);
- é preciso bombardear "os campos de petróleo do ISIS", mas que não se deve falar isso publicamente pois eles poderiam antecipar essa estratégia (link);
- que ele irá aumentar os impostos sobre os ricos que não contribuem para a grandeza da America [para completo desespero dos Republicanos] (link);
- que o governo dos EUA deveria colocar os refugiados sírios em campos de concentração no país ou manda-los de volta para a Síria, ou as duas coisas (link);
- que o governo dos EUA deveria fechar as mesquitas no país (link);
- que muçulmanos em geral deveriam ser obrigados a se registrar em uma "lista" (link);
- que ele viu com os próprios olhos "pessoas em Nova Jersey comemorando a queda do World Trade Center" (link);
Certamente a política de Trump é risível - pelo menos para aqueles que a vêem de fora. Na maior parte das vezes é possível perceber que ele não consegue sustentar mais do que dois minutos (ou 146 caracteres) de debate sobre um assunto sem apelar para as suas frases de efeito, sendo a principal delas seu slogan de campanha "a América será grande de novo" (America will be great again). Isso não significa necessariamente que o candidato Trump se saia mal em frente às câmaras. Ao contrário. Ao lado de seus principais oponentes republicanos, como Carson e Rubio, Trump se destaca. O motivo disso não é difícil de ser entendido. Tal como muito do que estamos acostumados a assistir sob o rótulo de análises ou painéis de políticas na TV à cabo no Brasil, a coisa toda parece política a primeira vista, mas na verdade não passa de show business. E quanto a isso Trump é um gênio.
O establishment cultural nos EUA, incluindo até mesmo a ala conservadora da mídia (mas não a ultraconservadora Fox News, é preciso ressaltar), tende a desprezar a candidatura de Trump. Ora visto como um simples problema de ego, ora como um efeito perverso da fusão entre política de massa e mídia, a candidatura de Trump é catastrófica para quase todo mundo - menos é claro para os seus eleitores. Para alguns ele ocuparia o clássico papel do demagogo (ver aqui um excelente ensaio do filósofo Jason Stanley sobre o assunto), para outros, seria apenas mais uma consequência da precariedade cultural do eleitor médio norte-americano. Uma ala do partido Republicano chegou ao ponto de se comprometer publicamente (desesperadamente) a tentar acabar com a sua candidatura temendo os efeitos adversos nas eleições do ano que vem. Todavia, não se trata de uma tarefa fácil derrubar o empresário: além das pesquisas de intenção de voto Trump controla também sua própria fonte de financiamento ficando imune à influência das fontes de recursos republicanas tradicionais como, por exemplo, os irmãos Koch.
Cada uma dessas reações tem sua parcela de verdade. Contudo, duas consequências mais gerais parecem ter sido despertadas pelo fenômeno Trump. Consequências essas relacionadas não à pessoa Trump mas àquilo que podemos chamar - apenas porque não temos um nome melhor - de trumpismo na cultura política dos EUA.
A primeira delas diz respeito ao papel das mídias sociais e das celebridades de modo geral na política. Quando começaram a ser mais disseminadas nos EUA, existia uma grande expectativa em relação ao seu potencial democrático para o debate político. Imaginava-se, algo ingenuamente talvez, que elas representavam uma nova forma de esfera pública ou que poderiam trazer o eleitorado para dentro do debate. Segundo esse raciocínio, a eleição de Obama teria sido um exemplo extremamente bem sucedido da diferença entre mobilização on-line versus mobilização partidária convencional. Com Trump, Tea Party e sua fiel horda de "revoltados on-line" podemos concluir agora que no cenário mais otimista a introdução de novos meios de comunicação não é nem intrinsecamente melhor nem intrinsicamente pior para a qualidade geral do debate. Esfera pública e inclusão estão lá, é verdade, mas não acredito que tenha sido esse tipo de participação que os mais otimistas tinham em mente. Essa é uma conclusão também válida para o Brasil. A quantidade de ódio racial e político nas nossas mídias sociais veio para ficar.
Para colocar a primeira consequência em apenas uma frase: se a Islândia foi capaz de usar o facebook para reformar a sua constituição, esse fato diz muito mais sobre a Islândia do que sobre o facebook.
A segunda novidade, talvez mais interessante do ponto de vista da ciência política, é a aparente contradição entre a radicalização conservadora do partido republicano, de um lado, e a precarização da classe trabalhadora tradicional nos EUA, de outro. Os estados do sul e do meio-oeste dependem cada vez mais de ajuda federal para manter seus programas sociais e lutar contra o desemprego. O Kentucky, para ficarmos com um ótimo exemplo, recentemente elegeu um governador republicano famoso pelo seu fervor contra o Obamacare sendo, ao mesmo tempo, uma das regiões do país mais dependentes de programas de saúde sustentados pelo Estado. O azul (democrata) está desaparecendo no interior do país justamente nos estados mais pobres, precarizados e dependente da ajuda federal e, por conta disso, teoricamente mais suscetíveis à agenda política democrata, favorável por sua vez a expansão do regime de bem-estar no país (ver o mapa abaixo).
Não estaríamos diante de um paradoxo? Afinal, se o eleitor é racional não deveríamos esperar nesses casos o voto em políticos contrários à redistribuição. A hipótese da loucura não é impossível. Talvez esses eleitores não entendam exatamente o funcionamento da economia ou eles próprios não queiram, contra seus próprios interesses materiais imediatos, identificarem-se como "perdedores" do jogo econômico (para usarmos uma metáfora partilhada tanto pela América profunda como pelos traders do mercado financeiro). O "trumpismo" nos EUA seria explicado, segundo essa hipótese, por um eleitorado composto por trabalhadores brancos não-qualificados cada vez mais "assustados e ressentidos" com a perda de seu protagonismo econômico e político no país e que estariam dispostos a votar contra seus próprios interesses econômicos em nome dos valores norte-americanos. Trump seria tão lunático quanto seu próprio eleitorado.
Como disse, é possível. Mas um outra hipótese um pouco mais complexa que a primeira tem sido apresentada com certo sucesso. A explicação alternativa procura solucionar o mistério a partir da intersecção de dois mecanismos: (i) o empobrecimento relativo do trabalhador médio e (ii) o funcionamento do sistema eleitoral do país. Ainda que classe trabalhadora branca esteja empobrecida, ela ainda é relativamente menos empobrecida que a classe trabalhadora não-branca. A verdade é que os eleitores dependentes de proteção social nos Estados controlados pelos republicanos simplesmente não estão votando.
Segundo uma pesquisa realizada pelo Pew Research Center em 2014, é possível notar uma diferença importante nesses estados entre eleitores e não-eleitores em potencial em relação as opiniões sobre o papel do Estado na economia. Em relação à condição financeira pessoal, por exemplo, entre aqueles entrevistados que afirmaram que tinham intenção de votar nas próximas eleições apenas 19% possuía renda inferior à 30 mil dólares anuais, contra 46% daqueles que afirmaram não ter intenção de votar nas próximas eleições. Apenas 28% de potenciais eleitores afirmaram não tinham uma poupança para a aposentadoria, contra impressionantes 63% dos não-eleitores em potencial. Finalmente, 60% dos futuros eleitores concordaram com a afirmação "o governo é sempre mais ineficiente e incompetente", contra 54% dos não-eleitores.
Ou seja, talvez quem esteja votando nesses estados sejam, de fato, menos desfavorecidos do que aqueles que não votam, e o voto ultra-conservador poderia ser explicado como uma mistura de proteção contra redistribuição, de um lado, e punição para aqueles que se encontram imediatamente na classe abaixo e que, por sua vez, não costumam participar das eleições nos EUA. Como afirma o jornalista Alec MacGillis em uma excelente reportagem sobre o voto conservador nos EUA, "eleitores [em estados economicamente prejudicados pela recessão] estão optando conscientemente contra a agenda econômica democrata, entendida como ruim para eles e boa [apenas] para as outras pessoas - especificamente para aqueles que recebem dinheiro público não-merecido e que vivem por perto".
A principal razão pela qual a participação eleitoral entre os mais pobres nos EUA é tão baixa pode ser explicada em parte pelo modo como o sistema eleitoral distribui os custos da participação: nos EUA, ao contrário do Brasil por exemplo, o alistamento eleitoral não é compulsório e cabe a cada eleitor não apenas ir votar no dia do pleito (que nem sempre é no domingo) como se registrar como eleitor antes das eleições começarem. O custo informacional e financeiro, especialmente no casos de trabalhadores não-qualificados que precisam deixar de trabalhar para votar, aliados a notória dificuldade do sistema eleitoral indireto e a dificuldade de parte do eleitorado com a língua inglesa, acabam distribuindo de modo assimétrico o ônus da participação. E, o que é mais importante no caso que estamos tratando aqui, o tornam mais oneroso especialmente nos nos estados mais pobres.
Talvez seja injusto culpar apenas Trump pelo aumento do chauvinismo nos EUA. Talvez o próprio sistema institucional esteja favorecendo uma espécie de contra-reforma política vis à vis a crescente mudança da composição social no país. Se o país está se tornando, em termos sociológicos, um país com maior protagonismo das mulheres, de jovens negros e de falantes de espanhol, politicamente o sistema partidário continua mais responsivo ao eleitorado de trabalhadores brancos. Mesmo que os últimos estejam se tornando cada vez mais ressentidos e pobres - e não apenas em termos materiais.
Agradeço à Trisha Olson pela discussão e pela ajuda com o sistema eleitoral dos EUA.
A revista Diacríticapublicou um dossiê dedicado ao debate sobre a democracia de cidadãos proprietários (property-owning democracy). Na introdução do volume os organizadores António Baptista (Minho/USP) e Roberto Merrill(Minho) contextualizam os trabalhos a partir de duas retomadas paralelas importantes na teoria política contemporânea. A primeira delas é a volta do debate sobre alternativas econômicas ao capitalismo - tema praticamente marginalizado pelo mainstream acadêmico nas últimas duas décadas. A segunda, é a retomada do ideal normativo de uma democracia de cidadãos proprietários, isto é, um sistema socioeconômico no qual a renda e - sobretudo - a riqueza são dispersadas entre os cidadãos e cidadãs ao longo das gerações (ver aqui um post sobre algumas das propostas econômicas inspiradas no ideal). Originalmente desenvolvida pelo economista inglês James Meade - e posteriormente adota por John Rawls como o único sistema socioeconômico compatível com sua teoria da justiça ao lado do socialismo de mercado - a proposta de uma democracia de cidadãos proprietários tem sido considerada uma alternativa ao mesmo tempo factível em termos institucionais e moralmente justificada ao capitalismo.
A plataforma openDemocracypublicou a tradução em inglês de uma declaração pública do filósofo francês Michel Foucaulta respeito dos direitos e deveres da cidadania internacional.A declaração foi lida em 1981 e publicada pela revista Libération em 1984 (após a morte do filósofo). O título atribuído ao texto pelo periódico foi "Confrontando governos, direitos humanos". No texto Foucault justifica a criação de organizações humanitárias internacionais (como, por exemplo, os Médicos sem Fronteiras e a Anistia Internacional) como uma forma de proteger nosso estatuto global enquanto pessoas "governadas" por Estados e que, portanto, partilhariam de um tipo específico de solidariedade: a defesa dos indivíduos contra a opressão, ou inação, dos Estados nacionais. Instituições internacionais como a Anistia Internacional, segundo Foucault, "criaram um novo direito: o direito de indivíduos privados de intervir ativa e materialmente na ordem política internacional".
We are here only as private individuals and with no other claim to speak, and to speak together, except a certain difficulty we share in enduring what is taking place.
I know very well, and one must defer to this evident truth: we can do little about the reasons which make men and women prefer to leave their country rather than remain and live in it. It is not in our power to change these facts.
So who asked us to speak? No one, and that is exactly our entitlement. It seems to me that we need to keep in mind three principles which, I believe, guide this initiative, like several others that have preceded it: Ile-de-Lumière,Cap Anamour, A Plane for El Salvador, but also Terre des Hommes and Amnesty International.[1]
1) There exists an international citizenship which as such has its rights and duties, and which is obliged to stand up against all forms of abuse of power, no matter who commits them, no matter who are their victims. After all, we are all governed, and, by that fact, joined in solidarity.
2) Because of their claim to care for the wellbeing of societies, governments arrogate to themselves the right to treat in terms of profit and loss the human suffering which their decisions cause and their negligence allows. It is a duty of this international citizenship to always confront the eyes and ears of governments with the human suffering for which it cannot truthfully be denied that they bear responsibility. People's suffering must never be allowed to remain the silent residue of politics. It grounds an absolute right to stand up and to challenge those who hold power.
3) We must refuse the division of labour which is so often proposed to us: individuals are allowed to be indignant and to talk, while it falls to governments to deliberate and to act. It is true that well-intentioned governments appreciate the sacred indignation of the governed, providing that it remains merely lyrical. But I think we must be aware that it is very often those who govern who talk, are only able to talk, or only want to talk. Experience shows that we can and must refuse the histrionic role of pure protest which governments would like to offer us. Amnesty International, Terre des Hommes, Médecins du Monde are initiatives which have created this new right: the right of private individuals to intervene actively and materially in the order of international politics and strategy. The will of individuals must be present and expressed in the order of reality which governments have sought to monopolise. Step by step and day by day, their purported monopoly must be rolled back."
Associações de policiais ao redor dos EUA estão pedindo o boicote dos filmes do diretor Quentin Tarantino, especialmente contra o seu novo filme, The Hateful Eight, com a estréia prevista para dezembro. Não só os policiais e seus familiares dos estados de Nova Iorque, Califórnia e Philadelphia, mas também parte da mídia conservadora, um diretor do FBI e até mesmo o pai de Tarantino apoiam a iniciativa. A reação foi provocada pela participação do diretor em uma marcha contra a violência policial nos EUA no dia 24 de outubro. "Sou um ser humano com consciência", afirmou Tarantino na ocasião, "e se você acredita que assassinatos estão sendo cometidos então você precisa se levantar contra isso. Eu estou aqui hoje para dizer que estou do lado das vítimas" (veja o vídeo abaixo).
O principal argumento por trás do pedido de boicote é o de que atos como a marcha contra a violência policial tenderiam a despertar na população um sentimento de ódio contra a polícia e, com isso, colocaria em risco a vida dos policiais. Apenas dois dias antes do protesto, por exemplo, um policial havia sido morto em na cidade de Nova York. O diretor do FBI James Comey foi ainda mais longe e declarou que o escrutínio público sobre a conduta policial nos últimos anos, o chamado "efeito Fergunson", tem contribuído para aumentar a violência no país, já que os policias teriam ficado cada vez mais "cautelosos" em suas condutas contra possíveis suspeitos e os criminosos cada vez mais "audaciosos" sabendo que suas reações vão ser interpretadas como atos legítimos de resistência. Logo, seria preciso controlar melhor quem e o que se fala sobre a polícia nos EUA como matéria de segurança pública.
Entretanto, ser um jovem ou uma jovem negra nos EUA é bem mais perigoso do que ser um policial. Nos últimos anos, a violência vem crescendo de modo constante e, como o caso do assassinato do jovem desarmado Michael Brown em Fergunson (Missouri) deixou claro para o mundo, o alvo da violência policial tem cor e idade. Segundo a redeMapping Police Violence, quase 300 cidadãos negros já foram mortos por policiais no país só em 2015 (uma média de 25 mortes por mês desde 2013) e, desse total, em apenas três casos os policiais envolvidos chegaram a ser condenados. A grande maioria das mortes foi tratada apenas como excesso de precaução policial.
Durante o protesto, integrantes do grupo SayTheirNames e Stop Mass Incarceration leram os nomes das vítimas da violência policial e suas famílias deram seus depoimentos pessoais sobre sua luta por justiça. Nos EUA, grupos como esses representam os primeiros passos da luta contra o uso sistemático da violência policial contra um setor específico da sociedade norte-americana. O grupo Black Lives Matter - algo como A Vida Negra Importa - talvez seja a face mais visível e politicamente importante dos novos movimentos pelas liberdades civis nos EUA. Inicialmente criado por um trio de ativistas negras em 2013 após a absolvição do vigia noturno que matou (aparentemente) por engano o jovem negro Trayvon Martin, o Black Lives Matter conta hoje com milhares de simpatizantes ao redor do país e tem pautado, com maior ou menos sucesso, o tema na esfera pública e nas pré-campanhas eleitorais. Entretanto, dado o teor extremamente controverso da questão racial nos EUA e a defesa da desobediência civil como estratégia legítima de reivindicação pelas lideranças do movimento, até o momento apenas Barack Obama manifestou solidariedade pelo Black Lives Matter e, ainda assim, de modo indireto. Obama firmou que a sociedade norte-americana deveria respeitar "o que o grupo tem a dizer", mas não necessariamente o modo como o tem dito.
Em relação ao problema da brutalidade policial a experiência brasileira é muito similar. Talvez com uma importante diferença, ou melhor, agravante: que além de sistemática e racial a violência policial tende a ser também muito mais letal. Entre 2002 e 2012, estima-se que cerca de 11.200 cidadãos tenham sido mortos por resistirem a prisão e até setembro deste ano, as polícias do Rio de Janeiro e São Paulo já mataram, cada uma delas, mais de 400 pessoas. Ou seja, mais de um EUA de violência policial para cada polícia estadual. Um caso emblemático da violência policial no país, para mantermos a comparação, mas infelizmente negligenciado pela mídia brasileira, ocorreu no começo do ano no bairro de Cabulaem Salvador quando 12 jovens foram executados pela polícia militar do estado. Todos os policiais responsáveis pelas mortes foram absolvidos e contaram com o apoio público do secretário de segurança e da bancada da bala do estado: "Eu defendo muito a vida dos meus policias e isso é o que importa", afirmou Maurício Barbosa, Secretário de Segurança Pública da Bahia. Os familiares das vítimas criaram o grupo Mães de Cabula como uma forma de continuarem a lutar pelos direitos de seus filhos e irmãos assassinados e, principalmente, para tentar mostrar para a sociedade brasileira que, ao contrário da declaração do secretário, a vida dos outros também importa. a reação contra a declaração de Tarantino também não é estranha em terras brasileiras. Também como nos EUA, a defesa dos direitos das vítimas da polícia tende a ser associada, no Brasil, a uma forma de apologia indireta ao crime.
É muito provável que o aumento da desse tipo de ocorrência nos EUA tenha como causa o aumento galopante da desigualdade econômica no país e que a já segregada sociedade norte-americana esteja as voltas não só com mais desempregados e jovens sem perspectivas de integração como também uma polícia branca assustada e bem menos preparada do que antes. As antigas cidades suburbanas estão se tornando cada vez mais parecidas com Ferguson e New Haven (cidades notórias tanto pelas taxas de criminalidade como pela tensão racial).
É verdade que podemos debater se os mecanismos explicativos endossados pelos apoiadores do boicote, e as conjecturas sociológicas aventadas acima, são confirmados ou não pelos dados que dispomos. Entretanto, para além dessas questões mais imediatas de explicação causal, debates como esses servem parapensarmos mais substantivos enfrentados por qualquer democracia, como, por exemplo, saber se temos (ou não) o direito individual de nos posicionarmos contra a injustiça mesmo quando a fonte da injustiça são as instituições legais os as forças de segurança que deveriam promovê-la. Notemos que tanto no caso das ameaças a Tarantino como em uma corrida de taxi pela cidade de São Paulo, aqueles que se colocam contra a defesa dos direitos das vítimas da polícia normalmente não chegam a por em questão (com exceções) a ideia de que todos temos os mesmos direitos ou até mesmo que é justo ou desejável que a polícia cometa crimes. O argumento é fundado, ao contrário, nas consequências negativas que esse tipo de defesa pode acarretar para a sociedade como um todo. Como explicou o diretor do FBI, os policiais ficarão cada vez mais cautelosos e os criminosos cada mais mais corajosos.
A questão difícil de ser enfrentada é saber se temos, ou não, o direito de desafiarmos a lei quando entende-se que direitos, nossos ou os dos outros, estão sendo ameaçados, ou não estão sendo devidamente respeitados, mesmo que as consequências disso tragam algum tipo de custo social. Temos, por exemplo, o direito de recusar publicamente uma decisão de um tribunal em todos os sentidos legítimo? Podemos contestar a justiça em nome da... justiça? Nos deparamos com essa situação de muitos modos diferentes. Decisões politicamente válidas são consideradas injustas quando amparadas em uma legislação moralmente errada (como, por exemplo, a escravidão ou o apartheid). Em outros casos, as regras podem ser justas mas a sua aplicação não o é. Talvez o corporativismo das forças policiais ou um sistema de justiça exclusivo para esse tipo de crime, estimule a impunidade. Além disso, como determinar se as razões em questão são válidas ou não? Nada impede que as pessoas reivindiquem um direito de desobediência a partir de razões espúrias, como é o caso, por exemplo, dos norte-americanos que se recusam a aceitar que o presidente Barack Obama seja um cidadão norte-americano. Por um lado problemas como esses fazem parte da vida política normal de uma democracia, por outro, eles são extremamente difíceis de serem formulados com precisão quando estamos todos exaltados.
Um argumento clássico, e até hoje extremamente influente, entre aqueles que defendem uma moralidade política fundada na igualdade de direitos, pode ser encontrada no filósofo do direito norte-americano Ronald Dworkin. Em seu ensaio Levando os Direitos à Sério, publicado originalmente 1970 e, oito anos depois, como um livro homônimo, Dworkin procurou defender a legitimidade dos movimentos pelos direitos civis nos EUA a partir da natureza do princípio moral que sustentava a sua causa, a saber, que as pessoas possuem direitos morais, como o de serem tratas com igual consideração e respeito pelas leis, e que, do ponto de vista desses direitos, a legislação segregacionista é moralmente injusta. Se isso é verdade, então, consequentemente, os movimentos tem razão ao demandaram que a legislação vigente seja radicalmente alterada. Formulando de outro modo, Dworkin se propôs a responder a pergunta: temos o direito de infringir a lei ou política democrática caso essa lei seja injusta do ponto de vista moral?
Antes de reconstruir o argumento defendido por Dworkin algumas considerações preliminares são importantes. Quando utilizamos a noção de "direito moral" ou de um direito "incondicional" é preciso atentarmos para o fato que estamos falando de uma prerrogativa individual não apenas contra um governo ou um Estado - o que parece relativamente simples de entender - mas também contra o próprio sistema jurídico. Em países com forte tradição constitutional como o Brasil tendemos a associar direito incondicional com as prerrogativas individuais descritas na constituição ou carta de direitos e, por essa razão, associamos direito incondicional com direito constitutional. Nada poderia ser mais equivocado segundo aqueles que defendem a existência de direitos morais. É verdade que uma constituição tem como um dos seus principais objetivos o reconhecimento de direitos e princípios que, devido a sua importância, devem permanecer protegidos ou insulados da política convencional. Contudo, seexistem direitos morais, entãoa constituição seria apenas mais uma instituição social dentre outras e a interpretação legal dos direitos que ela de fato oferece não coincidir necessariamente com os direitos que deveriam ser reconhecidos do ponto de vista moral. Um sistema judiciário amparado em uma constituição pode falhar tanto na garantia de direitos morais como também no estabelecimento dos direitos morais corretos. Ou seja, para teorias como a de Dworkin, o problema da desobediência civil é uma questão de princípio moral e a proteção ou não desse princípio é aquilo que torna as instituições legítimas ou ilegítimas, e não o contrário.
Se temos o direito moral de nos expressar contra a injustiça, então não há nada que a coletividade possa fazer contra isso que não seja errado do ponto de vista moral. Em muitos casos as pessoas usarão esse direito de modo espúrio ou arbitrário ou ainda de modo a infringir outros direitos. O argumento de Dworkin consiste em mostrar que um governo pode ter boas razões para interferir nesse direito quando necessário. O ponto é que ao fazer isso (mesmo que por razões aceitáveis) ele não pode deixar de violar um direito moral ao fazê-lo. Para entendermos o que isso significa basta examinar os dois tipos mais comuns de argumentos conservadores contra a incondicionalidade do direito de desobediência. (Deixemos de lado o problema comum, mas não necessariamente moral, da hipocrisia, isto é, quando recusamos o direito dos outros apenas porque o nosso encontra-se plenamente garantido).
O primeiro argumento conservador, que podemos chamar de "agonista", procura mostrar que não temos o direito incondicional de desafiar a lei em casos de injustiça patente na medida em que existem dois direitos igualmente importantes em disputa: o direito individual de desafiar a legalidade, de um lado, e o direito da maioria de ter as leis cumpridas. O problema, como mostra Dworkin, é que o argumento é falacioso: se existem direitos pessoais então não podemos atribuir, ao mesmo tempo, um direito difuso "à maioria". O que temos na melhor das hipóteses é um conflito de interesses (que não deixa de ser importante) ou ainda uma violação de outro direitos individuais (como no caso de manifestações que colocam em risco a vida de um espectador). Os detalhes aqui são importantes e precisam ser ponderados caso a caso. Mas apenas por um deslize verbal podemos falar em um direito da maioria em ter as leis respeitadas. É importante notar que o mesmo argumento é usado constantemente nas doutrinas de segurança nacional e no chamado combate contra o terrorismo: o direito (da maioria?) à segurança (da sociedade?) é superior ao direito individual à privacidade ou à expressão ou até mesmo ao direito individual à segurança.
O segundo argumento, que podemos chamar de "realista" - entendido no sentido de realpolitik - afirma que para além dos direitos e interesses presentes em uma sociedade, o Estado possui o direito de exigir que suas leis sejam respeitadas e tal direito é uma razão independente para acatarmos suas diretrizes. Ou seja, mesmo que, por exemplo, os policiais da Bahia tenham se livrado injustamente da punição ou que os jovens negros estejam sendo aterrorizados pela polícia, disso não se segue que possamos colocar em questão a legitimidade dessas decisões, porque toda lei, para além da seu objetivo, conta também com o dever de ser respeitada. Nesse caso o problema é que caso o Estado tenha a prerrogativa moral de exigir que suas leis seja respeitadas apenas pelo fato de serem as suas leis então estaríamos justificando a distribuição de direitos e liberdades individuais por meio de um critério consequencialista, mas não incondicional. Segundo o critério consequencialista, teríamos liberdade pessoal apenas na medida em que o próprio Estado, ou a maioria, considere que elas causam mais benefícios coletivos do que problemas. Se isso é verdade, então não existem direitos morais já que por definição eles são prerrogativas individuais contra o arbítrio do Estado. Isso não significa dizer - mais uma vez - que reivindicações de direitos são fácies de serem resolvidas nem que a plena garantia de direitos pessoais não tragam um custo social. O ponto de Dworkin é mostrar que no caso dos movimentos pelas liberdades civis nos anos 60 nos EUA, ou na luta de hoje contra a violência policial, esse é um custo que precisa ser pago por todos.
O problema da desobediência civil nos mostra que ou bem temos direitos incondicionais apenas pelo fato de seremos cidadãos ou, na verdade, não existem direitos incondicionais e, portanto, estamos sujeitos a cedê-los todas as vezes em que o governo ou as cortes decidirem que isso seja justificado.
É no contexto dessa discussão que Dworkin formula sua célebre distinção entre (a) princípios normativos orientados para resultados, normalmente utilizados pelo Estado na busca pela promoção e conciliação de interesses, e (b) princípios normativos fundados em direitos que, por serem incondicionais, não dependem do resultado das nossas ações e, portanto, servem para fundamentar nossas reivindicações contra princípios orientados para resultados (nesse sentido direitos funcionariam como "trunfos pessoais" contra a sociedade na figura de linguagem emprega por Dworkin). Princípios fundados em direitos partem do pressuposto de que existem modos de tratar uma pessoa que "são inconsistentes com o seu reconhecimento enquanto um membro pleno da comunidade humana" e que, portanto, apenas por causa disso "tais tratamentos tornam-se profundamente injustos". Se o reconhecimento dos direitos é uma exigência necessária para a proteção da dignidade pessoal ou do nossa condição como pessoas merecedores de mesma consideração e respeito, então é fundamental não apenas proteger o direito do outro - seja, na forma do direito de desobediência contra a injustiça e no direito de não ser vítima da violência policial - como também proteger esse direito incondicionalmente, custe o que custar.
A despeito da importância dos argumentos de Dworkin, movimentos como tais como o SayTheirNames, Black Lives Matter e as mães de Cabula, levantam uma segunda questão em relação ao papel de direitos que teorias estritamente deontológicas como a de Dworkin não conseguem dar conta.
Se é verdade que todos possuímos os mesmos direitos e que precisamos estar dispostos a reconhecê-los, também é verdade que em uma democracia o próprio ato de reinvindicação dessa igualdade importa. Grupos como esses estão dizendo diretamente para nós que algo precisa ser feito e que novas formas de respeito mútuo entre iguais precisam ser construídas. Isto é, trata-se também de uma atribuição de responsabilidade sobre aqueles e aqueles que partilham (e as vezes se beneficiam) uma mesma estrutura social. Ao dizerem os nomes dos seus filhos e filhas, as mães de Cabula ou da Louisiana estão dizendo, para nós, como iguais, que temos o dever de escutá-las. Corretamente, o filósofo Joel Feinberg identificou essa segunda dimensão normativa como sendo a dimensão referente ao valor - e não apenas à natureza - dos direitos pessoais. Para Feinberg, os direitos são importantes não apenas porque nos protegem mas também porque a própria ação de reinvidicá-los nos permitem reafirmar, entre iguais, a partilha de um mesmo ponto de vista moral:
[d]ireitos não devem ser confundidos com presentesoufavores geralmente motivadospor pena ouamor e para os quais o sentimento de gratidão é a únicarespostaapropriada. Um direito é algo que [uma pessoa] pode posicionar-se sobre, algo que pode ser demandado ou insistido de alguém sem constrangimento nem vergonha. Quando nos falta um direito falamos em indignação e quando ele é plenamente reconhecido, não existe razão para gratidão [...] (Social Philosophy pp. 58-59).
O ato de reivindicar nos obriga a reconhecer que são pessoas quem portam esses direitos. Colocando de outro modo: se a natureza dos direitos morais nos ajudam a entender porque o direito dos outros importa, o valor moral de reinvidicá-los nos permite entender porque a vida dos outros também deveria importar.
Na próxima quinta-feira (12/11) o prof. Luiz Carlos Bresser-Pereira (FGV) apresentará seu trabalho A Construção Política do Brasil como parte do ciclo de Seminários de Pós-graduação de Ciência Política da USP. Bresser é o coordenador do Centro de Estudos do Novo Desenvolvimentismo da FGV, centro dedicado ao estudo de políticas macroeconômicas para países emergentes, e o seminário abordará as principais teses presentes em seu último livro, com o mesmo título. Uma sinopse da obra pode ser encontrada em um ensaio publicado por Bresser no caderno Aliás.
Como de costume, o evento é aberto ao público e contará com transmissão ao vivo pelo site da IPTV/USP.
A Comissão Fulbright, em parceria com a Capes, abriu as inscrições para as bolsas de estágio sanduíche em humanidades e ciências sociais nos EUA preferentes ao ano letivo 2016-2017. A duração das bolsas variam de 9 a 15 meses (com ou sem estágio em língua inglesa) e o prazo final para o envio de candidaturas termina dia 21/12.
Mais informações sobre o processo seletivo podem ser encontradas na chamada abaixo:
O programa é realizado pela Capes em cooperação com a Comissão para o Intercâmbio Educacional entre os Estados Unidos da América e o Brasil – Comissão Fulbright.
Tipo de programa
Bolsa individual
Objetivo
Incrementar as pesquisas realizadas por doutorandos no país nas áreas das Ciências Humanas, das Ciências Sociais, das Letras e das Artes e estreitar as relações bilaterais entre os dois países.
Modalidade de bolsa e benefícios
Modalidade:
Doutorado Sanduíche
Benefícios custeados pela Capes:
Mensalidade
Auxílio deslocamento
Auxílio instalação
Benefícios custeados pela Fulbright:
Auxílio pesquisa
Auxílio de aquisição de livros e/ou computadores
Auxilio participação em eventos nos EUA
Seguro de saúde mínimo aceito pela universidade americana ( a depender da IES norte-americana)
Seguro para acidente e doença para estrangeiros (ASPE)
Curso de língua inglesa intensivo nos EUA, em caso de seleção do bolsista para o curso
Observação: As taxas acadêmicas e administrativas (mandatory fees), se existirem, deverão ser custeadas pelo bolsista, isentando a CAPES e a Comissão Fulbright de qualquer responsabilidade por elas.
Duração: 9 meses (poderá estender-se por até 15 meses, se o bolsista for selecionado para o treinamento intensivo de inglês).
Inscrição
As inscrições serão gratuitas e o candidato deverá apresentar sua candidatura separadamente à Capes e à Comissão Fulbright, exclusivamente, pela internet, mediante o preenchimento dos formulários de inscrição online e de acordo com as instruções específicas de cada entidade, ambos disponíveis nas páginas
Aos formulários de inscrição online deverão ser anexadas as documentações exigidas em edital.
O candidato que não submeter a candidatura às duas instituições até a data limite, será automaticamente eliminado da seleção.
É vedado o acúmulo de bolsa destinada à mesma finalidade, quando concedida por agência de fomento brasileira. Estudantes/pesquisadores que já usufruíram da bolsa no exterior não poderão ser contemplados novamente, na mesma modalidade, mesmo após o cumprimento do interstício exigido, exceto para bolsas de pesquisa pós-doutoral.
Calendário
Período
Atividade
prevista
Até
21 de dezembro de 2015
Envio
das candidaturas (inscrições)
Janeiro/Fevereiro
de 2016
Processo
de análise das candidaturas
Março
de 2016
Divulgação
dos resultados e interposição de recursos